Corredor tenta descobrir fetiche da avenida Sapopemba
03/12/13 16:30“Onde fica Sapopemba?” foi uma pergunta que rondou as eleições para a Prefeitura de São Paulo em 1985 –as primeiras depois do fim da ditadura militar. O ex-presidente Jânio Quadros (1917-1992), então candidato a alcaide paulistano, detonou seu rival Fernando Henrique Cardoso, então disputando o mandato municipal pelo PMDB, dizendo que o adversário não poderia almejar governar a cidade, pois nem sequer sabia onde ficava Sapopemba.
Por histriônica que fosse, a questão calou fundo na campanha peemedebista, que parecia destinada à vitória. Assessores do candidato organizaram dossiês, dando a ele uma aula de São Paulo, segundo registro na coluna Painel da Folha, para que soubesse a localização do bairro e até da avenida de mesmo nome.
Mais tarde, próximo ao pleito, Fernando Henrique, ao comentar pesquisas que lhe eram favoráveis, disse, de forma irônica: “Estou ganhando em todas as zonas eleitorais, inclusive em Sapopemba, que não sei onde fica”.
Quando as urnas se abriram, a história foi outra.
Tenho a dizer que sei onde fica Sapopemba, vibrante bairro da zona leste paulista. Para saudá-lo, hoje percorri a artéria que o corta e lhe dá nome, rasgada na crista de uma longa coxilha, com baixios escorrendo de cada lado, como caudas de um enorme vestido rodado.
Estou falando da avenida Sapopemba, que trilhei hoje em mais uma etapa de meu projeto 460 Km por SP, uma homenagem ao próximo aniversário da cidade.
Pela internet afora, a nossa prezada avenida é louvada como a segunda maior do Brasil (a primeira seria a avenida Brasil, no Rio de Janeiro) e a terceira do mundo, mas os textos que vi não apresentam fontes para sustentar esses dados. Dizem que ela tem cerca de 45 km de extensão e 1.786 postes de luz –foge-me à compreensão a importância desse dado. Vi textos informando comprimento diferente: 23 km.
Esse me parece mais perto dos mapas que vi e do percurso que encarei na manhã de hoje, começando por volta das 5h30. Do seu ponto inicial, próximo ao largo Água Rasa, até cruzar sob o viaduto da Jacu-Pêssego, foram algumas centenas de metros além dos 19 km (estou dando um desconto porque fiz algumas voltinhas no percurso). Dali para a frente, a crer nos mapas internéticos, não há muito mais (existe nas redondezas uma estrada Sapopemba, mas parece ser outra coisa).
A Prefeitura informa que a Avenida Sapopemba possui 26 km de extensão dentro do município de São Paulo, começando na avenida Salim Farah Maluf e indo até a divisa com Mauá.
Enfim, se é verdade que, como diz o povo, tamanho não é documento, deixemos as medições para os medidores e contemos a empreitada do dia.
Noite escura, o corredor causa estranhamento a uns poucos cidadãos ainda sonolentos nos pontos de ônibus (lá no Rio Grande do Sul, a gente chama de “parada de ônibus”), que abrem espaço para minhas passadas e me encaram curiosos.
Cuido para não tropeçar nas armadilhas das calçadas mal iluminadas e, por volta do terceiro quilômetro, cruzo pela delegacia da Vila Diva, onde os policias investigam quatro mortes e duzentas agressões (casos registrados de janeiro a outubro deste ano). Mais um pouco, avisto o perfil de uma igreja.
Disseram-me que são muitas as casas de oração na avenida. Não sei se há contabilidade, mas, de fato, passei por muitos templos das mais diversas denominações, instalados em prédios suntuosas ou em quase-barracos, armazéns comerciais modificados para a prece ou pequenos muquifos em que se prevê o destino.
Com meia hora de corrida, o negro do céu vai se acinzentando, clareando, já dá para ver melhor. É quando me surpreende um enorme tubo que parece brotar do chão para ocupar canteiro central da avenida, transformado em praça para abrigar o inusitado visitante…
Curioso, percorro a praça 22 de Maio, onde há mesinhas de cimento para o descanso dos transeuntes.No pé de uma árvore, alguém deixou um prato de comida colorida e com um jeito até apetitoso, mas minha fome ainda não é grande que chega para tentar experimentar o gosto dos acepipes, que parecem mais algum tipo de oferenda religiosa do que restos de coisa feita para comer de verdade.
Me vou, mas antes faço uma pose com a tubulação: o encanamento é gigante mesmo, maior do que eu…
Com a luz do sol que chega, levo um susto logo adiante, ao ver um muro com decoração horripilante (desculpe aí, mas de vez em quando rimar faz bem ao coração). Azulejos brancos e coloridos, formato geométrico: será que os caras queriam dizer alguma coisa?
Lembrando de outros portentos arquitetônicos que me pareceram de inspiração semelhante, imaginei que o muro pudesse ser de um motel, hipótese confirmada metros depois. Mas a própria Sapopemba mostra que nem todo motel precisa ser horrível: quadras mais para a frente, outro estabelecimento do gênero decora o muro com sugestivas pinturas de borboletas ou insetos assemelhados se refestelando em flores desabrochadas. “Que gracinha!”, talvez dissesse a apresentadora televisiva Hebe Camargo, muitas vezes eleita a cara de São Paulo.
Já que o amor está no ar, que os holofotes se voltem para o casalzinho que, numa viela lateral, se despede com abraços e beijos. Preparam-se para enfrentar o dia cada um por si, mas, antes, só um apertinho mais, um beijinho, um sorriso, que a jornada vai ser dura e há que se ter um pouco de ternura (ih, rimei de novo!).
A avenida Sapopemba, em si, nada tem de terna. É feia, cinza, poeirenta, cheia de carros, com calçadas bagunçadas. De certa forma, um retrato da Paulicéia, da parte sofrida e trabalhadora da cidade. Milhares moram aqui –o bairro tem mais de 200 mil habitantes–, mas o que mais aparece à vista são estabelecimentos comerciais, lojas de todo o jeito, supermercados, oficinas, bares, restaurantes.
Seu nome vem de idioma indígena: o livro “São Paulo, 450 Bairros, 450 Anos”, de Levino Ponciano, afirma que significa “raiz chata” em tupi-guarani. Refere-se a um tipo de raiz que se desenvolve juntamente com a árvore, chegando a 2 m de altura.
Já o livro “1001 Ruas de São Paulo, de Sílvia Costa Rosa, conta que, quando a hoje avenida foi aberta, nos idos do século 19, era uma estrada de chão batido usada por tropeiros e pequenos sitiantes, que circulavam por ali para ir até o centro vender sua produção.
Até o seu quarto quilômetro, é quase uma subida só, chegando a cerca de 870 metros acima do nível do mar; segue a topografia da montanha que domina, continuando encabritada até outro pico por volta do km 12, de onde começa a despencar –não sem alguns solavancos.
No seu início, é rua comum, de mão dupla; depois se alarga, ganha canteiro central, às vezes abraça praças e contorna rotatórias. Numa dessas, quase me enrolei todo, sem saber exatamente para onde seguia a via (rima!). Tive de dar uma parada, porém, ao ver a placa indicando que ali começava o Parque da Integração Zilda Arns.
O que o tal parque integra não ficou claro para mim, mas tive de conferir como era essa homenagem à irmã do cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, ela mesma estrela de brilho próprio, batalhadora incansável pelos diretos humanos (saiba mais sobre ela AQUI).
A pracinha é bacaninha, com pista para caminhada e ciclismo e até uma quadra de amarelinha pintada no chão.
Costeando a pista de ciclismo, há um pequeno gramado com muitas árvores –reconheci mangueiras e goiabeiras. Tive vontade de ficar mais, mas já tinha me afastado da Sapopemba por várias centenas de metros. Voltei e fui recompensado: mais adiante a via se encostava no finalzinho do parque.
Assim é a avenida Sapopemba: cheia de surpresas. Num certo ponto, acolhe um abrigo para idosos; em outro, abre espaço para lixo em terreno baldio.
Com ar de classe média trabalhadora até por volta do número 14.000, a partir dali vira bagunça. A numeração se complica, repete, vai e volta: passei por uns três quarteirões ficando sempre pelos 14.600 e adjacências; do outro lado da rua, o 18 mil e caqueirada é vizinho do 15 mil e pouco…
É mais um sinal de que ela vai empobrecendo. Nas ladeiras laterais, nos vales que a margeiam, é nítida a perda de qualidade de vida da população: muitas casas sem reboco, coladas umas às outras, ribeirão escuro e fedido abrindo caminho pela vegetação.
Em alguns pontos, nem sequer há calçada. Disputo a rua com os carros, correndo na contramão, na faixa de ônibus, nem sempre respeitada. O suor escorre, o cansaço bate: já estou correndo há quase três horas, depois de uma noite mal dormida –meu cérebro ainda não se acalmou das emoções que envolvem a construção dessa corrida que, para mim, tem ares monumentais.
Vejo enfim o ponto final que esperava: o encontro da avenida Sapopemba com outro portento da metrópole, a Jacu-Pêssego. Ou, pelo menos, o viaduto que dá acesso a ela. Passo por baixo, encaro o concreto armado e as favelas ao longe.
Sigo ainda mais um pouquinho, abraçando com minhas passadas um grande conjunto habitacional que fica ali por perto.
É meu jeito de dar tchau para Sapopemba. Qualquer hora, estou de volta. Vamo que vamo!
DIA 3 – PROJETO 460 KM POR SÃO PAULO
Clique no mapa para acessar informações detalhadas sobre o percurso de hoje
QUILOMETRAGEM DO DIA: 20 km
TEMPO DO DIA: 3h02min49
QUILOMETRAGEM ACUMULADA: 48 km
TEMPO ACUMULADO: 8h21min26
QUILOMETRAGEM A CUMPRIR: 412 km
DESTAQUE DO PERCURSO: passeio pela avenida Sapopemba, a mais longa da cidade, com 26 km de extensão
PS.: Obrigado ao pessoal do Banco de Dados da Folha, que colaborou com pesquisa para este texto.
Então, Rodolfo…..mais uma aventura, certo?
Olha, eu nunca tinha visto ninguém descrever a Sapopemba de uma forma assim, tão única, tão pitoresca…..parabéns!
Gostei muito das imagens captadas, algumas paisagens belas, algumas tristes de se ver.
Isso é Brasil.
Vamos lá Rodolfo, você ainda tem muito chão pela frente aí, mas com certeza você irá percorrer com sucesso. FORÇA, siga com Deus.
Nunca tinha circulado por essa avenida, ate a semana passada e tive as mesmas sensacoes, as mesmas curiosidades. Texto maravilhoso
Eita, cada dia correndo mais… Eu já rodei muito por São Paulo mas taí uma parte que eu ainda não tinha passado. Tá madrugando hein, haja disposição. É uma pena que as calçadas de São Paulo não são mais amigáveis aos corredores…
A Av Sapopemba era na minha infancia Estrada de Sapopemba. Pelo jeito mudaram parte dela, mas continuava pot todo o percurso da estrada…
Não esqueça de passar no nosso bairro Perus : Pque Anhanguera , muitos correndo lá.
Ninguém lembra do nosso bairro – Fabrica de cimento Perus – desativada – espaço que daria uma área de lazer abandonada. Parque Linear que não sai do Papel. Lixão – e muito mais.
Olá Rodolfo,
venho acompanhando seu diário, com certeza poderá ser feito um livro desse feito.
Essa km alta é devido aos locais que pré estabeleceu ou porque você está contando com dias off mais para frente? Nesse ritmo você já vai comemorar o aniversário de 800 anos.
Um abraço
Luis Augusto
Gostei muito de sua reportagem, pois morei num desses bairros que cortam a Av Sapopemba. Aparentemente continua a mesma, que pena, pois já fazem 38 anos que estou morando na Baixada Santista e esta avenida, como os bairros adjascentes não mudaram em nada, ao contrário estão mais feias e mais perigosas. Sr Prefeito de SP, será que não está na hora de olhar para esses bairros? Afinal a população é gigantesca e podem render muitos votos!!!!
Vamo que vamo!
que Maravilha!
é isso ai.
vou acompanhar sua trajetória…
Que Maravilha!
é isso ai, parabéns…
vou acompanhar sua trajetória…
É uma poesia. Deveria virar livro.
Parabéns!
Adorei o tom poético e leve. Mesmo que correr nem sempre seja sinônimo de leveza, as pernas pesam, sabemos bem. E apesar de esbarrar com paisagens humanas e urbanas não tão belas assim, o relato tem poesia!
É isso aí, meu amigo. Cada dia melhor!!!
Grande abraço por mais esta aventura!
Sapopemba é ZL e não Zona Oeste… Abraço.