Eu não gosto de correr com fones de ouvido. Não gosto de ficar ligado 200% do meu tempo no celular e gosto menos ainda de ouvir música sem prestar atenção nela direito nem conseguir ouvir apropriadamente o meu som ao redor.
Além de tudo, como eu faço na rua a maior parte de meus treinos, é muito perigoso. Com os fones nos ouvidos, o corredor perde um dos sentidos, fica com a audição limitada e a atenção dividida.
Assim, cada um com seu cada qual. Mas, se alguém me pergunta, eu digo que não só não recomendo mas sou contra, não gosto mesmo (aliás, certa vez, em tempos idos, escrevi uma crônica chamada “Contra o iPod”; foi na época em que escrevia uma coluna no extinto caderno semanal “Equilíbrio”, que hoje é apenas uma página a cada semana… Bom, a coluna está AQUI).
O que não significa que eu não goste de música nem que eu não goste de música na corrida. Ao contrário, as canções sempre me acompanharam e acompanham ao longo dos meus quilômetros pelo asfalto do mundo.
Vejo cenas que me parecem composições, ouço sons que me fazem recordar momentos grandiosos ou tristes e solitários, sinto emoções que me dão vontade de cantar, batuco com os pés uma sonata, ode ou pequeno concerto que vira canção.
Que eu me lembre, a primeira vez em que cantei enquanto corria foi nos meus tempos de iniciante na corrida. Eu subia e descia a avenida Sumaré, festejava cada vez que conseguia incluir uma nova volta, que indicava aumento de minha resistência, fortalecimento de minha capacidade como corredor.
Era ainda o século passado, e eu fiquei imaginando que o grande tchans da corrida era desenvolver a capacidade cardiorrespiratória. Donde se conclui que, se aumentar a dificuldade para respirar e correr, a pessoa tende a ficar ainda mais bem treinada.
Vai daí que tratei de cantar enquanto subia a Sumaré, na zona oeste de São Paulo. Dava meus trinados apenas na subida, exatamente quando o processo todo de correr era mais difícil. Experimentava cantar baixo, alto, rápido, agudo, grave…
A canção, porém, era sempre a mesma, uma que eu tinha aprendido havia pouco tempo. Sempre soubera, imaginava eu, mas nunca tinha me dado conta da letra: “Esse baião, eu inventei prá ninar o meu amor num berço feito de raios de luar, baião, ô, de ninar” (clique Aqui para ouvir muito mais bem cantado).
Mais das vezes, porém, as canções eram cantadas por mim em silêncio, ressoando no meu cérebro e alimentando minhas passadas. No mais longo treino que fiz para minha primeira ultramaratona, a música que me possui foi uma cantada por Djavan, que diz “Vou andar, vou voar, prá ver o mundo; nem que eu bebesse o mar encheria o que eu tenho de fundo”.
Ela às vezes soava em mim como promessa, outras vezes como raiva. Em certo momento, me vi emocionado até às lágrimas, gritando sem som aquele refrão como se fosse arma de guerra –que não é; ouça AQUI a versão original).
Muito antes disso, porém, eu já tinha feito de uma música meu canto de celebração de vitória. Depois de minha segunda maratona, ainda chorando porque tinha baixado sete minutos o meu tempo, marcando então meu recorde pessoal na distância –3h53min22–, entoei aos gritos, fora de tom, de ritmo, sem harmonia nem afinação: “Minha jangada vai sair pro mar”.
Até hoje não sei de qual escaninho da memória me veio aquela música, mas ela é linda e já a cantei muitas vezes em coral; ouça AQUI uma versão muito linda, com o próprio Caymmi.
Às vezes, o momento é tão grandioso que a própria música espera; vai se aprochegando devagar e só mais tarde emerge. Foi o que aconteceu depois de eu ter sido o único brasileiro a completar, naquele ano de 2004, a maratona da Muralha da China.
Terminei em seis horas e 54 minutos e fui direto para a mesa de massagem, que salvou meu dia e minha noite. Nos dias seguintes, curti a viagem em silencia, como que assuntando comigo mesmo tudo o que tinha acontecido. Em Guilin, porém, o somo veio à tona; no final da madrugada, quando o dia ainda não virou manhã, homens e mulheres, idosos em grande parte, vão para baixo de uma ponte cantar, aproveitando o retorno do som que a construção propicia.
Também fui para lá, durante uma corridinha para soltar a musculatura, mas acabei soltando a vez, de verdade, no alto de uma montanha transformada em praça, cantando ao redor de gente fazendo taichi ou outro tipo de exercício. Naquele dia, experimentei os versos de Monteverdi: “Lasciatemi morire”. Para mim, pouco importava o tom melancólico,a letra tristonha. Queria aproveitar a música, feita com carinho para os baixos deste mundo (AQUI, porém, quem canta é um tenor).
Falando em dez vidas, a expressão está na letra de uma canção do espetáculo “Arena canta Tiradentes”; inspirado em frase dita pelo próprio alferes, o poeta escreveu: “Dez vidas eu tivesse, dez vidas eu daria pelo bem da liberdade, nem que fosse por um dia”.
Voltando à melancolia da letra, confesso que não dou muita bola para ela, especialmente quando canto composições em que a emoção da música ou o prazer de cantar vale mais do que qualquer coisa que esteja sendo dita com meras palavras. Isso vale tanto para o dramático “Kom Süsser Tod” (AQUI), de Bach, quanto para o exultante “Salmo 150” (AQUI).
Aliás, uma das músicas que mais me deram satisfação de cantar foi um trecho do “Réquiem”, de Verdi. Tive a subida honra e o prazer inenarrável de participar de um ensaio aberto do Coral da Osesp, no palco da Sala São Paulo, com a luxuosa regência de Naomi Munakata. A gente cantou a capella, claro, mas clique AQUI para ouvir uma versão completa.
Dito isso, voltemos à música da maratona. Há momentos em que a corrida me soa como uma canção de despedida, o fim de um ciclo, o encerramento de um processo. Completada a prova, o que nos resta? Sentar na guia da calçada e chorar, ouvindo o lamento da gaita de boca, pode ser uma opção (confira AQUI).
Mas não, a maratona não tem lugar para tchau nem adeus, é ciclo de vida que recomeça quando termina, inunda de sangue e suor o nascer de um novo sonho. Por isso, termino aqui, agora e já, ouvindo o lamento e a promessa de Gonzaguinha (clique aqui para ouvir comigo).
E digo: Vamo que vamo!
Tem mais: Até a pé nós iremos para o que der e vier.
E mais ainda: Saravá!