Adeptos da corrida descalça e dos calçados minimalistas, preparem-se! Vem aí mais uma super-hiper campanha de divulgação desse estilo, que proclama ser mais integrado com a natureza. Isso porque foi dada a largada para a produção de um docudrama baseado no livro “Nascido Para Correr”, que foi a faísca do movimento dos pés livres. E a estrela é ninguém menos que o queridinho de Hollywood Matthew McConaughey (foto Reuters).
Ele vai interpretar o jornalista Christopher McDougall, que escreveu o livro e também se coloca como personagem na história. Para quem não sabe, trata-se do relato da busca que faz o jornalista para encontrar os tarahumara, lendária tribo de índios mexicanos que vive a correr, sempre de pés descalços ou usando uma sandália que mal e mal protege os pisantes.
Nesse périplo, sua porta de entrada é por meio do não menos lendário Micah True, mais conhecido no meio dos ultramaratonistas como Caballo Blanco, que acaba sendo o fio condutor da história.
O livro se tornou um best-seller internacional, inspirando o movimento da corrida descalça e ajudando a vender os calçados minimalistas. Quanto ao filme, ainda não há data prevista sequer para o início da produção –menos ainda, portanto, para a entrada em cartaz.
Em contrapartida, no final do ano passado chegou à edição final um documentário sobre o próprio Caballo Blanco, que morreu em 2012 durante uma corrida solitária por trilha nos EUA.
As primeiras filmagens foram feitas em 2009, e há registros tanto de corridas de Micah quanto de treinos dos tarahumara, cenas das homenagens em memória de Caballo Blanco e da edição de 2013 da ultramaratona que ele idealizou e durante vários anos realizou entre os tarahumara.
Além de divulgar a filosofia dos corredores descalços, um objetivo do documentário “Run Free” é arrecadar fundos para a comunidade –coisa que, por sinal, era também a meta de Caballo Blanco. O filme deve estar pronto no final deste ano(fotos Divulgação).
Se você quer saber mais sobre a história de Caballo Blanco continue lendo. A seguir, copio reportagem que escrevi sobre ele pouco depois do anúncio de sua morte, em 2012. O texto foi publicado na revista “O2”, onde tenho uma coluna mensal em que apresento histórias de corredores e, de vez em quando, também conto coisas das minhas corridas. Agora, com você, Caballo Blanco.
CABALLO BLANCO, ADIÓS!
Naquela manhã, o cachorro ficou. No dia anterior, Guadajuko tinha acompanhado seu dono por quilômetros sem fim nas trilhas selvagens da floresta de Gila, no Novo México. Suas patas estavam doloridas do cascalho e do terreno duro, precisava se recuperar para ter forças para seguir a jornada.
Caballo Blanco, porém, não deu descanso a seu próprio corpo. Como fizera todos os dias em que esteve na pousada de um casal de amigos, acordou cedo, tomou um café da manhã espartano e saiu para sua corrida matinal. Pretendia fazer em torno de 20 km, o dobro do treino do dia anterior. Saiu de calção e camiseta, levando apenas uma garrafa de água. Nunca mais voltou.
Era a manhã de terça-feira, 27 de março. À noite, quando o peregrino ainda não havia retornado, a inquietude tomou conta da pousada. Havia anos Caballo Blanco percorria as trilhas da floresta, não era um debutante incauto. Especialista em percursos selvagens, conhecia as normas de segurança, sabia dos riscos envolvidos nos percursos solitários por caminhos inóspitos, aonde não chegavam carros, motos ou bicicletas: eram trajetos que só o homem desbravava. Alguma coisa de errado havia acontecido. Alguma coisa muito errada.
Na manhã seguinte, nada de Caballo Blanco. A polícia foi avisada, chegaram os guardas florestais, a notícia se espalhou pela comunidade dos ultramaratonistas, grupo de corredores se somaram às equipes de busca. Ao lado de atletas anônimos, nomes famosos como os de Scott Jurek, campeão das ultras Badwater e Western States, e do escritor Christopher McDougall, autor de “Nascido para Correr”.
Não era para menos: seu livro é praticamente baseado na trajetória de Caballo Blanco, que, por sua vez, apesar de já ser então muito conhecido na comunidade dos ultras, foi alçado à categoria de mito, de lenda corredora, pela obra de McDougall.
Branco, de longos cabelos cada vez mais ralos, magro, forte, com mais de 1,80 m de altura, Caballo Blanco se transformou na encarnação do espírito da tribo mexicana conhecida como Tarahumara, que cultuam a corrida como uma espécie de religião e fazem das longas jornadas pelos cânions mexicanos uma espécie de trajetória rumo à paz e ao autoconhecimento. São os corredores de pés descalços (ou quase, pois usam sandálias primitivas feita de tiras de couro e borracha), cuja história, narrada em “Nascido para Correr”, alavancou a moda dos tênis minimalistas, da corrida dita “natural”.
Conhecidos há anos pela comunidade de vida alternativa, os Tarahumara começaram a ganhar as manchetes do mundo das corridas em 1993, quando um grupo deles participou da ultramaratona de Leadville, no Colorado. Suas aldeias tinham sido atingidas pela fome, o povo enfrentava doenças, sua pobreza milenar chegava a níveis da miséria; os atletas saíram do seu recanto perdido nos cânions das Barrancas Del Coble para enfrentar os gringos em troca de comida.
Na mesma prova, lá estava Caballo Blanco. No início do ano, sofrera um grave acidente enquanto andava de bicicleta, acabou em uma UTI de um hospital do Colorado. Quando se restabeleceu, resolveu correr uma ultramaratona para celebrar a vida –ele já vinha, então, participando de ultras havia vários anos.
Durante a corrida, conversou um pouco com Victoriano, o mais velho dos Tarahumara, com 55 anos, que vinha no passo lento, pouco a pouco ganhando terreno até vencer a prova. Foi seguido pelos conterrâneos Cirrildo e Manuel Luna, deixando para trás a elite dos ultracorredores norte-americanos.
Viraram manchete. No ano seguinte, 1994, Leadville encheu. Vinha gente de todos os cantos para correr com os Tarahumara. Desta vez, era um grupo diferente, mas sempre vestindo suas velhas sandálias e suas roupas tradicionais, mais parecidas com longos vestidos, que lhes davam um ar fantasmagórico. Caballo serviu de pacer para Martiniano, um dos guerreiros mexicanos, e também lhes deu dicas para enfrentar a prova: deviam perseguir “La Bruja”, Ann Trason, uma das maiores ultracorredoras da época, que estava lá para dar o troco dos corredores “de verdade” àqueles índios serenos e velozes.
No final das contas, ela assumiu a liderança, desafiando os Tarahumara: “Pergunte a eles como se sentem sendo passados por uma mulher”, teria dito ela quando tomou o primeiro posto. Mas uma ultramaratona de 160 km só acaba quando termina, e a vitória acabou sorrindo para os guerreiros mexicanos. O jovem Juan bateu o recorde da prova por quase 30 minutos, fechando em 17h30; Ann chegou em segundo, com novo recorde feminino (18h.04). E Martiniano completou em terceiro, em 19h40, tempo suficiente para os dois, ele e seu pacer, o gringo Caballo Blanco, ficarem amigos.
Caballo apaixonou-se pelo estilo de corrida dos Tarahumara, pelo seu jeito de ver a vida, e se mandou para os cânions mexicanos. Foi com a cara e a coragem, viver em um barraco nas profundezas do vale, correndo sempre que podia, vivendo do que lhe era possível.
A pobreza e a vida dura não eram novidade para o corredor. Lutar pela sobrevivência também não –aliás, na juventude, literalmente tirou dos punhos o ganha-pão, trabalhando como boxeador em lutas de exibição e em outras tantas para valer. De certa forma, o nomadismo lhe vinha do berço.
Filho de um sargento dos Fuzileiros Navais –os temíveis e temidos Mariners–, Caballo Blanco nasceu em 10 de novembro de 1953, em Oakland, Califórnia, e teve por nome Michael Randall Hickman. Por causa da profissão do pai, a família viajava muito, e a cada nova escola, o franzino Mike tinha de dar um jeito de não ser espancado pelos veteranos. Sua tática era entrar de imediato nas mais baratas aulas de boxe disponíveis, fossem na escola ou em alguma academia local.
Acabou usando os punhos para ajudar a pagar a faculdade –estudou religiões orientais e a histócia dos nativos norte-americanos. Com a alcunha de Gypsy Cowboy, participava de combates arranjados. Ganhou algum dinheiro, até que encheu e resolveu cair fora.
Seu espírito aventureiro o levou a andar de um lado para outro, viajando de carona, fazendo bicos para viver. Na primeira metade de seus 20 anos, viveu uns tempos no Havaí –chegou a morar em cavernas, contam algumas histórias. Teve uma espécie de iluminação e resolveu ser uma nova pessoa, Micah True, tomando por nome a identidade de um profeta citado no Antigo Testamento e por sobrenome o apelido que um cãozinho que com ele vivia.
No Havaí, encontro um eremita chamado Smitty, que o apresentou à arte de correr. Os dois percorriam quilômetros e mais quilômetros pelas florestas e montanhas havaianas, ganhando paz e autoconhecimento.
Não dava, porém, para viver por ali a vida toda. Gypsy Cowboy, agora Micah True, voltou ao Colorado, retornou aos combates e se manteve correndo. Uma desilusão amaroso pôs fim à sua ascendente carreira de boxeador, abriu espaço para que o nomadismo tomasse conta de seu espírito.
Vagou pela América Central. Nos caminhos perdidos da Guatemala, ganhou dos índiso o apelido de Caballo Blanco, aquele ser estranho, de pele clara, que corria por tudo sem cessar.
“Em meados dos anos 1980, eu estava correndo cerca de 8.000 km por ano, mas não chegava a participar de corrida. A primeira prova de que participei foi a ultra Rocky Mountain 50, de 80 km, que venci em 6h12. Comecei então a competir, e foi então que comecei a me machucar, quando eu passei a me levar muito a sério”, disse ele em uma entrevista ao “Running Times” em 2010.
Assombrado por lesões, resolveu parar de participar de provas e apenas correr como gostasse; de vez em quando, andava de bicileta. Até o tal acidente que o deixou quase à marte e que o levou novamente à ultra de Leadville e ao encontro com os Tarahumara, que chama de Raramuri.
Este, aliás, é o nome “certo” da tribo, é como eles se chamam. Tarahumara seria a palavra criada pelos invasores espanhóis, que não conseguiam pronunciar o nome índio. Significa povo que corre ou povo das passadas leves. Com eles, Caballo Blanco aprendeu a pisar com a parte da frente do pé, a usar sandálias baixas, a ser mais “natural” na sua passada e a ter na corrida um caminho para a paz, o autoconhecimento, a humildade, a sabedoria. Tudo sempre temperado por algumas cervejas, que ninguém é de ferro.
Depois de sua primeira estada com os raramuri, Cabllo voltou a Boulder, Colorado, onde vivia. Contou à cidade sobre o modo de vida daqueles índios e arrecadou algumas centenas de agasalhos para levar à tribo. Passou a viver assim: uma parte do ano entre os índios, outra na cidade norte-americana, onde trabalhava o suficiente para conseguir levar uma vida simples pelo resto do ano.
No início dos anos 2000, começou a pensar em novos jeitos de ajudar os índios para quema corrida era quase uma religião. Nasceu assim, em 2003, a Copper Canyon Ultramarathon, ujma corrida muito especial nos cânions mexicanos. Aos poucos, a corrida cresceu, ganhou a presença de mais gringos, até à famosa edição de 2006, que é retratada no livro “Nascido para Correr”, que teve a presença de Scott Jurek e de Ted Pés Descalços (Barefoot Ted), ultracorredor famoso por correr, sem tênis, distâncias insanas.
“Com a ultra, mais raramuris voltaram a correr”, disse Caballo Blanco em uma entrevista ao blog Flintland no final do ano passado. “Eles estão ganhando do ponto de vista material, mas também de formas mais profundas, porque estão recuperando suas mais antigas tradições. Estão retomando a corrida da bola (uma corrida especial dos raramuris). E têm condições nutricionais de fazer esse exercícios.”
A mais recente edição da ultramaratona aconteceu no início de março passado com a presença de cerca de 500 corredores.
“Do primeiro instante até o ultimo momento, o cânion de Urique esteve unido numa celebração da corrida”, escreve em seu blog o corridor canadense Flint. “Todas as diferenças desapareceram à medida que a longa e colorida linha de pessoas se movimentava morro acima e morro abaixo pelas trilhas ensolaradas. Os únicos sons ouvidos eram o eco dos gritos de incentivo de próprios corredores e as batidas de suas passadas pelos caminhos rochosos.”
“Todos são vencedores”, disse Caballo Blanco aos participantes. Depois da prova, voltou para sua cabana, onde ficou por mais alguns dias até iniciar sua jornada de volta para os braços de sua namorada, Maria Walton, La Mariposa, que conhecera também pelas corridas da vida.
Ultramaratonista, ela certa vez mandou e-mail para Caballo Blanco pedindo dicas para melhorar sua corrida. Os dois acabaram virando um casal.
Agora, antes de encontrar-se com ela, Caballo fez sua tradicional parada no Novo México. “Ele fazia isso há mais de 16 anos”, me disse por e-mail seu agente e amigo Scott Leese. “Conhecia profundamente a floresta de Gila, conhecia as trilhas, o terreno, a topografia…”
A estada no Novo México era uma espécie de férias para Caballo Blanco. Ao longo do ano, ficava cerca de seis meses nas Barrancas Del Coble tratando da organização da prova e trabalhando com o povo Raramuri –ele também participava de uma ONG que levantava recursos para ajudar a proteger a cultura e a vida dos índios da região.
Quando estava em Boulder, no Colorado, costumava levantar de madrugada, por volta das 4h. Checava mensagens no computador, entrava nas redes sociais, comia um pouco de aveia, frutas, tomava café e saía para correr. O treino podia ser de 16 km ou de 32 km, o que lhe desse na veneta. Voltava, descansava, conversava, tratava de fazer o que fosse necessário para a corrida.
“Ele levava uma vida simples”, diz Leese. “Todas as suas propriedades cabiam no porta-malas de sua caminhonete: uma mochila com algumas roupas, seu laptop e comida para Guadajuko. Ele não enchia sua vida de coisas. Nunca foi muito ligada em nada física, a não ser Maria e seu cachorro. Simplicidade é coisa dos gênios…”
Mesmo os gênios têm seus problemas. Até o fechamento desta edição, não era conhecida ainda a causa da morte de Caballo Blanco, que tinha 58 anos. Seu corpo só foi encontrado no final da tarde de sábado, 31 de março, em um local de difícil acesso.
“Acho que ele já fazia o caminho de volta da corrida quando não se sentiu bem e sentou-se em uma rocha –normalmente, ele nunca parava durante suas corridas. Então alguma coisa aconteceu, e ele teve morte súbita”, diz Leese.
O anúncio da morte provocou uma onda de dor no mundo das ultramaratonas. Nos Estados Unidos e onde quer que Caballo Blanco fosse conhecido, multiplicaram-se as corridas em homenagem a ele.
Para lhe render tributo, será erguido um Memorial, e a Fundação Caballo Blanco seguirá realizando a prova que é sua herança para os corredores do mundo todo. Caballo Blanco corre entre nós.