Será realizada nesta quinta-feira (19) em São Paulo a sessão de autógrafos de “Matador de Dragões”, biografia do ex-campeão e recordista olímpico Joaquim Cruz.
O atleta, que vive nos Estados Unidos, veio ao Brasil especialmente para o evento, e vai receber o público na Livraria Cultura do shopping Iguatemi, na avenida Brigadeiro Faria Lima (zona oeste de São Paulo).
Escrito pelo jornalista Rafael De Marco, a biografia conta com prefácios dos jornalistas Juca Kfouri e Dorrit Harazim. O preço de capa é de R$ 50 e parte do dinheiro arrecadado com a venda será destinado ao Instituto Joaquim Cruz, organização sem fins lucrativos que desenvolve programas esportivos para crianças e adolescentes, em Brasília.
O lançamento faz parte das comemorações pelos 30 anos da conquista da medalha de ouro nos 800 metros da Olimpíada de Los Angeles, em 1984, completados 6 de agosto do ano passado.
Segundo material distribuído à imprensa, “o livro narra a trajetória do garoto pobre nascido em Taguatinga, uma das cidades satélites de Brasília, até a glória da medalha de ouro na Olimpíada de Los Angeles, em 1984, e a medalha de prata nos Jogos de Seul, em 1988”.
Não foi uma trajetória fácil: o atleta, que nasceu com uma perna dois centímetros mais curta do que a outra, sofreu oito cirurgias ao longo da carreira.
O livro também aborda “as polêmicas com os dirigentes do esporte brasileiro e a transição das pistas para a vida de homem comum”.
A seguir, texto do prólogo do livro, texto do jornalista Rafael De Marco:
“You will become a great champion!”
“A great champion…”
A frase martelava na cabeça com intensidade similar à das passadas vigorosas que o levaram à glória momentos antes. O turbilhão de pensamentos convergia sempre para as mesmas palavras.
“You will become a great champion!”
Sentado à beira da pista do Memorial Coliseum de Los Angeles, sob o calor do ensolarado dia 6 de agosto de 1984, sentia o corpo entorpecido, a mente em paz. Inebriado pelo sabor dos recentes acontecimentos, o mundo parecia girar em câmera lenta. A cacofonia ensurdecedora de cem mil pessoas a aplaudir, torcer e gritar chegava a seus ouvidos como o eco de sussurros distantes. Orgulho pessoal e sensação de dever cumprido serenavam sua alma. Mas não estava sozinho. Ao lado, igualmente calado e aparentemente tranquilo, o autor da frase visionária observava a movimentação na pista de atletismo.
“You will become a great champion!”
Ironicamente, o inglês Sebastian Coe, o sujeito sentado ao lado, fazia parte do momento em que se concretizavam suas próprias palavras, cunhadas três anos antes em tom profético. Na época, representaram sons incompreensíveis em um idioma estranho, que o jovem saído da periferia de uma das cidades-satélites de Brasília não amealhava instrução para traduzir.
“You will become a great champion!”
Após tudo terminado, o tesouro conquistado, aquela lembrança voltava como algo acontecido há séculos. Em outra vida. O menino brasileiro alto e franzino se fez homem. Esse homem se fez herói imortal na galeria do Olimpo esportivo. Joaquim Carvalho Cruz cumpria, assim, seu destino no mundo. Com uma medalha de ouro no peito, transformava em realidade aquela profecia.
Os dois continuavam isolados no Memorial Coliseum, sentados em duas pequenas cadeiras ao lado da pista, na saída da primeira curva, a poucos metros da linha de chegada. Podiam observar as provas de perto e acompanhar, mais ao longe, a reação dos torcedores, explodindo em euforia como ondas de um colorido oceano humano. Contrastando com a balbúrdia e o clima de excitação geral, a dupla transpirava letargia. Simbolizava a calmaria após a tempestade. Verdadeiros guerreiros a contemplar o campo de batalha após longo e árduo embate. A princípio, não se falavam. Não se olhavam. Absorviam, cada um, seu momento. Sabiam ser aquele um grande dia.
Sebastian Coe interrompeu o silêncio. O então recordista mundial dos 800 metros rasos se virou para o agora campeão olímpico e, de forma natural, quase íntima, quebrou o gelo:
– Não existe dia melhor para assistir a uma competição de atletismo. E nós temos os melhores lugares do estádio!
Joaquim meneou a cabeça em um gesto de aprovação. Aproveitou para, finalmente, falar sobre o primeiro encontro entre eles. Relembrou 1981, a Copa do Mundo de Atletismo, em Roma. Seu batismo de fogo. A primeira competição internacional com os grandes. Inexperiente, frustrou as próprias expectativas ao cruzar a linha de chegada na modesta sexta colocação nos 800 metros. Durante a cerimônia de apresentação dos vencedores, com todos os atletas perfilados diante do público, o brasileiro deixou sua posição, passou por quatro competidores até chegar ao campeão, Coe, na outra extremidade na fila. Durante o breve e educado cumprimento, estranhou a própria coragem para ignorar a timidez habitual e se expor diante de tantos olhares. Um aperto de mãos com significado. No gesto de cavalheirismo esportivo, de fair play, o jovem atleta pretendia demonstrar que, quando se luta até o fim, com todo o coração, ninguém é completamente derrotado.
Como sempre fez e faria ao longo da carreira, o jovem atleta de 18 anos havia lutado o bom combate. Apesar do sexto lugar, dera tudo de seu corpo e de sua mente até a linha de chegada. E seu potencial não passou despercebido aos olhos do até então “dono” dos 800 metros. Durante o breve contato entre suas mãos, o britânico, igualmente gentil, disparou uma única frase. A frase. Em 1984, Coe ainda se lembrava. Lembrava muito bem.
“You will become a great champion!”
“Você vai ser um grande campeão!”
Joaquim Cruz sorriu ao, finalmente, ouvir repetidas as mesmas palavras, pronunciadas exatamente como da primeira vez. Enquanto o característico sotaque britânico enchia o ar, o brasileiro viajou no tempo, mergulhou no passado. Viu os dias de treinamento em Taguatinga, no final da década de 1970, quando repetia mentalmente “um dia, serei o melhor corredor de todos os tempos”, enquanto derretia debaixo do sol escaldante do Distrito Federal e esfarelava solas de tênis com passadas vigorosas em chão de terra batida. Reviu, numa fração de segundo, as dificuldades, alegrias, dúvidas, dores, conquistas e tristezas de uma jornada heroica, iniciada por um menino saído de um barraco periférico no Planalto Central do Brasil para culminar no estádio de um país de Primeiro Mundo, com os olhos do planeta voltados em sua direção.
Num piscar de olhos, avançou um pouco mais no tempo. Reviveu seu momento de glória como espectador privilegiado. Como em um filme, assistiu a Joaquim Cruz correr de forma espetacular. O atleta, vestido de azul, com o número 093 no peito, faz o Coliseum de Los Angeles tremer ao arrancar, sozinho, na reta final, livrar vantagem de cinco metros em relação a Coe para vencer a prova dos 800 metros dos Jogos de 1984 e estabelecer novo recorde olímpico, com o tempo de 1min43s cravados.
Nascia, para o mundo, o grande campeão.
De volta ao presente, os minutos escorriam pelo dia iluminado. Novamente entregues ao silêncio, observaram o cenário por mais alguns minutos até representantes do cerimonial os levarem para a premiação. Joaquim na frente, seguido por Coe e pelo norte-americano Earl Jones, terceiro colocado. Com a medalha de ouro no peito de Cruz, altivo no degrau mais elevado do pódio, o hino brasileiro reverberou mais alto, ouvido pela primeira e única vez nos Jogos Olímpicos de Los Angeles, nos Estados Unidos.
O dia 6 de agosto de 1984 está marcado na história do esporte nacional e mundial. Para Joaquim Cruz, representa a maior conquista de uma carreira construída à base de profissionalismo, sacrifícios, talento e dedicação. Quando cruzou a linha de chegada no Memorial Coliseum, transformou-se no primeiro brasileiro (e único até os Jogos de 2012, em Londres) a conquistar uma medalha de ouro em provas de pista e o segundo a ocupar o alto do pódio no atletismo olímpico. Antes dele, apenas Adhemar Ferreira da Silva, bicampeão no salto triplo, havia conseguido façanha de tal magnitude.
O tempo de Cruz derrubou a marca do cubano Alberto Juantorena, 1min43s50, obtida nos Jogos de Montreal, em 1976. Não por coincidência, Joaquim era chamado pela imprensa brasileira de Cavalo, apelido recebido em razão do estilo vigoroso de correr, que lembrava a velocidade de um puro-sangue. Curiosamente, Juantorena, soberano uma década antes, praticamente imbatível nos 400 metros e 800 metros, também se consagrou como “El Caballo”.
Nos Jogos de Los Angeles, Joaquim Cruz era um homem com uma missão. O alvo, a medalha de ouro. E nada teria poder para se colocar entre eles. Vestiu o uniforme do Brasil não para simplesmente competir. Entrou na disputa a fim de buscar o prêmio que, sabia, já lhe pertencia. Confiante, concentrado e excepcionalmente bem preparado, alimentava a certeza íntima de não encontrar adversários a sua altura na Olimpíada. Nenhum obstáculo seria grande o suficiente para detê-lo.
Desejo de vencer e força mental sempre se destacaram no arsenal desse atleta. Aliadas a excelente condição física, técnica, inteligência e uma bagagem genética extraordinária para o esporte, tais qualidades o transformaram em competidor feroz, verdadeiro predador nas pistas durante a década de 1980, praticamente imbatível nos 800 metros e nos 1.500 metros. Caçava – e cansava – adversários até deixá-los definitivamente para trás. Sempre faminto por conquistas, alimentava-se de medalhas, com predileção insaciável pelas douradas.
Nos Jogos Olímpicos de 1984, um sentimento a mais o movia. O mais poderoso de todos, o amor. Joaquim avançava para a medalha de ouro como se corresse para os braços de Mary Ellingson, namorada e futura esposa. Como um amuleto, o atleta guardava o bilhete em formato de estrela recebido das mãos da amada momentos antes do embarque para Los Angeles. Na mensagem, ela desejava boa sorte e o chamava de lucky star, apelido carinhoso, inspirado na canção de Madonna, estouro nas rádios de todo o mundo desde o ano anterior.
Quando entrou na pista, às 16 horas e 42 minutos (horário de Los Angeles), envolto em seu casulo mental, não olhou para os lados nem para cima. Evitou notar o público e a algazarra generalizada. Seu foco estava nos 800 metros que o separavam do final da jornada.
Às 16 horas e 49 minutos, alinhou na raia seis. Um minuto depois, ouviu o tiro de largada. A tática da corrida estava previamente definida. Caso ninguém se apresentasse logo no início, tomaria a ponta e ditaria o ritmo até cruzar a linha de chegada em primeiro. Havia sido assim nos três dias anteriores de eliminatórias, sempre com vitória e tempos cada vez menores.
A final foi diferente. O queniano Edwin Koech assumiu a liderança após o afunilamento, enquanto Joaquim lutava para escapar de um caixote que seria mortal. Após usar os braços para abrir espaço e passadas alongadas e potentes para ganhar terreno, assumiu a segunda colocação, acompanhando o africano de perto. Logo atrás, surgia o temido Sebastian Coe, atento para não se desgarrar do pelotão da ponta.
A prova seguiu nessa configuração até os 600 metros, que o brasileiro sabia serem o ponto para o bote fatal. Despejou potência nas pernas, acelerou e partiu para cima de Koech. Ultrapassou sem pedir licença e tomou a ponta sem dificuldades. Apontou na reta de cara para o vento e, em um dos mais sensacionais sprints da história do atletismo, cortou os 100 metros finais feito uma flecha para a vitória e a consagração, exatamente às 16 horas, 51 minutos e 43 segundos.
Para quem assistiu da arquibancada do estádio, acompanhou pela televisão ou leu nos jornais, assim se passou o 1min43s da final olímpica dos 800 metros. De dentro para fora, representou muito mais. Joaquim sentiu o corpo ganhar dimensões gigantescas. Arrepios iam dos pés à cabeça, como choques elétricos estimulantes a inflar as fibras musculares. Enquanto acelerava, crescia. E cresceu até se ver maior que todos. As linhas de separação das oito raias se uniram em uma única trilha. As pernas desafiavam a gravidade. Cada vez mais leves nos derradeiros metros, já não tocavam o solo. Tudo à volta perdia o foco, menos a linha de chegada. O estádio mergulhou em silêncio vagaroso enquanto Joaquim alçava seu voo. Voou alto, como nos sonhos dos tempos de criança, em que tentava alcançar a lua. Não percebeu o mínimo cansaço e, se precisasse correr mais 100 metros após cruzar a linha de chegada, correria com tanta facilidade que talvez a vantagem para Coe atingisse dez metros em vez de cinco. Talvez mais.
Quando parou, aterrissou como campeão olímpico. Não explodiu de alegria descontrolada, reação que seria até compreensível diante de tamanho feito. Não estourou de revolta como resposta às dificuldades que a vida lhe impusera desde a infância pobre. Manteve a serenidade e a discrição, marcas registradas da personalidade tímida e austera. Limitou-se a cinco emblemáticas homenagens. O maior agradecimento destinou a Deus. Transposta a linha final, um único pensamento: “Meu Deus! Obrigado, meu Deus!” O soco no ar dirigiu ao pai, também batizado Joaquim Cruz, morto três anos antes. O abraço longo, fraterno e grato, reservou ao técnico, amigo e segunda figura paterna, Luiz Alberto de Oliveira. O coração, que manteve acesa a chama pela vitória, batia acelerado pela amada Mary. A volta olímpica com a bandeira verde-amarela tremulando nas mãos foi toda, centímetro por centímetro, passo após passo, dedicada ao povo brasileiro.
No Brasil, a população, sem se dar conta de tamanha homenagem, estava, em sua maioria, na frente de um aparelho de televisão para a primeira transmissão ao vivo da vitória de um atleta nacional em Jogos Olímpicos. O país parou para assistir à realização de um sonho. O sonho do brasileiro de infância pobre, que teve a infelicidade de nascer com a perna direita dois centímetros mais curta que a esquerda e superou limites para triunfar, valente e nobre, diante de adversários temíveis e poderosos, vindos de países desenvolvidos, onde as crianças têm escola, mesa farta e não precisam trabalhar para ajudar no sustento da família.
Resumida a conquista da medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de 1984, a história de Joaquim Cruz poderia ser uma espécie de conto de fadas moderno, com pares de tênis no lugar do sapatinho de cristal. Não é.
A saga do campeão das pistas de atletismo é a epopeia de um brasileiro que se tornou cidadão do mundo. É recheada de vitórias gloriosas, alegrias e sucesso, mas não imune a derrotas, lágrimas, tristezas, cicatrizes (decorrentes de oito cirurgias) e dores, como as de qualquer pessoa, principalmente as nascidas abaixo da linha do Equador. A vida de Joaquim Cruz é um retrato do esporte no Brasil, que vive de heróis esporádicos em batalhas épicas. Em 1984, a vitória nos 800 metros representou a sexta medalha de ouro do país e, 30 anos depois, até os Jogos de Londres, apenas outras 17 foram ganhas por atletas e equipes nacionais.
A história de Joaquim Cruz é a do homem que lutou e venceu. É a história de quem aprendeu a acreditar no próprio potencial como profissional e como ser humano. É uma história que merece ser contada. História com início 21 anos antes daquela tarde dourada de 6 de agosto de 1984 no Memorial Coliseum de Los Angeles.”