
Na entrevista coletiva oficial, antes da maratona de Berlim, o queniano Wilson Kipsang já era claro ao dizer que iria tentar buscar o recorde mundial na prova de ontem. E que estava confiante em conseguir seu objetivo.
A segurança de Kipsang vem sendo construída há tempos. Há dois anos, ele beliscou a marca mundial, que então eram de seu compatriota Patriock Makau, ao vencer a maratona de Frankfurt em 2h03min42, apenas quatro segundos mais lento que o recorde de então (2h03min38, estabelecido ali mesmo em Berlim).
Além disso, já correu sub2h05 quatro vezes na carreira. Aliás, na sua preparação para Berlim, teria feito treino na distância oficial cravando marca melhor que o recorde. Correr por duas horas a um ritmo de 2min55 por quilômetro não era alheio ao corpo e à mente do atleta.
Claro que tudo precisava ser perfeito. O clima estava bom, havia um ventinho (no final, Kipsang chegou a reclamar da brisa contrária), e os termômetros estavam na casa dos oito graus Celsius. Os coelhos estavam ensinados, conscientes do ritmo a correr e da marca que era buscada ontem.
Mas saíram voando: a passagem do primeiro bloco de 5 km sinalizava final em menos de duas horas e três minutos, coisa em que ninguém estava apostando. Era preciso reduzir.
Os poucos, a turma foi acertando o passo. Cinco quilômetros depois, a previsão era de final em 2h03min29. Deram uma pequena acelerada para a passagem do km 15 e cruzaram a marca da meia maratona em 1h01min32 (2h03min04 para o final, se o ritmo fosse mantido).
Daí as coisas degringolaram. Do km 20 ao km 25, foi a pior passagem de 5 km. A previsão ainda indicava recorde, mas ali-ali, com apenas quatro segundos de vantagem, que poderia facilmente se perder ao longo dos duríssimos 17 km que faltavam.
Nos últimos cinco quilômetros em que os líderes são puxados pelos marcadores de ritmo, o ritmo se descontrola totalmente, o recorde parece estar indo embora. A previsão é de 2h03min48.
No pelotão de liderança, os contendores são Wilson Kipsang e o jovem Geoffrey, que tem o mesmo sobrenome, mas não é parente. Corajosamente, Eliud Kipchoge, outro queniano, se alinha com o trio de ferro. Um puxando o outro, outro desafiando o um, os três conseguem recuperar um pouco, a passagem do km 35 é um pouco menos aterradora, mas ainda não traz de volta o recorde mundial.
Então Wilson Kipsang decola. Pega a prova com as mãos, os dentes, pernas e pés que se movem como metrônomo, mas um pouquinho mais forte a cada instante. Engole asfalto e devora segundos, deixando para trás quem quer que fosse.
No km 40, Kipsang passa exatamente no ritmo do recorde mundial de Makau. Precisa garantir forças para manter o ritmo, acelerar um pouquinho que seja. Palmas e gritos do público são incentivo que ele depois relembra, agradecido.
Voa nas avenidas germânicas. Vê o portal de Brandenburgo e acelera ainda mais. Vence e quebra o recorde em um final épico: 2h03min23.
Sorri, pega a bandeira de seu país (foto Reuters, no alto), que ainda hoje chora os mortos em recente atentado em um shopping na capital, Nairobi. Abraça Kipchoge, que cruzou a linha cerca de 40 segundos depois. Os dois riem, o campeão cumprimenta e cumprimentado. Seus olhos brilham e sua voz é firme quando dá a primeira entrevista como recordista mundial da maratona.
“Examinando minha carreira até agora e o meu progresso na maratona, acho que tenho potencial para correr mais rápido”, disse ele, mostrando que o novo recorde já está sob ameaça do próprio recordista. “Qualquer coisa abaixo de 2h03min23 serve”, brincou Kipsang.
A vitória lhe valeu mais de US$ 120 mil apenas em prêmios diretos concedidos pela prova. E ele entra para o panteão de recordistas como os que foram homenageados pela organização da maratona de Berlim, que ontem realizou sua edição de número 40.
Para comemorar a data, levou a Berlim atletas que bateram o recorde mundial na cidade alemã. Lá estavam a queniana Tegla Loroupe e a japonesa Naoko Takahashi, o multirrecordista Haile Gebrselassie e o elegantérrimo Paul Tergat. E também estava o brasileiro Ronaldo da Costa, que iniciou a moderna onda de quebra de recordes, ao derrubar em 1998 uma marca que durava dez anos.
O tempo de Ronaldo da Costa, por sinal, era perseguido por outro brasileiro, este na ativa: Marílson Gomes dos Santos correu ontem pela primeira vez na maratona de Berlim em busca de baixar sua melhor marca pessoal (2h06min34, Londres-2011).
Não conseguiu. Na verdade, passou longe. Apesar de uma bela colocação –ficou em sexto lugar, mostrando sua determinação e espírito de luta–, o tempo foi pífio em relação à marca almejada. Completou em 2h09min24, cerca de três minutos pior do que gostaria. Talvez a imagem abaixo, capturada pela fotógrafa brasileira Fernanda Paradizo, diga mais sobre o resultado dele do que qualquer avaliação que possamos fazer.

Já a alemã Irina Mikitenko conseguiu tudo o que pretendia e ainda mais um pouco. Aos 41 anos, a atleta não só chegou em terceiro lugar como quebrou o recorde dos veteranos 40+ por uma larga distância, cravando 2h24min54 –a marca anterior, da russa Ludmila Petrova, era 2h25min43, estabelecida em Nova York em 2008.
Foi muito legal ver chegar a sorridente Mikitenko, que trazia em sua vitória não apenas a conquista pessoal, mas a demonstração que pessoas mais velhas também podem correr competitivamente ao lado dos melhores do mundo.
“Eu tenho 41 anos, mas isso não significa nada”, disse ela. “Eu me sinto como se tivesse 20 anos de idade e 20 anos de experiência.”
A campeã, a queniana Florence Kiplagat, correu na frente o tempo todo, sendo perseguida pela compatriota Sharon Cherop, quem em alguns momentos pareceu ter chance de dar bote, mas acabou ficando na boa. Acabou chegando mais de um minuto depois da campeã, que completou em 2h21min13.
Evento desagradável do dia foi o feito de um sujeito interessado em promoção rápida e internacional de um site de encontros. Na chegada de Kipsang, o homem rompeu o cerco e cruzou a linha de braços erguidos, instantes antes do queniano. Foi logo dominado e entregue a polícia, mas o estrago já estava feito.
Não que o corredor tenha sido prejudicado (levou um susto, é claro). Mas a imagem que Berlim tenta passar, de prova segura e organizada com perfeição, foi no mínimo arranhada. Não faltou gente a dizer, nas redes sociais, com ironia: “Imagina isso na Copa…”.