Com pulmão transplantado, professora desafia câncer e leva ouro em Jogos Mundiais
08/09/15 10:14Gaúcha de Santa Maria –eu tenho de começar assim senão vão dizer que não sou bairrista— e vivendo com um pulmão transplantado, a professora de pilates Liège Gautério mandou ver na última edição dos Jogos Mundiais para Transplantados, realizados na última semana de agosto em Mar del Plata, Argentina. Conquistou o ouro nos 100 m e levou a prata nos 200 m.
Hoje com 42 anos, Liège descobriu em 2003 que tinha fibrose pulmonar. Nos quatro anos seguintes, passou por três cirurgias nos dois pulmões. Mesmo assim, conseguiu se manter ativa, fazendo suas atividades profissionais e praticando esportes.
A partir de 2009, porém, passou a sentir cansaço nos treinos. No ano seguinte, não tinha mais condições de correr. Em 2011, sentia cansaço até para escovar os dentes, segundo diz.
Em setembro daquele ano, fez transplante unilateral. Três meses depois da cirurgia, voltou para o trabalho como professora de pilates –é também formada em biologia e fonoaudiologia.
Quanto aos treinos, conta que recomeçou do zero: “Respeitei bastante o ritmo do meu corpo e por ser formada em educação física montei um treino bem coerente para meu condicionamento no momento. Na medida em que ele ia respondendo ao treino, intensificava um pouco mais. Até que hoje treino normalmente e realizo tudo o que fazia antes da manifestação da doença”.
Há pouco tempo, ficou sabendo dos Jogos Mundiais para transplantados e, olhando os resultados anteriores, viu que teria condições de disputar se treinasse direitinho. Pensou, planejou e fez.
Fique agora com o relato de Liège sobre suas conquistas na competição. Ela escreveu o texto para o Unidos pela Vida – Instituto de Divulgação da Fibrose Cística, e o Cristiano Silveira, da Equipe de Fibra, gentilmente disponibilizou o relato para que você tivesse acesso a mais uma história de vida e conquista.
Antes do texto da Liège, vai a foto do pódio dos 100 m, em que conquistou a medalha de ouro.
“Não importa o quanto eu escreva, sei que não será o suficiente para descrever a sensação de viver um sonho, mas tentarei contar pra vocês um pouco dessa aventura.
“O primeiro impacto foi na solenidade de abertura dos jogos, dia 23 de agosto passado. Ver as delegações (1.100 atletas de 45 países diferentes) foi mágico. Tive a honra de entrar carregando a bandeira brasileira. Senti muito orgulho. Ali, naquele momento, tive a noção da dimensão do evento. Não imaginava que fosse algo tão organizado, tão grandioso, tão divulgado entre outros países.
“Também pensei em tudo o que passei até aquele momento. Fraturei o tornozelo no final de 2014, fiquei imobilizada até janeiro, voltei a treinar em fevereiro, porém, precisei imobilizar novamente e só voltei realmente a treinar dois meses antes da competição.
“Além disso, foi descoberto um câncer de mama em maio, o que me tirou um pouco do foco e fez com que eu desacelerasse meu ritmo de treinos.
A competição
“Sexta-feira, 28 de agosto – É chegado o grande dia e eu pensei: Agora não tem volta, “vai lá e faz o teu melhor”, eu dizia pra mim mesma. Fazia frio e o tempo estava encoberto, mas nem isso me fez desanimar.
“Na minha categoria, havia seis atletas nos 100 m e 200 m rasos então pensei: Uau! Sou a sexta melhor do mundo!
“Dado o tiro de largada para os 100 m, não vi mais nada. Lembrei-me dos meus treinos, da técnica que devia utilizar e fui. Afinal de contas, não há muito o que pensar em 14,3 segundos.
“Quando vi que ninguém se aproximava de mim a única coisa que passava na minha cabeça era: “Não acredito! Não acredito! Vou ser ouro!”
“Cruzar a linha de chegada e alçar os braços ao alto em sinal de agradecimento foi o que me restou fazer.
“Sensação de missão cumprida. Corri pela família TX pulmonar, pelos que já fizeram, pelos que esperam e pelos que partiram. Feliz em poder saber que uma transplantada unilateral de pulmão pode ir mais.
“Nesses jogos os transplantados de pulmão são raros, segundo um fisioterapeuta argentino que, surpreso por me encontrar no atletismo, me chamou para conversar.
“No sábado, os 200m. Estava decidida a não fazer, já que não havia treinado. Minha inscrição acabou acontecendo apenas por insistência dos amigos.
“O dia amanheceu ensolarado e mais quente do que a véspera. A vontade veio e não deu para escapar.
“Minha estratégia foi a de largar o mais lento possível e ver se teria fôlego para o resto. Na medida em que sentia que tinha máquina, fui imprimindo ritmo e buscando. Cheguei em segundo lugar. Com um tempo de 34,1 s, atrás apenas de Petra Vovesna, atleta da República Tcheca que completou a prova em 32,4s.
“Fiquei realmente muito satisfeita e honrada de ter sido a primeira mulher brasileira a participar dos jogos e de ter conquistado a primeira medalha de ouro para o Brasil em 20 edições dos Jogos.
“Fiquei feliz por poder estar lá. Ao mesmo tempo, senti tristeza por saber que no Brasil a maioria das pessoas sequer sabe que os jogos existem.
“Não recebemos nenhum apoio, nenhum incentivo. Nosso time era extremamente reduzido, enquanto outros países contavam com seus médicos e fisioterapeutas.
“Não é possível um país imenso contar com apenas quatro atletas (dois no tênis, que conseguiram medalha de prata e bronze e dois no atletismo). Somos um país repleto de praticantes de atividade física. É preciso haver um projeto que contemple e incentive o esporte para transplantados. Conseguimos, a muito custo, nosso uniforme e nada mais.
“Espero poder colaborar para mudar esse cenário e continuar divulgando o esporte entre as pessoas transplantadas.”