“Não quero ser Larsson pelo resto de minha vida”, diz autor da sequência de Millennium
27/08/15 18:04Troco duas ou três palavras com a agente literária, assessora de imprensa ou sei lá o quê, e ela transfere o telefone para o escritor da hora, o “cara”: David Lagercrantz. No meio da tarde sueca, o jornalista até agora especializado em biografias mais ou menos romanceadas se transformou em conversador-por-telefone-em-série.
Com a voz excessivamente entusiasmada de quem luta para não deixar a peteca cair, Lagercrantz vai logo dizendo, com empolado sotaque britânico: “Estou exausto, em entrevistas com jornalistas dia e noite. Está uma loucura. Mas estou muito feliz porque as resenhas são excelentes em todo o mundo”.
Tudo bem, eu lhe devolvo o “Boa Tarde!!!” com o mesmo entusiasmo e pergunto sobre a produção da sequência da série “MILLENIUM”, criada pelo também jornalista sueco Stieg Larsson.
“Cada livro tem suas próprias circunstancias. Quando escrevi sobre Ibra [o livro mais famoso de Lagercrantz é uma biografia do artilheiro sueco], tive de entrar em seu mundo. Agora, tive de fazer uma pesquisa ficcional, li e reli os livros, decorei as histórias e depois tive de entrar nos personagens. Houve muitos desafios, especialmente encontrar uma trama. Larsson era um mestre em criar tramas, com tantos desdobramentos e muitos caminhos se encontrando. Tive de trabalhar dia e noite. Tinha de entender Lisbeth Salander {a super-hacker dona de imensa tatuagem de dragão nas costas]. Não apenas recriar o trabalho de Larsson, mas também colocar algo de mim mesmo no trabalho.”
Qual foi esse tempero pessoal que ele introduziu na franquia é a pergunta obvia, depois do que ele acabara de dizer.
Um foi o destaque para as questões cibernéticas, científicas. “Sou muito interessado em ciência. Também entendi que o bom dos grandes super-heróis não são apenas seus poderes, mas também seus perrengues. Tive a satisfação de poder tabalhar no personagem e responder a uma questão que Larsson não esclareceu: por que Salander é uma hacker tão boa.”
A criação de um personagem autista também foi da lavra do sucessor de Larsson.
“Certo dia, aordei às quatro da manhã e me lembrei de uma história antiga, na época do [filme] “Rain Man”, de um garoto que passou por um sinal de trânsito e depois fez um desenho exato daquilo. Então comecei a pensar nele como uma “figura espelho” de Salander e pensei o que poderia acontecer se um garoto como esse estivesse no meio de algo horrível, como um assassinato. E aí: bang-bang! Eu tinha uma história.”
A trama agora já não envolve apenas malvadões escondidos nos recônditos da polícia secreta sueca. Atravessa o oceano e envolve corruptos no interior da NSA, a agência de segurança dos Estados Unidos.
“Nos tempos de Larsson, os ataques de hackers eram feitos por indivíduos foras da lei. Agora é feito pelo Estado. O trabalho de genete como Salander parece cada vez mais necessário.”
Em meio a tanto confete, uma voz discordante é a da ex-companheira de Larsson, Eva gabrielsson, que detonou o projeto, que chamou de máquina caça-níqueis.
“Eu tenho o maior respeito por ela”, diz Lagercrantz. “Esse trabalho foi a maior emoção de minha vida, eu escrevi com paixão, não foi por dinheiro. Foi bom para mim de muitas formas, me tornou num escritor melhor. E a única coisa que me atrapalha e entristece é que ela tenha ficado tão brava. Eu tenho simpatia por ela, mas eu sei que isso é bom para o trabalho de Larsson, porque agora seus livros são lidos novamente. Agora uma nova geração de leitores vai descobrir seus livros. E vai conhecer o seu grande trabalho, de uma vida toda, que foi de lutar contra o racismo, contra a extrema direita e a intolerância, o que é hoje ainda mais importante.”
O escritor continua: “Eu respeito seus pontos de vista, e entendo quando pede que deixem o trabalho de Larsson em paz. Mas sou um escritor, e nunca conheci um escritor que quisesse que seu legado fosse deixado em paz. O escritores querem ser lidos. É por isso que escrevem. O que teria acontecido se sir Conan Doyle tivesse dito: não toquem meu Sherlock Holmes. Acho que isso é bom para os livros de Larsson e bom para os personagens que criou”.
Pendengas à parte, pedi a ele que contasse um pouco de como executava seu trabalho, se chegou em algum momento a sentir o tal bloqueio literário ou enfrentou outro tipo de dificuldade no processo.
“Nada de bloqueio”, afirmou. “Eu costumo dizer que era um a espécie de bipolar. Algumas vezes eu me considerava “o cara!” , o melhor escritor da face da terra, e na outra hora eu pensava ser a pior pessoa já nascida. Mas isso era bom. Quando eu me via como superbom crescia minha autoconfiança; por outro lado, às vezes tinha medo mortal de errar, mas é bom ter medo, pois faz com que você trabalhe ainda mais.”
Trabalho realizado em meio a todo o segredo possível.
“Eu vivi numa espécie de mundo paralelo. Estava escrevendo sobre espiões e hackers e ao mesmo tempo temíamos que nosso trabalho fosse descoberto. Estávamos paranoicos, como me de invasão em nosso computador. Escrevi toda a história em um computador desconectado [da internet]. Foi algo paradoxal…”
E agora, qual o próximo passo? Ao longo da história, deixou fios soltos que podem ser usados em uma sequência da sequência, digo eu. Isso já está planejado?
“Talvez eu faça, talvez não”, escapa ela. “Atualmente estou simplesmente muito satisfeito com o trabalho, é um privilégio. Vou entrar em tour literário e espero que ter uma tempinho livre no final do dia para tomar um copo sozinho no meu hotel e pensar realmente no que gostaria de fazer. Eu sei que não quero ser Stieg Larsson pelo resto de minha vida. Vou pegar outros desafios. Talvez eu escreva um quinto livrou ou não. Vamos ver.”