Desistir de uma corrida é sempre uma opção para o corredor
03/08/15 12:55O grande treinador e filósofo do mundo das corridas Gilmário Madureira, marido e técnico da maratonista olímpica Marily dos Santos, colocou hoje a seguinte imagem em sua página na rede social.
À guisa de legenda, escreveu o seguinte: “Produção da Golden Four, em tempos de suposto vergonhoso escândalo IAAF/WADA, a frase duvidosa, no lugar errado por ser de um autor mais errado ainda.”
Eu secundei a publicação de Gilmário, compartilhando a dita cuja na minha página na mesma rede social. Mas acho que o assunto merece mais.
Não é de hoje que nos acostumamos a ver a corrida sendo saudada como uma forma de heroísmo, sendo os corredores combatentes indomáveis capazes de suportar os maiores sofrimentos para chegar ao final de uma prova, qualquer que ela seja.
“Desistir é para os fracos!”, “Sangue nos óio”, “a dor é passageira, o orgulho é para sempre” (e variantes, como a vergonha é para sempre ou a tal frase que aparece no cartaz).
Vou lhe dizer uma coisa: isso é a maior bobagem. Os maiores corredores de nosso tempo não se avexaram jamais de parar quando isso lhes parecia necessário.
Haile Gebrselassie parou, Marílson parou, treinadores incensados pararam; Valmir Nunes, maior ultramaratonista brasileiro em atividade, me disse ter parado dezenas de vezes. Aliás, acaba de parar na Badwater, prova de que tem o recorde, quando liderava com muita folga sobre o segundo colocado.
Desistir em uma corrida não é dar adeus ao correr ou abandonar o esporte. Não poucas vezes, parar é a melhor forma de garantir que o corredor poderá prosseguir em futuras jornadas.
Os profissionais sabem disso. Eles dependem do corpo para garantir o pão de cada dia. A experiência mostra que forçar mais um pouco pode transformar uma dorzinha resolvível com duas semanas de fisioterapia em uma lesão que leva meses para ser curada.
E o pior: se forçar e se machucar de verdade, o atleta vai ficar com sentimento de culpa, vai ter de se preocupar com não engordar, vai cair em depressão, vai ser uma m****.
Nós não temos de brigar com nosso corpo, mas sim usufruir dele, aproveitar sua grandeza e permitir que descanse quando for preciso, mesmo que isso implique abandonar uma corrida antes do final.
Claro que há provas e desafios que, na mente do desafiante, transcendem qualquer dor ou sofrimento que possam ter de enfrentar. Não é disso que tratamos aqui: o tal cartaz estava exposto como referência para milhares de participantes em uma prova que integra um circuito de competições no Brasil.
É conhecido o caso da ultramaratonista de Formosa que, durante a Transe Gaule (corrida em etapas que somam mais de 1.100 km na França), rejeitou os conselhos médicos e não quis parar por causa de grandes bolhas que lhe feriam os pés. As feridas infeccionaram, houve ataque de uma bactéria não combatida a tempo e a contento, e a atleta acabou tendo as duas pernas amputadas.
Há quem corra provas em homenagem a entes queridos e suporta grandes sofrimentos e muitas outros casos de trabalho na superação total.
Ninguém desmerece esses heróis –que assim sejam chamados, por falta de outra qualificação–, mas nem todos somos ou precisamos ser heróis.
Somos corredores e queremos dos divertir com a corrida. Para isso, nos preparamos o melhor possível. Há quem diga: sofremos nos treinos para não sofrer na hora da prova.
Alguma dor é inevitável. Mas o prazer precisa ser maior, até para fazer com que o corredor continue interessado em treinar para a próxima corrida. Enfim, cada um com seu cada qual, mas a regra deveria ser: proteja-se, defenda-se e, na dúvida, não ultrapasse.
Cada um tem razões que a própria razão desconhece, e não cabe recurso às decisões decisões individuais.
Mas creio que empresas e profissionais do mundo da corrida deveriam trabalhar sempre em prol da saúde; incentivar é bacana e sempre é bom para o corredor. Frases de apoio expostas ao longo da prova costumam ser bem-vindas pelos atletas. Mas há que ter discernimento; gente responsável precisa agir com responsabilidade, deixando o entusiasmo para os entusiasmados.
Dito isso, cabe ainda um comentário sobre a autoria da frase. Não sei qual a pesquisa feita pelos realizadores da prova. Talvez Lance Armstrong tenha efetivamente dito isso; ele já falou muita coisa. Mas a frase é por demais conhecida, já está no domínio público há anos, que fico com a pulga atrás da orelha e uso meu ceticismo jornalístico para duvidar da autoria.
Ainda que fosse do dito Armstrong, há ainda outro porém: será que uma corrida que se pretenda limpa e honesta deve citar alguém que foi condenado por trapacear no esporte, usando meios ilícitos para vencer?
Aliás, sobre frases, alguém lembrou o ditado popular dos meus tempos de infância, que dizia: “Tudo na vida é passageiro, menos cobrador e motorneiro”. (Motorneiro, para quem não sabe, era o “motorista” dos bondes)
Não tenho ideia de qual é o tipo de controle que a Asics (e os outras empresas cujos nomes aparecem no cartaz) tem sobre a organização e a realização da prova que leva seu nome. Tenho a impressão, porém, de que tais controles deveriam ser aprimorados…
Em quem já está com o corpo e psicológico abalados, esta frase é um tremendo desserviço. Por uma sucessão de falhas que cometi nas vésperas da prova, comecei a sentir fortes dores no Km 15. Quando cheguei ao Km 17 já planejava parar, porque meu corpo pedia isto. Depois de ler o malfadado cartaz um sentimento de culpa e constrangimento me invadiu a cada uma das 4 vezes em que precisei desacelerar e caminhar por alguns segundos, me forçando a tentar retomar o ritmo, mesmo que meu corpo não obedecesse. Terminei muito mal a prova, sentindo as piores cãibras da minha vida… Resumo: minha pior prova em 13 anos de corridas, porque estou certo de que deveria ter parado no Km 17. Sou seu fã e leitor assíduo do blog. Parabéns!
lucena. concordo. penso que lance quando disse (se disse) não pensou em aconselhar alguem, mas exaltar sua soberania como alguem que não pode ser alcançado pois (ele) não desiste nunca. desisitir de uma prova não é covardia é autoconhecimento. acredito que o pior erro de lance nao foi doping mas ser uma pessoa má.
Ler este texto foi um tremendo alento. Estou sem correr desde Maio para tratar uma lesão… É a vida!