Garota vence dupla maratona e bota marmanjos no chinelo
04/05/15 11:16Pela primeira vez na história do ultratriatlo, uma mulher venceu a etapa de corrida, deixando para trás homens mais fortes e experientes –que, na prova, não se provaram tão mais fortes assim.
Isso aconteceu no mês passado, em uma competição chamada UB515 –uma franquia disputada nas mesmas distâncias do Ultraman: 515 quilômetros divididos em 10 km de corrida, 421 km de ciclismo e uma dupla maratona (84,4 km), ao longo de três dias.
A autora do feito é uma jovem campineira, Luiza Tobar, professora de educação física de 27 anos que, nas horas vagas, gosta de brincar com seus três cachorros. Também aprecia um joguinho de baralho com a família e as horas passadas com o namorado.
No meio disso tudo, treina quando pode. E tem muito sucesso. Parte dele talvez se deva à genética: Luiza tem uma irmã gêmea que também é supercraque em provas de alta resistência. Cíntia, a mana igualzinha tal e qual, já fez provas de Ironman e é a recordista da ultramaratona Bertioga-Maresias (75 km).
Aliás, talvez por serem gêmeas as irmãs acabaram desenvolvendo uma certa timidez. Afinal, aonde iam chamavam a atenção. Luiza se protegia dos holofotes buscando a introspecção, mas se soltava na hora das brincadeiras ao ar livre, da queimada ao futebol.
No último domingo, saiu na Folha reportagem que fiz com ela (leia AQUI). Para produzir aquele texto, fiz uma entrevista bem mais longa, que apresento para você a seguir. Como você já sabe por que fui conversar com Luiza (fotos Karime Xavier/Folhapress), deixo a entrevista numa ordem cronológica, para que você possa acompanhar o desabrochar dessa atleta até a conquista da mais longa prova de sua vida.
RODOLFO LUCENA – COMO VOCÊ COMEÇOU NO ESPORTE?
LUIZA TOBAR – Fiz natação no clube quando era pequena e me lembro muitos das aulinhas e dos festivais infantis. Depois disso migrei para o vôlei, depois tênis e, finalmente, com 12 anos fui para a corrida. Meu pai é corredor e me incentivou desde pequena a correr. Corria com ele duas vezes na semana, no parque Taquaral, em Campinas, e aos domingos saíamos da minha casa e íamos até o clube de campo do Regatas, em Souzas. O percurso é de 12 km, com muitas subidas, e até hoje é meu percurso favorito em Campinas. Depois disso, não parei mais de correr, fui aumentando as distâncias e com 16 anos já corria nas provas de corrida de rua, tanto de 10km, 18km e 21km (nesta época podia).
QUAL FOI SUA PRIMEIRA CORRIDA? E HOUVE ALGUMA PROVA MARCANTE NA SUA ADOLESCÊNCIA?
A minha primeira corrida foi aos 16 anos, em Campinas, uma prova de 10 km tradicional, Corrida da Lua. Ainda existe e é noturna. Na época, corri e fiquei em décimo lugar no geral e primeira da categoria.
A corrida marcante na minha adolescência foi a Meia Maratona do Rio, que fiz com 16 anos, e depois voltei uns anos depois. Sou apaixonada pela cidade do Rio de Janeiro.
COMO VOCÊ DESCOBRIU O TRIATLO?
Me mudei para Florianópolis em 2006 para fazer faculdade de educação física na Federal. E aquela ilha é perfeita para correr. Continuei correndo e participando de provas. Até que em 2007 participei de uma ultramaratona que se chama Praias e Trilhas. São dois dias de corrida de montanha e praia, 42 km cada dia. Nessa prova, eu fiquei em segundo lugar geral, chamando a atenção de uma triatleta e treinadora que estava lá, Vanuza Maciel.
Ela me chamou para treinar triatlo e trabalhar com ela. Era estudante morando fora e mesmo assim aceitei o convite, porque a Vanuza me deu uma grande estrutura de treinamento: academia para nadar e treinar; me passava o treinamento; me pagava inscrições de provas, e em troca eu era estagiária na sua assessoria, ajudando-a principalmente, quando ela tinha que viajar para competir.
A Vanuza não só introduziu e me deu uma oportunidade de entrar para um esporte que eu jamais teria condições financeiras de bancar, como ela foi uma grande inspiração pra mim. As mulheres em nosso país, ainda são muito discriminadas e infelizmente existe muito abuso (diversos) e machismo. Pra mim, ser mulher e atleta, no Brasil, é sinônimo de inspiração.
VOCÊ PODE DAR EXEMPLOS DESSES ABUSOS?
No esporte, um exemplo clássico é o cenário de quando uma atleta mulher sai para treinar sozinha. Já acostumei, porque fico na rua desde pequena treinando, mas é um caos. Buzinas, comentários desagradáveis, etc.
Acho que o brasileiro não é acostumado a aceitar uma atleta que corre na rua e pedala nas ruas e estradas. Além disso, toda a vida me senti deslocada, como se minha mentalidade não se encaixasse com a dos brasileiros. Como se fosse uma estrangeira, porém nasci no Brasil.
COMO SE DESENROLOU SUA CARREIRA PROFISSIONAL?
Estudei educação física em Florianópolis e não pensava em sair do paraíso até o momento que me formei e percebi que as oportunidades para trabalhar na área lá eram muito limitadas e o retorno financeiro muito baixo.
Tomei a decisão mais difícil da minha vida, da qual me arrependo muitos dias, mas que foi feito: voltei para Campinas atrás de oportunidades e com o objetivo de me desenvolver mais profissionalmente. Terminei há pouco tempo uma especialização na Unicamp de treinamento de triatlo, e acredito que no caos de São Paulo existam melhores opções, ainda pra uma área tão desvalorizada.
Trabalho com o treinamento de corrida e triatlo a distância também, mas não acho que tenho o perfil de profissional para formar uma grande assessoria esportiva. Prefiro menos caos, treinar menos gente e melhor.
E SUA CARREIRA ESPORTIVA?
Assim que comecei o treinamento de triatlo, a Vanuza me pagou a inscrição do Ironman 2008, pois percebeu que eu realmente estava levando a sério. Fiz meu primeiro Ironman em Floripa, em 2008, e já conquistei a vaga para o Ironman do Havaí. Logo de cara.
A partir daí, não parei mais de fazer Ironmans. Hoje tenho 12 Ironman completados, sendo quatro vezes no Campeonato Mundial de Ironman (Hawaii). Mesmo assim, em 2008 e 2009 permaneci treinando paralelamente para ultramaratona – como é bom ser estudante! Rsss- e tive o prazer de competir a Volta à Ilha em dupla, duas vezes consecutivas, enfrentando duplas de homens e pegando pódium em ambas.
De todas os pódios e provas, o título mais importante pra mim foi o pódio que peguei em 2010 em Kona, Campeonato Mundial de Ironman, quando fui quinta colocada na minha faixa etária. Era o último lugar no pódio, mas para mim foi um feito grande, pois, fora a Fernanda Keller, não existe outra mulher brasileira que subiu no pódio nessa duríssima prova.
VOCÊ SE CONSIDERA UMA ATLETA PROFISSIONAL?
Não tenho patrocínio, apenas apoiadores (treinadores, academia, suplemento alimentar, nutricionista, loja de bike). Não me considero profissional, porque divido meu dia em trabalho, obrigações domésticas (não tenho empregada), estudo; faço tudo que uma pessoa comum faz, e não consigo ter o treinamento apropriado de um profissional (comer, dormir e treinar). Fora isso, não tenho nenhum retorno financeiro; apenas gastos.
Preciso trabalhar para pagar as contas, como qualquer pessoa. Encaixo treinos de madrugada e nos horários livres. A melhor hora do meu dia é na hora do treino; no entanto, minhas obrigações vem em primeiro lugar; os treinos eu vou encaixando ao longo do dia, e não deixo de treinar um dia!
COMO PASSOU DO TRIATLO PARA O ULTRATRIATLO?
Tenho 27 anos e sou considerada nova para fazer tanta prova de Ironman. Completei 12 provas de Ironman, e em outubro já estou indo para mais um Campeonato Mundial, no Havaí, pois classifiquei no ano passado na prova de Fortaleza.
Cheguei a um ponto da minha vida que estava brigando para abaixar meus tempos de prova, e isso não é e nunca foi a essência de quem eu sou. Precisava de um novo desafio. Precisava treinar com medo de não completar alguma prova. E encontrei nessa prova, a prova perfeita pra mim, tanto pelas distâncias, quanto pela filosofia. Cansei do desfile do triatlo, das pessoas, roupas, equipamentos, etc.. Precisava lembrar que o melhor de um esporte de elite, ainda existe, que é a simplicidade e superação.
Quando o treinamento para uma prova se torna tranquilo, e o objetivo se torna correr contra o tempo, o treinamento se torna vazio. A busca pelo aperfeiçoamento deve ser acima disso; tem que ter sentido, tem que ter prazer, e acima de tudo, verdadeiro.
O QUE VOCÊ TEM QUE LHE PERMITE SE DESTACAR NESSE TIPO DE PROVA?
Sou uma atleta de resistência desde pequena. Tenho resistência e sei que isso reflete nas minhas respostas fisiológicas ao esporte. Mas do que isso, sou pronta psicologicamente para esse tipo de competição. Sou pronta para imprevistos e erros, pois comigo acontece muito, o tempo todo, e mesmo assim sigo em frente, não desisto.
EM GERAL, EM PROVAS LONGAS ASSIM OS COMPETIDORES SÃO MAIS VELHOS…
Sou uma jovem em alma mais velha. Sou séria e centrada. Muitas pessoas que não me conhecem acham que sou brava, ou as vezes antissocial. Sou na minha. Levo tudo a sério. E acho que essas características e personalidade são necessárias para provas de resistência.
VOCÊ JÁ TINHA FEITA UM ULTRATRIATLO ANTES?
Nunca tinha feito uma distância dessas. Como o triatlo é muito caro, sigo o ano todo treinando, mas escolho a dedo as provas. No ano passado, fiz uma prova de triatlo no primeiro semestre (meio longa), a maratona do Rio no meio do ano e o Ironman Fortaleza em novembro.
Não tenho equipe de apoio enquanto compito. Geralmente levo alguém da minha família, ou namorado para torcer e estar presente comigo. Na prova UB515, que era uma prova aberta na rua, precisávamos, por segurança e logística -são 3 dias de prova- levar equipe de apoio.
Gostaria que minha irmã gêmea tivesse dado apoio (foto arquivo pessoal), porém ela está morando fora do Brasil desde ano passado. Assim, escohi dois amigos triatletas para uma função difícil e cansativa. O Bruno Zoauin e o Donga.
Eles não são pagos, pelo contrário: largaram o trabalho, me ajudaram com um monte de gasto (gasolina, comida, etc) e ainda vieram com o próprio carro me ajudar. Eles dirigiram, me deram comida, fizeram massagem; cuidaram de mim todos os dias ao longo dessa jornada e só tenho a agradecer pela equipe que formamos.
No último dia, o Donga, ficou os 84 km de mtb do meu lado, sem comer quase nada, me alimentando e dando água, literalmente todo minuto. Foi nítido em toda a prova, que os dois se doaram 100% a mim e a prova.
VOCÊ CHEGOU ADOENTADA PARA A PROVA. O QUE HOUVE? VOCÊ PENSOU EM NÃO LARGAR?
Na segunda-feira da semana da prova (que ia começar na sexta-feira), saí do trabalho vomitando e fui para o hospital. Tomei soro e remédios, e foi detectada infecção bacteriana. Comecei a tomar um monte de antibióticos e fiquei arrasada.
Não tomo remédio por nada, tenho aversão aos seus efeitos colaterais. Sempre que tenho algum problema, vou a meu médico homeopata. Terça-feira estava medicada e de cama, e parecia que tinha melhorado um pouco; no entanto, à noite fui novamente para o hospital. Não consegui atendimento de madrugada, e voltei para casa.
Poucas horas depois estava viajando rumo a Paraty, doente, passando mal.
Em nenhum momento pensei em não largar, pois a dedicação para essa prova tinha sido muito grande. Havia treinado e me sacrificado muito. Além de tudo, o gasto financeiro da inscrição, hospedagem, comida de prova, tinha sido muito alto.
Estava pronta para largar, mas sabia que poderia ter de abandonar a prova.
Agi contra os médicos e contra a minha mãe, mas eu tinha que pelo menos tentar. No último caso, poderia sair de ambulância para um hospital da cidade e parar a prova. Assim, quarta à noite decidi que pararia de tomar antibiótico, e na quinta-feira fiquei o dia todo tomando remédio homeopático. Sexta-feira cedo foi dada a largada.
COMO FOI O DESENROLAR DA PROVA?
A prova começa em Paraty (RJ). No primeiro dia, nadamos 10 km na praia do Pontal (cinco voltas no circuito) e pedalamos 145 km (Paraty-Ubatuba, Ubatuba-Paraty).
A largada foi às 6h da manhã de sexta-feira, 17 de abril. No primeiro dia, vesti um maiô com roupa de borracha para nadar, e ao sair da água vesti uma roupa de ciclismo velha mesma, com a qual estava acostumada a treinar. Optei por blusa de ciclismo mais fechada para que não queimasse do sol, pois no dia seguinte teria que competir de novo.
Do ponto de vista psicológico, estava pronta para desistir se necessário. Fui tranquila, prestando atenção ao meu corpo e observando como ele reagia ao exercício. Nadei concentrada, sem pensamentos, apenas concentração em nadar reto, e fazer o que tinha que fazer. Não tive medo em momento algum da água. Pelo contrário, o mar me acalma e me faz bem. Nadei cautelosa, e mesmo assim, saí da água num tempo bom e colocação boa. Nem esperava por isso.
Fui pedalar tranquila e no final do dia terminei em primeiro lugar feminino. Mal pude acreditar. Estava satisfeita e feliz já neste dia. O restante dos dias pra mim já nem me importava como seria, estava despreocupada.
E O DIA DO PEDAL? COMO É SEU TREINAMENTO?
No segundo dia acordei preocupada Rsss. Estava passando meio mal do estômago. Me preparei psicologicamente para um dia pior possível, onde achei que fosse vomitar e que pudesse me desgastar muito fisicamente. Mais um dia que estava pronta pra ter que parar, caso isso acontecesse.
Só que não aconteceu. Dada a largada, fiquei comendo muita batata com sal, e meu estômago melhorou. Me senti bem, e fui pedalando. Ao longo dos 276 km fui passando um monte de gente, sempre cuidando da alimentação e hidratação. Terminei o segundo dia melhor ainda, primeira mulher e sexta geral. Estava inteira, nem conseguia acreditar.
Treinei bastante para essa prova. A divisão do meu treino não tem modelo pronto. A cada dia, fazia dois treinos de modalidade e sempre mais um de fortalecimento. Meu treinador de triatlo é o Prof. Ricardo Dantas. Ele é pesquisador e professor acadêmico e um dos caras com maior conhecimento de treinamento de triatlo no país. Um grande exemplo de profissional de uma área em que existe tanta prática, tanto achismo e muito pouco estudo. O Ricardo tem doutorado e se dedica todos os dias ao laboratório de fisiologia e das aulas em faculdade.
Tenho um treinador de natação que se chama Samir Barel, e é especialista em águas abertas. Faço a combinação dos treinos dos dois treinadores.
Treino todos os dias da minha vida, e me preparo de maneira específica para as provas principais, que escolho a dedo, pois são caras, como Ironman, por exemplo. O restante das provas que faço, de maratona aquática, corrida de rua ou ciclismo, participo do que achar que vale a pena. De corrida de rua, geralmente ganho inscrições do Açaí Mill e Ross, um apoiador que me dá açaí todo mês, e que me incentiva a participar das provas de corrida de rua pelo interior de São Paulo.
De resto, não me preocupo muito em competir; amo treinar, e se não é possível participar dos eventos tanto quanto eu desejaria, já fico muito satisfeita em poder treinar e fazer simulados. Me viro com o que eu tenho, e agradeço ter a saúde pra isso.
PELO QUE ME DISSERAM, VOCÊ FOI A PRIMEIRA MULHER A VENCER A ULTRAMARATONA NA HISTÓRIA DO ULTRATRIATLO. É ISSO MESMO? E QUANDO COMEÇOU O ULTRATRIATLO?
Sou a primeira mulher do mundo a ganhar a dupla maratona (84,4 km) em uma prova de ultratriatlo. O Ultraman nasceu no Havaí em 1983, e a prova é baseada em 3 conceitos “aloha” (love: amor), “ohana” (family: família), and “kokua” (help: ajuda). Um dos conceitos da prova: “We came together as strangers, competed as friends, we part as brothers and sisters.” (Gerry van de Wint) [Chegamos como estranhos, competimos como amgos e nos separáramos como irmãos e irmãs]
Em 1993, o segundo Ultraman foi organizado no Canadá e se tornou um evento de classificação para aqueles que querem competir no Havaí (Campeonato Mundial de Ultraman). Hoje, essa prova não é mais uma classificatória.
Um terceiro evento se iniciou em 2011 no Reino Unido, e aconteceu por três anos consecutivos. Em 2014 surgiu o Ultraman Florida, e em 2015 surgiu o Ultraman Austrália.
Há eventos com a mesma distância, mas sem a chancela Ultraman, que são as provas 515, realizadas no Canadá, Brasil, Porto Rico, Texas e Mallorca. Elas não classificam para o Havaí. São provas com número limitado de participantes (geralmente, máximo 40).
VOLTANDO AO UB515, CONTE COMO FOI SUA CORRIDA. O QUE VOCÊ PENSA QUANDO CORRE? POR QUE VOCÊ CORRE?
Quando corro, não penso em nada. Eu corro porque faz parte de quem eu sou. Não consigo pensar em um dia sem correr. Correr é terapia, é alegria, é felicidade, é desafio, é companhia, é a melhor forma de me expressar.
Meu treinamento de corrida é normal. Faço treinos de tiros, intervalados, fartlek, contínuo progressivo, soltura, ritmo de prova, cross country… Emalgumas semanas corro todos os dias, algumas semanas não. Depende do foco da semana, depende de como está a minha rotina.
Não consigo pensar em mim sem associar á corrida. É um hábito que virou necessidade, como escovar os dentes; e um esporte que virou vício.
E A PROVA? PELO JEITO, VOCÊ CORREU SOZINHA O TEMPO TODO…
Sim, corri sozinha o tempo todo. O percurso se inicia em Santa Cruz. O lugar é meio barra-pesada. O percurso começa na cidade, com um pouco de subida curta, logo entramos na ciclovia e um trecho plano até o km 21. Depois entramos em um braço da corrida de ida e volta para completar os 42,2 km. Essa parte é quase toda plana, com algumas ondulações, o chão é meio ruim de correr, mas nada demais.
No km 42m entramos numa serra bem inclinada e que parece sem fim. São apenas 2 km de subidas, mas parece eterno. Depois da descida, entramos num outro braço da corrida de ida e volta, que também é basicamente plano, com poucas ondulações e o asfalto ali é liso e muito bom.
Após este trecho entramos numa pequena serrinha com ondulações um pouco mais acentuadas, e por fim terminamos na orla do Rio de Janeiro, nas ciclovias da orla e na ciclovia da reserva da Barra.
Prestei atenção na paisagem sim, e não pensava em nada. Apenas corria e aproveitava o momento. Me concentrava em mim e no que eu precisava beber e comer… Em alguns momentos pensei: “Não é possível que estou liderando nesse ritmo devagar. A galera não treinou direito. Eles não sabem treinar específico”. Rssssss. Mas a grande parte da prova, eu não pensei em nada, apenas fui correndo e aproveitando o momento. Me concentrei no momento, porque também o trânsito era aberto, tinha que ser esperta e prestar atenção com tudo.
NO RANKING GERAL, VOCÊ CHEGOU CERCA DE UM MINUTO ATRÁS DO SEGUNDO COLOCADO. SE TIVESSE SIDO UM SEGUNDO POR QUILÔMETRO MAIS RÁPIDA, ESTARIA COM A MEDALHA DE PRATA FÁCIL. O QUE VOCÊ PENSA DISSO?
Penso que parei várias vezes pra fazer xixi. Na prova, temos que seguir as regras de trânsito. Parei duas vezes nos semáforos do Rio de Janeiro, para atravessar as ciclovias (da orla para o outro lado da avenida e depois voltar). Nos semáforos, fiquei cerca de 2 minutos’ ou mais. Muito demorado eles.
Então me considero vice-campeã mesmo não sendo.
Isso pra mim não tem grande importância. Fiz uma prova muito além do que imaginava, e mostrei para os marmanjos que uma menina sabe correr. Além disso, ao longo dos três dias, em todas as chegadas, percebi de alguns homens um certo desrespeito; me julgaram errado.
De certo eles pensavam que a prova ia me colocar no meu devido lugar. Não que eu liguei para este tipo de coisa, pois acontece o tempo todo, em todo o lugar. Mas os homens brasileiros são muito machistas e não admitem perder para uma mulher, ou sequer chegar perto de uma. Isso é um cenário muito comum pra mim. E foi incrível a lição de humildade que foi dada a eles.
VOCÊ PODE DAR EXEMPLOS DESSE MACHISMO? E QUAL ERA A SUA REAÇÃO?
No final de cada dia de prova, a felicidade estava clara em minha face, somada ao fato de eu ter terminado todos os dias bem colocada entre os homens e em primeiro entre as mulheres.
Em todos os dias que estava na massagem, vinha algum homem falar: “Ah, hoje foi fácil, você vai ver amanha”. E assim seguia.
No segundo dia: “Ah, hoje foi tranquilo, amanha é o que bicho pega”. E isso pra mim é comum. Eu simplesmente ignoro, porque eu tenho fé em mim e me conheço. Se você não coloca fé em mim, e nem me conhece, fique quieto. Acho desagradável. E isso é comum.
Já fiz ultramaratona, e em um dos postos de hidratação, um atleta me pergunta, como é que eu vou fazer essa prova sozinha.
Eu fico indignada com homens que não aceitam perder de mulher. Eu simplesmente viro as costas e saio correndo –lógico, na frente deles.
O QUE VOCÊ GANHOU COM A VITÓRIA GERAL NA CORRIDA?
A prova não dá premiação em dinheiro. O que eu ganhei foi muito mais do que um primeiro lugar feminino e um terceiro geral de uma prova, ou qualquer título. Foi o resgate de quem eu sou; foi a comprovação de que nada é impossível no esporte e na vida.
O QUE VOCÊ QUER DA VIDA?
Quero conseguir permanecer no esporte ao longo de toda a vida. Me vejo com 80 anos fazendo Ironman, e espero que consiga casar, formar uma família e poder compartilhar com as pessoas aquilo que mais amo: o esporte.