A incrível e amedrontadora experiência de correr com o braço entalado
14/01/15 07:16Pois corri. Os pontos no local da cirurgia estão grossos, escuros de sangue velho. A mão toda anda meio boba, e o ferimento de vez em quando deixa escapar algumas gotas de sangue. Qualquer movimento errado pode jogar por terra as conquistas feitas até agora. E eu não sei exatamente o que qualifica como movimento errado. Mesmo assim, fiz no dia 13 de janeiro minha primeira corrida como ex-operado, paciente cirúrgico, o homem dos cotos suturados, do tendão.
Foi uma aventura, mas programada, planejada e devidamente autorizada pelo cirurgião João Carlos Nakamoto. “É melhor a gente botar logo você para correr, antes que a depressão prejudique a recuperação”, ele disse (não gravei, mas a frase foi mais ou menos essa).
De fato, eu já estava mais por baixo que c* de cobra (perdoe mon fraçais, s`il vous plait). Não tanto pela dor, mas pela vergonha e humilhação de ter me cortado do jeito que me cortei. Num descuido estúpido, a faca escorregou e rasgou metade do meu dedo indicador esquerdo. O médico que fez o atendimento de urgência, de forma inacreditável para seus colegas que me viram depois, não percebeu que um dos tendões havia sido cortado.
O resultado é que, quando o ferimento foi adequadamente examinado, tive de ir em seguida para a cirurgia. Cada hora perdida era uma hora a mais de cicatrização dos cotos do tendão –quanto mais cicatriz, mais difícil o conserto. Mas a operação é simples, ainda que delicada e exigente de muita precisão: encontrar as pontas do tendão rompido e costurá-las.
Isso foi feito. Mas não há nenhuma certeza de que o dedo vá recuperar os movimentos perdidos. Os cuidados na assepsia do local e a dedicação aos exercícios de reabilitação, executados corretamente e amiúde, é que vão dizer. Erro para trás, erro para a frente, excesso de força, força de menos, e o tendão rompe ou cola em algum lugar indevido. Fica tudo com dantes ou pior.
Por isso, desde o dia da cirurgia, na semana passada, estou com uma tala que imobiliza a mão e o punho. Ela vai ficar comigo pelos próximos três meses, em que vou ter de aprender a viver, trabalhar e correr com apenas uma mão ativa.
Os exercícios começaram na segunda. À noite, quase não dormi pensando na corrida que eu faria, imaginando o trajeto, escolhendo a roupa que iria usar, pensando em como fazer para levar o relógio –não cabe no pulso esquerdo, e não teria como acioná-lo se o colocasse no direito. Preocupações que os donos de duas mãos ativas nem sequer sonham existir.
São muitos os problemas e os cuidados. Ao acordar, por exemplo, não posso me espreguiçar. Isso tensiona o antebraço, onde começam os tendões da mão, e qualquer tipo de esforço do tendão está proibido. Às cinco e meia de ontem, parei o movimento em cima do laço: o braço direito já estava se estendendo, o esquerdo começava a se mover, eu ia tentar fechar a mão sem lembrar do ferimento.
Levantei e tentei fazer sozinho o máximo possível. Escovar os dentes é moleza, todos nós usamos apenas uma mão para isso. Mas como um maneta coloca a pasta na escova de dentes? Eu primeiro encostei a escova na borda da bacia da pia, usando a caixinha de fio dental para mantê-la na posição. Depois deitei o tubo na pia e fui pressionando para que a pasta ficasse bem na ponta. Daí segurei o tubo com dois dedos e usei um terceiro para erguer a tampa. Finalmente, pressionei o conjunto para que a pasta saísse. Até agora não consegui ser preciso nisso: sempre que corto o fluxo, cai um pouco de pasta para os lados, sujando a pia. Para limpar, uso num pedaço de papel higiênico: cortá-lo com uma mão só também é um exercício de paciência…
Fazer o chá também é fácil, desde que a gente fique atento e tome todos os cuidados, fazendo uma operação de cada vez: pegar a chaleira, levar a chaleira para a pia, tirar a tampa da chaleira, abrir a torneira, fechar a torneira, colocar na chaleira o sachê de chá, tampar a chaleira, levar a chaleira ao fogão, acender o fogo…
Aliás, um salve geral para quem inventou o mecanismo de acendimento automático do fogão! Cada vez que vou para a cozinha e tenho de ligar o fogo nessa minha nova condição, lembro-me de uma sensacional entrevista feito pelo pessoal do “Pasquim” com um sambista carioca.
É, eu sou velho assim, de ter lido o “Pasca” no original. E também para ser incapaz de recordar o nome do cantor ou compositor entrevistado. O certo é que se tratava de um sujeito sem braço, pois o detalhe que me ficou na memória é que, a certa altura da entrevista, o artista deu “uma sensacional demonstração de como acender um fósforo com uma mão só”.
Nem sonho em chegar a esse grau de habilidade, mas pretendo, pelo menos, ser capaz de amarrar os cadarços dos tênis. Quem sabe um amigo meu, que não tem parte de um braço e é triatleta com sonhos paraolímpicos, possa me dar umas aulas…
Pois tirando a tal amarração, consigo me vestir sozinho, descascar banana com os dentes e os dedos e preparar minha meleca matinal (banana amassada com granola). Assim fiquei pronto para meu primeiro treino.
Deveria ser mais curto e menos intenso do que sessões anteriores, para que eu pudesse prestar atenção no braço, cuidar do dedo e garantir (???!!!) que o tendão não sofresse nenhuma tensão involuntária nem recebesse ordens descuidadas.
Foi muito bom. Comecei caminhando 400 metros em ritmo acelerado, completando o primeiro bloco de 1.500 m com um trote leve de 1.100 m, no asfalto plano e razoavelmente seguro do parque Villa Lobos, na zona oeste paulistana.
Não sei se o corpo todo se compadeceu do dedo, o certo é que não tive dores outras. Fiz o segundo bloco descansado e até me desafiei no terceiro –coisa que me era proibida, mas como correr sem criar metas, contendas, lutas consigo mesmo? Corri um dos quilômetros “limpos” (sem interferência da caminhada) em 6min21, e meu relógio novo, que carreguei na mão direita, me presenteou festejando o que ele disse ser um novo recorde pessoal para a distância.
Bobagem! Meu prêmio estava no meu suor….
Vamo que vamo!!!
PS.: Desta vez não comecei o texto pedindo desculpas por, novamente, trazer à sua vida minhas questiúnculas pedestres; o que faço agora, adiantando que espero parar por aqui esses relatos de cunho tão particular. Não posso deixar de agradecer, porém, a você e a todos os leitores que, neste espaço ou nas redes locais, mandaram votos de rápido restabelecimento. As mensagens alegram este velho corredor, esquentam o coração e dão incentivo para que a luta continue. Aliás, aproveito para anunciar que, em breve, vou poder divulgar uma novidade no terreno do desafio pessoal. Sua companhia, como sempre, será muito importante.
Rodolfo, de minha parte (que não quer dizer muita coisa), você pode continuar a escrever suas “questiúnculas pedestres” sempre que você quiser. Mas deixo claro que falo como fã. Risos. E vamos que vamos!! P.S.: Amo correr, mas estou parado para me dedicar aos estudos pois vou tentar concursos públicos. Sei o que é parar de correr o que isso mexe com nossa mente e corpo… Que seja breve e total sua recuperação. Nos vemos no asfalto em qualquer lugar deste mundo. Abraços.
Muito obrigado. Vou contando as minhas histórias e também as dos outros. Abraço
Olá, Rodolfo! É a primeira vez que comento o teu blog, mas leio sempre que posso. Adoro o jeito que tu escreves e penso que não há motivos para pedir desculpas por “relatos de cunho particular”. É interessante ver um corredor não desistir da atividade que ama devido a um acidente que pode acontecer com qualquer um de nós. Para mim, é motivador, pois parei de correr por inquietações pessoais e desejo recomeçar, do zero. Melhoras para você! Que tu encares essa dificuldade temporária como um desafio para alcançar tuas metas e provar, depois que tudo for superado, que és melhor que antes e insistiu no que acreditavas =)
Seja bem-vinda. O espaço de comentários está sempre aberto. obrigado pelas gentis palavras e pelos votos de melhoras. Estou lutando para isso
Já superou essa… todos nós somos corredores de obstáculos (e não sabemos)!