A importância do dedo indicador esquerdo para a corrida de longa distância
08/01/15 08:56Perdão, prezado leitor, estimada leitora, mas esta mensagem tem caráter pessoal. Volto a compartilhar com você um pouco das agruras de minha vida de corredor constantemente machucado –e constantemente em busca de recuperação.
Que a maratona não perdoa a falha, o descuido, o desleixo ou mesmo a incompetência, já sei há muito tempo. Foi um aprendizado à base de cicatrizes. Descobri recentemente –e da pior maneira possível—que falhar ao preparar o jantar da família também pode impactar profundamente o ato de correr.
Estava eu nos prolegômenos de um assado quando o desastre se deu. A enorme faca de churrasco escorregou nas gorduras da costela, derrapou na curva das nervuras expostas e só parou ao encontrar a carne macia e suculenta de meu dedo indicador esquerdo. Foi só a pontinha, talvez um pouco mais, mas, com a força que vinha, a ponta da faca abriu um rasgão de bom porte, de onde espirrou sangue para inundar a cozinha.
Devo deixar claro: não foi acidente. Fiz tudo errado desde o início. Dava para ver que o enorme pedaço de costela não caberia inteiro no pirex escolhido para conter o assado. Mesmo assei, coloquei a carne lá, no fundo já devidamente azeitado. Quando resolvi dividir a peça para que o cozimento fosse mais homogêneo e a apresentação do prato ficasse melhor, resolvi não perder tempo com coisas de somenos, como buscar uma tábua para corte…
Segurei o touro pelos cornos, digamos assim, sustentando com a mão esquerda a costela dobrada ao meio. Com a mão direita, segurei firmemente o facão novo, que estava para ser inaugurado naquele jantar, ajeitei o dito cujo sob a dobra da costela, com o corte para cima, e o empurrei com vigor e entusiasmo.
Deu-se o que se deu. O primeiro instante não foi nem de dor: foi de estupor. O que eu tinha feito?, perguntei a mim mesmo enquanto olhava o sangue a jorrar sem saber o que fazer. Conferi para ver se não tinha sido cortada alguma peça que fosse visivelmente muito importante, se o dedo estava inteiro, e tratei de colocar a mão sob um forte jato de água.
Dói, arde e não alivia em nada, não para a sangueira!. Coloquei o dedo para cima, para o lado, apertei o pulso: nada. Panos de pratos limpos foram ficando encharcados de sangue, enquanto eu resistia aos apelos da família para ir direto ao pronto socorro. Em instantes, percebi que aquilo não iria se curar sozinho, e lá fomos nós em busca de conserto para a c***** do cozinheiro.
A bem da descrição factual, não era um pronto socorro, mas uma pequena clínica 24 horas –a única da localidade em que eu estava–, onde há 25 anos milita o mesmo médico, um simpático e conversador setentão de barba e cabelos muito mais brancos que os meus.
Não vou entrar em detalhes nem fazer acusações. O certo é que, graças aos cuidados iniciais –e ao bom trato posterior que eu mesmo dei ao pobre dedo–, o ferimento não infeccionou nem apodreceu nem fedeu nem supurou. Mas também não ficou curado, pois –e isso o médico do pronto atendimento não percebeu problema não era apenas o corte, mas a consequência do corte.
Ao rasgar pele, carne e vasos sanguíneos, a faca também atorou um dos tendões que são os responsáveis pelos movimentos dos dedos. Em consequência, fiquei incapaz de controlar o movimento da ponta do indicador da mão esquerda: ele fica lá, impávido colosso e, por mais que eu comande: Dobra! Dobra!, continua em riste.
Nunca antes na história deste corredor eu tinha percebido a importância da pontinha do indicador esquerdo. O pior é que os outros dedos, acostumados à garbosa companhia, demoram um tempão para aprender a assumir funções por ele exercidas: passar fio dental, por exemplo, se transforma numa ginástica; acionar o desodorante vira verdadeira musculação para o dedo médio.
Pode parecer risível, mas tente para ver como é.
Bom, resumo da história. Ontem me encontrei com uma turma de ortopedistas que, antes mesmo de me cumprimentarem, já tinham percebido o defeito do dedo. Mal eu sentei à mesma, já recebi o diagnóstico: tem de operar. E com urgência. Já havia se passado mais de uma semana do acidente (não foi acidente, foi erro), cada hora era um prejuízo a mais para as chances de recuperação, pois o tendão atorado estava em processo de cicatrização (dói bastante, o dedo incha, a mão fica avermelhada, quente…). Se isso se consolida, às vezes nem uma simples cirurgia resolve; o processo de conserto pode envolver várias operações.
E assim é que daqui a poucas horas estarei mais uma vez em uma sala de cirurgia –as outras operações foram há mais de 40 anos e já estão perdidas na memória, ainda que o corpo carregue suas cicatrizes. Estou louco de medo da anestesia geral e com mais medo ainda da dor que vou ter depois –o cirurgião me garantiu que terei dor no ferimento…
O pior é que isso me deixa mais uma vez sem poder treinar. Já não bastou a semana que fiquei de molho enquanto o ferimento começava a fechar (fiquei com o dedo protegido, entalado, sem movimento –tudo errado, segundo os médicos que agora me atendem), agora será mais uma semana sem ação.
Depois, tudo vai recomeçar aos poucos, de forma supercontrolada. E a mão ficará imobilizada. Qualquer movimento do dedo provocará o rompimento dos pontos, novo estouro do tendão, com prognósticos sobre os quais nem é bom pensar. Será um mês de tala, sempre sob essa ameaça.
Talvez pela metade da semana que vem eu possa girar na bicicleta estacionário, mas sentado, de modo que a mão fique para cima. Vai ser um saco. Vou engordar mais ainda. O humor, a autoconfiança e a autoestima, que já não estão lá essas coisas, vão para a sarjeta, nuvens negras dominam o horizonte mental e é melhor nem continuar escrevendo sobre essa seara…
O pior é que a gente não aprende nada com isso. “Viu, você deve cortar a carne sobre uma tábua”, diz alguém; “o fio da faca deve ficar sempre na direção oposta ao corpo”, recomenda outro. Alguém acha que eu não sabia ou não sei isso? Durante 57 anos nunca me feri manuseando equipamentos perigosos nem deixei cair objetos cortantes, pontiagudos ou pesados. Agora, errei e tenho de conviver com isso.
A experiência está me ajudando em um ponto, talvez. Posso entender com mais clareza o esforço que fazem os atletas com necessidades especiais. Vendo o quanto um defeito na ponta do dedo indicador da mão esquerda impacta minha habilidade de atuar, correr e viver, posso ter uma pálida ideia do que sofrem e de quão enorme é a conquista dos amputados e de todos os homens e mulheres que enfrentam no dia a dia a luta por uma vida plena, mesmo que seus corpos não sejam inteiros. A todos eles, meu respeito e admiração.
Vamo que vamo!
Rodolfo! Estou lendo agora o seu texto! Espero que tenha corrido tudo bem na cirurgia. Apesar de tudo, espero que este ano seja de muitas realizações! Que a recuperação seja breve! E vamo que vamo!
Obrigado, Mayumi, já estou começando a luta pelo retorno.
Experimente não levar a corrida tão a sério, principalmente eliminando as competições, correndo apenas pelo prazer de correr. Tudo fica mais leve, você pode engordar um pouco e até cortar o dedo, sem se procupar com treinamentos, perda de desempenho e outras bobagens.
Boa tarde, Rodolfo.
Sou gremista de POA, fui aluno do Roque, e também sou um corredor, digamos, pesado (rs…). Sempre acompanho o teu blog, gosto muito do teu texto. Queria adquirir o Maratonando, mas está esgotado …
Desejo melhoras na tua recuperação.
Grande abraço.
Excelente texto! Aqui vai o meu respeito e admiração, Lucena!
Puxa, lamento pelo seu “erro”. Só me resta desejar uma rápida recuperação.
Sinto muito pelo ocorrido Rodolfo, mas o texto ficou excelente! Faça a cirurgia e volte novamente; não será a primeira vez. 😉
abs
Paulo