Aos 90, bisavó quebra três recordes mundiais em um só campeonato
14/09/14 11:33Hoje trago para você uma entrevista com uma campeã mundial. Mais do que isso, uma guerreira da vida, uma das sensacionais atletas amadoras com quem já tive oportunidade de conversar. Ela não é corredora, mas mesmo assim serve de inspiração para todos nós.
Conversei com ela há uns 20 dias, no seu apartamento no Rio de Janeiro. Ele mora sozinha, mas às vezes é incomodada pelo Felipão. Trata-se de um cactus gigante, que fica postado perto da janela. Se a atleta não se cuida, cada vez que vai olhar para fora fica arriscada a se encostar no Felipão e sair toda espinhada.
“Dói”, ela me diz, enquanto arranca alguns espinhos do braço depois de ter mostrado para mim os fundos do prédio, que tem um quintal grande e arborizado.
Bom, chega de conversa. A seguir vai a entrevista que fiz com ela; uma versão reduzida deste texto saiu neste domingo (14.9) em Esporte, na Folha (leia aqui).
Nora Tausz Rónai tem duas filhas, quatro netos, seis bisnetos e três recordes mundiais de natação. Os herdeiros e descendentes gerou ou viu nascer ao longo das últimas seis décadas; os recordes vieram todos de uma vez, agora há pouco, meses depois de a elétrica senhora ter completado 90 anos.
Foram registrados na 15ª edição do Mundial de masters da Fina, a Federação Internacional de Natação, realizado em Montreal, no Canadá, de 27 de julho a 10 de agosto último. Lá, a arquiteta aposentada não apenas derrubou marcas como também desbravou piscinas: foi a primeira mulher de mais de 90 anos a nadar os 200 m borboleta em um Mundial (completou em 8min52s22).
Também sagrou-se recordista mundial, categoria 90 a 94 anos, no 400 m medley (14min12s52) e nos 100 m borboleta (3min39s.01). Em provas individuais, ainda trouxe ouro nos 50 m borboleta e nos 200 m medley.
Nora nasceu em 29 de fevereiro de 1924 em Fiume, então território italiano (hoje Rijeka, Croácia). Fugindo ao fascismo, a família Tausz chegou ao Brasil em 1941 depois de aventuras várias, que incluíram salvar o pai e o irmão de Nora de um campo de concentração de Mussolini.
No tempo de faculdade, dedicou-se aos saltos ornamentais: “Fui bastante boa para nove anos seguidos ser campeã carioca; fui campeã brasileira e vice-campeã sul-americana. Para gasto doméstico, dava”, diz. Depois, o trabalho, a família que construiu com o crítico literário Paulo Rónai (1907-1992) e as exigências da vida a tiraram do esporte competitivo.
Só retomou como veterana, aos 69 anos. E recomeçou vencendo: mesmo nadando com o pé quebrado, foi campeã no primeiro Sul-americano de masters, realizado em Belo Horizonte em 1993.
Hoje suas medalhas e troféus conquistados pelo mundo afora –já foi a seis Mundiais- enchem gavetas e estantes de um armário no apartamento em um elegante prédio de Botafogo, onde vive sozinha. Foi lá que ela recebeu a Folha para contar um pouco de sua experiência. A seguir, alguns trechos da conversa (foto Zô Guimarães/Folhapress).
APRENDIZADO – O início da natação foi quando eu nasci. Minha mãe dizia que eu nasci nadando. Nunca ninguém precisou me ensinar a nadar. Eu sempre nadei… A minha mãe, Iolanda, era uma tremenda nadadora de peito. Se fosse hoje, seguramente seria campeã olímpica. Ela era forte, tanto assim que nós, crianças fazíamos travessias longas, de quilômetros, ao lado dela, no mar. Se a gente cansasse, se segurava nela e ela aguentava. Duas crianças, eu e meu irmão mais velho.
COMPETITIVIDADE – As crianças que estavam à mão eram o meu irmão, os meus primos e os amigos deles. Então eu praticamente me eduquei só entre meninos. Mas eu era a melhor nadadora.
As brincadeiras deles eram competição: quem cospe mais longe, quem pula do degrau mais alto. Eu competia com eles em tudo. E ganhava. Eu precisava ganhar dos garotos porque era mais nova e era menina. Então, para conservar o prestígio, eu tinha de ganhar.
ESGRIMA E PISCINA – Chegamos aqui com uma mão na frente e outra atrás. Tivemos de nos virar de alguma maneira. Logo que conseguimos uma certa situação, talvez em seis meses ou um ano, meu irmão e eu nos inscrevemos no Clube de Ginástica Português, porque meu pai era esgrimista, entre outras coisas —ele também fazia regatas. Eu fui fazer esgrima, florete, e meu irmão, sabre. Meu pai era de sabre. Mas florete, para mulher, é melhor porque é mais leve.
Somente que a gente não contou com o verão do Brasil. Quando o verão veio, o uniforme, a máscara de arame, tudo esquenta. A gente ficava muito acalorado, nós todos, os esgrimistas, a turma do professor Jaime. Então subíamos para uma piscina que o clube tinha no último andar.
Era uma boa piscina, com raias e até trampolim de um metro e de três metros. Somente o problema era que, quando acabava a aula do professor Jaime, acabava tudo, porque era de noite, e se fechava a piscina também. Mas aí a gente conversou com a dona Augusta, e ela mandava todo mundo embora, como se fechasse, mas deixava a gente entrar na piscina. Então a piscina se tornava o nosso mundo.
SALTOS ORNAMENTAIS – Entre os caras que faziam esgrima conosco tinha o Eduardo Guidon da Cruz, que, além de tudo o mais, era octacampeão carioca de saltos ornamentais. E eu era muito interessada: “Senhor Guidon, como se faz esse salto?”. Ele dizia, eu ia lá e puff!, caía que nem um saco de batata.Acabava cheia de equimoses, de tanto apanhar caindo do trampolim de três metros. Mas eu aos poucos fui aprendendo. Um dia ele disse: “Olha , já que você está nisso, eu sou do Fluminense, você não quer saltar em competições pelo Fluminense?”
Eu queria, claro. Aí já não dava para eu fazer a sério esgrima e saltos ornamentais porque, entre outras coisas, eu também tinha de trabalhar. Naquela época, eu vendia cremes de porta em porta, para poder sobreviver. Logo depois eu me empreguei como desenhista de arquitetura. Já que era desenhista, depois me inscrevi na Faculdade de Arquitetura da Universidade do Brasil, que agora é a UFRJ.
OLIMPÍADA DE 1948 – Comecei a saltar com 21 anos. Para ser realmente competitiva internacionalmente em saltos era tarde, porque as meninas boas vão de 15 a 18, 19 anos, porque têm mais flexibilidade. Mas, considerando minha provecta idade, na época, eu era bastante boa. Bastante boa para nove anos seguidos ser campeã carioca; fui campeã brasileira, vice-campeã sul-americana etc. Para gasto doméstico, dava.
Para internacional, foi o seguinte… Eu iria, teria ido para a Olimpíada de Londres, em 1948. Mas teria de fazer um certo número de pontos, um índice. Numa escala de 90 pontos que eu precisava fazer para o índice, eu fiz 89,93. Quer dizer: quase. E fiz porque não tive tempo de treinar, porque já estava na faculdade.
Era época de provas parciais. Eu não ia perder um ano de faculdade para treinar um pouco mais. Não estava nos meus planos. Eu tinha urgência de me formar e ganhar um pouco mais, porque tendo o título de arquiteta eu poderia ganhar melhor. Eu já estava fazendo trabalho de arquiteta, mas, como era desenhista, era um pouco explorada.
Todo mundo ficou com uma pena muito grande. Os jornais escreveram que deveriam me dar uma nova chance… E a Federação argumentou que havia um número muito certo de passagens e custava muito e, se abrissem exceção para mim, teriam de abrir para todos os outros e isso e aquilo.
Tá bom. Cara, quando a equipe foi, foi com um monte de paredros [cartolas] que você não pode nem imaginar… Presidentes de clubes, vice-presidentes, as mulheres dos paredros, os filhos dos paredros, as babás dos filhos dos paredros, mas eles não tiveram uma passagem para eu poder ir.
Isso me doeu muito e me dói até hoje.
PIOR DERROTA – Foi em saltos ornamentais no Sul-americano de Montevidéu, contra a Eleonora Schmidt. Ela era melhor do que eu em trampolim, mas eu era melhor em plataforma de dez metros. O último salto era igual para nós duas, um e meio mortal em voo. Ela, como era mais sábia, escolheu um e meio mortal grupado; e eu escolhi o um e meio mortal carpado, que era mais difícil. Eu entrei faltando [mostra com as mãos a entrada errada na água], ela entrou agulhando, pá!
Os juízes me tiraram tanto da nota que por décimos eu perdi o campeonato. Eu fiquei furiosa. Claro, dei os parabéns para ela. Mas no chuveiro eu chorei tanto… Eu era nova, foi em 1949, tinha 25 anos. Chorei muito… Mas hoje não choraria. Cheguei à á conclusão de que é tudo brincadeira. É a continuação das brincadeiras que eu fazia quando criança, com os outros meninos.
INTERVALO NÃO ESPORTIVO – Até grávida cheguei a saltar, até o quarto mês de gravidez. Eu tinha 29 anos e meio quando a Cora nasceu; estava com 31 e meio quando a Laura nasceu. E vinham essas meninas de 15 anos saltar. Resolvi parar, porque você não aguenta. Eu já estava saltando de plataforma de dez metros, que é melhor porque você tem mais tempo para desenvolver o salto.
Foi quando desisti. Tinha que tomar conta da casa. Meu pai, já viúvo, morava com a gente. Eu era dona de casa, era professora, era arquiteta.
Então teve um período de uns 30 anos em que eu não fiz exercício nenhum. Eu realmente gostava de me mexer. Era até infantil, mas eu sentia vontade de fazer. Quando ia na rua e havia umas bolotas para evitar que as pessoas atravessassem, eu ficava pulando de bolota em bolota… Essas coisas, assim, o que podia fazer, pular cerca. Eu fazia qualquer coisa… Era infantil, mas me dava prazer.
REÇOMEÇO – Voltei a nadar quando o Paulo [Rónai] estava muito doente. Ele ficava no sítio em Friburgo. Vinha uma médica que era muito dedicada. Ela me disse que tinha sido nadadora do América Futebol Clube, eu contei que também nadava. E ela disse que a gente poderia nadar ali em Friburgo, na nova piscina do clube Pulo N`Água. E o Paulo, que já não podia falar, porque tinha câncer na laringe, bateu palmas, mostrando que apoiava. Ele sempre me apoiou em tudo o que eu quisesse fazer.
SUL-AMERICANO MASTERS 1 – Apareceu por lá [Friburgo] uma turma do Clube de Regatas Icaraí, de Niterói. O Gastão Figueiredo, que era um grande nadador, mundialmente reconhecido, a mulher do Figueiredo, o Luiz Sodré, também ótimo nadador, faziam palestras sobre natação master. No final, o Gastão me chamou: “Olha, eu vi você nadando por aí, você nada direitinho”. Eu digo: “Muito obrigado”. E ele: “Você não quer nadar pelo Icaraí? Daqui a um mês tem um campeonato sul-americano em Belo Horizonte, e nós arranjamos com a Prefeitura um ônibus e vamos de graça. Você não quer ir com a gente?”. “Eu vou”, respondi.
SUL-AMERICANO MASTERS 2 – O campeonato foi no Minas Tênis Clube. As arquibancadas eram pintadas de cor de rosa, sem nenhuma diferença, e os degraus eram um pouco mais altos que os degraus comuns. Eu não estava acostumada: faltou um espaçozinho, eu botei o pé e naquela hora senti uma dor violenta no pé direito e sentei, porque me doeu muito. Quebrei o pé.
Fui a uma clínica ortopédica logo ali ao lado, o cara queria engessar. Eu disse: “Não senhor, porque eu tenho de nadar, estou inscrita”. Aí ele me botou uma tala que eu podia tirar e eu nadei o campeonato com o pé quebrado.
Consegui o primeiro lugar, naturalmente, em peito, e o segundo em crawl. Não nadei o 800 m, que eu teria ganho seguramente, porque sei do meu tempo, porque o médico da nossa seleção me proibiu. Àquela altura, meu pé já estava roxo, inchado, mas eu ia lá, pulava numa perna só. Nadei bastante provas, tive várias medalhas nesse sul-americano. Mas não fui um espanto porque doía.
TREINAMENTO – Normalmente meu treino é assim: 400 de borboleta, 400 de costas, 400 de peito e 400 de crawl, 1.600 metros. Isso porque reduzi dos 2.000 que eu fazia. Nos últimos meses, quando começou a esfriar, reduzi para 1.200 m. Treino às terças, quartas, quintas e sextas. Quatro dias por semana. Em geral vou a pé até o clube, é mais rápido. Fica a uns 700 metros daqui de casa, mas de carro é preciso dar muitas voltas.
PRIMEIRO MUNDIAL – Também foi em Montreal. Eu estava com 69 anos. Eu já nadava direitinho, mas não fui primeira nem nada, o primeiro Mundial nunca é assim. Tirei um quinto lugar em peito, mas eram 30 concorrentes, então o quinto não é tão ruim assim. E tiramos um terceiro no revezamento, tinha 16 revezamentos, também não foi tão ruim assim. Fiquei satisfeita.
PRIMEIRO OURO EM MUNDIAL – No terceiro Mundial em que participei, em Munique (2000), o Gastão Figueiredo e a Maria Lenk me chamaram para fazer um 4×50 medley com eles. E aí ganhamos medalha de ouro. Eu nadei peito, naturalmente. Quando o Gastão me telefonou e convidou, eu não dormi a noite inteira, de tão excitada que fiquei. Puxa, esses nadadores me chamando!! Eu devo ser aquele gato do ditado (quem não tem cão caça com gato). Não consegui dormir, de tão honrada que fiquei, feliz da vida.
MUNDIAL DE MONTREAL 2014 – As piscinas eram transitórias, seriam desmontadas depois. Não havia vestiário nem banheiros, apenas banheiros químicos. Foi algo meio improvisado. Um dia as mulheres nadavam na piscina melhorzinha e os homens na piorzinha; depois trocava. Nós já tivemos no Brasil campeonatos muito melhores do que esse.
A água era magnífica, dentro do padrão. Água é água, mas há águas fáceis e águas difíceis. Há águas em que você acha que está nadando em um líquido viscoso. E há águas fáceis, em que você parece flutuar melhor. Não sei dizer porquê, mas isso acontece.
A água estava boa, dava para nadar bem e se sentir bem. Mas, fora da água, você não tinha uma cadeira para sentar. Estava ao relento. Na chuva, pegava chuva; no sol, não tinha onde abrigar. Era horrível. O pessoal tinha de sentar no chão. E o chão era disputado por milhares de pessoas.
RECORDES –Eu me divirto muito. Com esses recordes, eu fiquei muito, muito contente, realmente muito contente. Mas, se perdesse, eu não ficaria infeliz de jeito nenhum. Apenas não teria a grandíssima satisfação que tive agora.
ENVELHECIMENTO – Toda a vez que mudo de faixa etária, eu quebro um certo número de recordes sul-americanos. No ano seguinte, eu não consigo quebrar o meu próximo recorde. Isso me aconteceu uma única vez. Eu fiquei tão feliz que pulava até o teto de felicidade. Foi há muitos anos. É tão raro, porque não dá. A gente piora muito. Entre o primeiro ano da nova faixa etária e o último é uma piora incrível. A gente perde muita explosão, força muscular, resistência cardíaca.
Os novos treinam para melhorar de tempo. Nós, velhos, treinamos para não piorar tanto.
PRAZER – Na infância, eu gostava muito de nadar. Até hoje, eu pulando na água me sinto quase como que no colo de minha mãe, porque toda a questão de nadar, de água, se liga à minha convivência com mamãe.
Não haverá retirada de kit por terceiros, ou seja, todos os participantes terão que ir recolher seu kit pessoalmente.
Foram abertas 30 mil vagas!!! Ja imaginou toda esta galera para pegar o kit?
Espero que o serviço funcione. A julgar pelos anos anteriores, sera preciso muita paciência.
Assim é a São Silvestre. Nada é fácil nesta prova
Realmente incrível, muito inspirador! “Os novos treinam para melhorar de tempo. Nós, velhos, treinamos para não piorar tanto” = a mais pura verdade!!
Que linda história de vida, de superação, de amor ao nado.
Parabéns a Sra Nora Ronai, um exemplo para todos nos.
E parabéns a sua filha Cora Ronai, pela mãe maravilhosa.
Glicia Linden
Que alegria de viver!
Que lição de vida!
Muitas felicidades e vida longa!
Precisamos muito de mais exemplos como o da Sra. Nora Rónai
Linda, linda, lindíssima, estou apaixonado por ela, é uma mulher de raça, de fibra, de coragem e além de tudo é mãe de outra minha grande paixão que é a Cora Ronai. Muitas felicidades
Sua história é maravilhosa! adoro mulheres fortes e determinadas. Um grande exemplo para mim, que estou me sentindo velha aos 51. adorei você!!
Grande campeã, serve de exemplo para todos que quando chega aos 60 anos acha que já está tudo acabado.
Parabéns, que história de vida magnífica, fiquei com um certo ciúme, já estou pensando que histórias terei pra contar com esta idade.