Treinador de Vanderlei Cordeiro de Lima relembra trajetória do medalhista olímpico
29/08/14 12:04Hoje se completam dez anos do maior feito corredores de rua do Brasil: a conquista da medalha de bronze na maratona dos Jogos Olímpicos de Atenas-2004, por Vanderlei Cordeiro de Lima. Para celebrar o fato, fiz uma longa entrevista com o maratonista; trechos dela foram publicados na Folha (leia AQUI) e uma versão mais ampla vai sair na edição de setembro da revista O2.
Ontem, Vanderlei foi homenageado ao São Paulo e até deixou lágrimas caírem ao receber placa comemorativa não só à sua conquista, mas também (principalmente?) ao seu fabuloso espírito esportivo, que fez com que ele seguisse correndo mesmo depois de ter sido atacado por um ex-padre doidão…
Sobre o atentado e suas possibilidades, voltou a dizer o que havia comentado na entrevista comigo, que você leu no jornal: “Eu poderia não ganhar o ouro, mas a disputa iria para o fim da prova. Demoraram quase dez minutos para me ultrapassar depois do incidente. Mas não posso afirmar que seria o campeão. Acho que o Baldini foi infeliz ao dizer que seria campeão de qualquer jeito. É uma dúvida que vai ficar, mas posso dizer que me foi tirada a oportunidade de ganhar o ouro”.
Agora, trago com exclusividade outra entrevista, esta com o treinador de Vanderlei, Ricardo D`Angelo, que acompanha o atleta há mais de 20 anos. Conhecido como Bombeiro, apelido recebido aos 15 anos, quando costumava usar um agasalho vermelho que ganhara de presente da mãe, Ricardo tem 53 anos e foi atleta nas décadas de 1970 e 1980.
Mestre em ciências da motricidade e doutor em ciência do esporte, começou a treinar atletas de ponta em 1988; seus pupilos já conquistaram uma medalha olímpica –Vanderlei–, quatro medalhas em Pans e duas em Mundiais de atletismo.
Nesta entrevista ele fala de sua trajetória ao lado de Vanderlei e traz a visão do treinador sobre a atuação do maratonista.
Quando o senhor conheceu Vanderlei?
Conheci pessoalmente o Vanderlei quando fui contratado para trabalhar como treinador na antiga União Esportiva Funilense, clube de atletismo do empresário Sérgio Luis Coutinho Nogueira. Embora já o conhecesse das seleções juvenis e soubesse de seu potencial talento para o fundo, até então não tinha contato com ele, uma vez que vivia no interior e eu em SP. Nosso primeiro contato foi na antiga Pizzaria Macedo, na zona sul. Jantamos lá e quem nos apresentou foi o doutor Sérgio. Foi em julho de 1991. Naquela época eu jantava com o doutor toda terça feira naquela pizzaria. Na ocasião o Vanderlei estava indo viajar para uma temporada de competições nos EUA e nos acompanhou no jantar. Ele ficou quase que calado todo o jantar, mas fomos bastante cordiais um com o outro.
Quando o senhor passou a treinar Vanderlei? O que causou essa aproximação?
Iniciei minha orientação ao Vanderlei em abril de 1992 por conta de uma fatalidade. Conforme descrevi acima, fui contratado para treinar atletas jovens e em desenvolvimento na UE Funilense em julho de 1991. Trabalhava com o professor Asdrúbal Ferreira Batista, treinador dos principais atletas de fundo da equipe, incluindo o Vanderlei. Em abril de 1992, o professor Asdrúbal sofreu um ataque cardíaco fulminante e veio a falecer. Dessa forma, quase todos os atletas que eram orientados por ele passaram a ser orientados por mim, incluindo o Vanderlei.
Como foi o trabalho com ele?
Foi uma experiência incrível, sobretudo pelo profissionalismo, disciplina, dedicação e foco que o Vanderlei demonstrou ao longo de toda a sua carreira. Ele sempre foi muito atento às principais tarefas do treino, nunca deixando que nenhum fator externo à pista viesse a interferir no seu desempenho.
É um atleta com elevado potencial físico e extrema habilidade para maximizar seus pontos fortes. Entendia e compreendia seu papel no esporte, sabia onde estava e onde queria chegar. Tem elevada capacidade de raciocínio prático, com “insights” de oportunidade. Perfil dogmático, humilde e caráter ilibado, construído a partir da educação dada pela sua família, a qual se referia sempre com grande apreço. Aprendi com ele mais do que ensinei.
Como foi a progressão dele, das provas em pista para a maratona?
Estávamos fazendo isso de forma gradual, didática e pedagógica em 1994, entretanto, por conta de uma oportunidade para fazer coelho na Maratona de Reims, França, ele completou o percurso e venceu a prova com o tempo de 2h11min06. Esse resultado foi o suficiente para que ele demonstrasse seu potencial e aptidão para a maratona.
Como surgiu o convite para ele ser coelho dessa prova?
Foi em outubro de 1994. Ele estava fazendo um temporada de corridas de rua na França (Paris e região), provas de 10 km, 10 milhas e meia maratona quando surgiu a oportunidade de fazer coelho para 21 km em Reims. Ele topou e foi junto com o outro coelho, o belga Vincent Rousseau, até o km 30, quando o belga abandonou. Vanderlei estava mais de 30 segundos à frente do segundo colocado, que poderia vir a ser vencedor. Foi quando ele percebeu que poderia vencer a prova indo até o final e foi o que fez, brilhantemente.
Como é hoje sua relação profissional com o Vanderlei?
Eu coordeno os projetos esportivos do Instituto Vanderlei Cordeiro de Lima (IVCL). Um deles é a Equipe Orcampi, tricampeã brasileira juvenil de atletismo (2012, 2013, 2014), entre outros títulos. O IVCL tem uma “pegada” mais social, usando o esporte (atletismo) como um instrumento da educação e da formação integral do jovem. Sou também coordenador técnico do Clube de Atletismo BM&F BOVESPA, e o Vanderlei é ainda patrocinado pela instituição, sendo o patrono do Clube por conta da sua importância e simbologia.
Como é o trabalho de um treinador de corredor de elite internacional? Em que é preciso prestar atenção? Como fazer para motivar o atleta?
As competências para treinar atletas de nível internacional se estendem por várias esferas, transitando do campo profissional até o pessoal. O envolvimento e sinergia entre atleta e treinador são responsáveis pelo desempenho do atleta e, consequentemente, pelo seu sucesso. Ambos devem estar comprometidos com os mesmos objetivos, o que é raro nos dias atuais. O treinador deve saber tratar com habilidade os agentes externos de influência negativa para, de toda maneira, não permitir que, nesse casos, o desempenho seja prejudicado. As tarefas do treinamento propriamente dito são elaboradas em grau de exigência muito elevada, com desafios constantes, para estimular os atletas, em cada sessão de treino, à autossuperação.
O que o senhor lembra da maratona de São Paulo, quando Vanderlei quebrou o recorde da prova?
Tenho boas lembranças dessa prova. Inicialmente a organização não estava depositando muita confiança no Vanderlei, tanto que na sua inscrição lhe deram o número 83 (ou algo assim, lembro que era de 80 para cima…). Minutos antes da largada, coisa de cinco minutos, nos levaram o número 1 e o Vanderlei trocou seu número de peito. Naquela prova, planejamos a passagem da meia para 65min40 (3:07/km), e o coelho para o qual pedimos ajuda (Daniel Lopes Ferreira) levou o Vanderlei até o 21 km em 65min37. Ele ultrapassou o atleta marroquino que liderava no km 28 e se manteve em ritmo forte até o final, marcando 2h11min19, recorde da prova até hoje. Sua apresentação naquele dia foi perfeita, acertou em tudo, estava bem preparado física e mentalmente.
E como foi a maratona olímpica?
Eu estava assistindo à prova em um bar ao lado do estádio Panathinaikos, junto com um grupo de agentes, uma vez que não estava na seleção brasileira como treinador oficial e não tinha ingresso para a área do estádio.
A prova se desenrolou como tínhamos combinado. O Vanderlei deveria tentar se distanciar do grupo em algum ponto entre o km 25 e o km27, trecho de aclive do percurso, justamente para diminuir o número de competidores desse grupo. No entanto ele fez isso no km 19, já que percebeu que, nas duas saídas de outros atletas nos quilômetros anteriores, o grupão de corredores não respondera à mudança de ritmo.
Naquele momento os agentes que assistiam à prova comigo comentaram, de forma irônica, que era muito cedo para essa saída. Mas, depois de passados 11 km, quando verificaram que na marca dos 30 km o Vanderlei estava 50 segundos à frente do segundo grupo (apenas Baldini, Keflezighi e Tergat), mudaram seus comentários.
Até ganhei um ingresso do [agente de atletas internacionais] Jos Hermens para entrar no estádio. Ele disse: “Tome Ricardo, hoje você vai ao estádio”. Após isso ocorreu o acidente com o padre. Fiquei chocado, assim como todos, e logo imaginei todo o trabalho que tínhamos feito sendo destruído por uma ação externa, que não tínhamos como controlar.
A partir daí, apenas torci para que o Vanderlei conseguisse manter a diferença e chegar pelo menos em terceiro, e foi o que aconteceu. Recebi muitos cumprimentos dos agentes pelo desempenho e estratégia utilizada na prova. Por fim, entrei no estádio e consegui, com a ajuda de um segurança, dar um abraço de 30 segundos no Vanderlei e dizer a ele: “Conseguimos!!”.