Determinação e luta marcam primeira maratona olímpica feminina
04/08/14 11:21Neste cinco de agosto se completam 30 anos da primeira maratona olímpica feminina, realizada nos Jogos de Los Angeles-1984.
A norte-americana Joan Benoit Samuelson venceu com grande vantagem, estabelecendo o primeiro recorde olímpico na modalidade e nova melhor marca mundial –na época, a IAAF (a Fifa do atletismo) ainda não usava a palavra recorde para o melhor tempo da maratona no mundo.
Mas a imagem que ficou foi a da suíça Gabriele Andersen, que chegou mais de 20 minutos depois, alquebrada, quase desmaiando, com as pernas tortas. No limite de suas forças e da consciência, ela ainda conseguiu recusar ajuda e cruzar a linha sem auxílio para entrar para história com uma das 44 mulheres que completaram a prova naquele dia de forte calor e sol intenso.
A epopeia de Gabriela ilustra, de certa forma, a própria luta das mulheres contra a exclusão. A maratona era território proibido para elas desde que a prova foi inventada e teve a primeira disputa na primeira edição dos Jogos de nossa era, em 1896 em Atenas.
Já naquela época, porém, as mulheres se recusaram a aceitar a discriminação. Uma delas disputou palmo a palmo uma das provas classificatórias para Atenas-1896, mesmo sabendo que seu tempo não seria considerado. Outra desafiou todas as proibições e largou na prova oficial, minutos depois dos homens, seguindo pelas beiradas do caminho. Foi impedida de entrar no estádio, mas, para garantir que a distância total da prova seria cumprida, deu uma volta completa no Panathinaikos.
Sabia-se, portanto, desde sempre, que mulheres eram tão capazes quanto os homens de correr longas distâncias. Apesar disso, uma suposta fragilidade feminina foi alegada ao longo de quase nove décadas para justificar a exclusão.
Nos anos rebeldes da década de 1960, porém, isso aos poucos caiu por terra. Sem pedir licença a ninguém, Roberta Gibbs participou da maratona de Boston; depois, Kathrine Switzer cumpriu o percurso devidamente registrada. A novata maratona de Nova York, nos anos 1970, aceitou mulheres, assim como provas realizadas na Europa.
Os cartolas olímpicos, porém, não se dobraram. Empresas esportivas e patrocinadores de corrida se somaram a atletas, intelectuais, artistas e especialistas da área médica para pressionar pela abertura. Nos últimos anos da década de 1979, surge o Comitê Internacional de Corredores, que chegou a ser presidido pela brasileira Eleonora Mendonça, uma das pioneiras da área.
Em 1981, finalmente, o Comitê Olímpico Internacional cedeu: a maratona feminina seria incluída no programa dos Jogos de Los Angeles.
E aí deu-se o que se deu. Ao longo dos últimos dez anos, de vez em quando eu tentei encontrar Gabriele Andersen. Cheguei a conversar com o gerente do hotel onde durante algum tempo ela comandou uma loja de flores. Finalmente, no mês passado, o círculo se fechou. Ela me concedeu uma entrevista por e-mail, que teve os principais trechos publicados na edição deste domingo na Folha.
Gabriele nasceu na Suíça em 20 de março de 1945. No ano anterior, seus pais tinham fugido da Alemanha nazista, trazendo dois filhos pequenos. Ao longo da Segunda Guerra, a família viveu na Alemanha e na Aústrioa, sempre tentando escapar da carnificina. Na fuga para a terra natal do pai, a família Scheiss levou o que restava de suas posses e um par de velhos esquis de madeira, que tivera as pontas queimadas em um incêndio de um abrigo bombardeado.
Depois de uma reforma executada pelo próprio pai, foi neles que Gabriela aprendeu a esquiar, ainda uma menininha. E seguiu uma vida dedicada ao esporte, acabando por se transforma em símbolo de resistência e garra. Nesta entrevista, ela relembra os Jogos de 1984, fala sobre sua vida e carreira.
O que é a primeira coisa que vem à sua mente quando a senhora pensa na maratona olímpica?
Penso em como fiquei desapontada por não ter conseguido fazer uma boa corrida naquele dia tão especial.
O que aconteceu com a senhora no final da prova?
Sofri de exaustão causada pelo calor, desidratação e tive muita dificuldade para controlar os movimentos de minhas pernas por causa de fortes câimbras.
O que a senhora se lembra do desenrolar da prova?
Eu me senti muito bem ao longo da prova, seguindo o ritmo que havia planejado. Depois de 15 milhas (24 km), eu estava em 15º lugar, segundo me disse meu marido, e era exatamente o que eu havia imaginado. Então, depois de 22 milhas (cerca de 35 km), comecei a sentir muito calor, o corpo quente, mas mesmo assim conseguia correr.
Quando passei pelo túnel, para entrar no estádio, fiquei satisfeita de estar fora do sol por alguns instantes, mas também pensava que eu precisava água para beber e para jogar no meu corpo. Naquela época, porém, havia apenas quatro ou cinco postos de hidratação ao longo do percurso, e os corredores não podia receber nenhum auxílio externo, não podíamos receber nada entre os postos.
Saindo do túnel, entrando no estádio, eu fiquei realmente chocada com o calor intenso e o brilho do sol. Eu tive de caminhar e mesmo isso foi ficando cada vez mais difícil, porque passei a ter fortes câimbras nas pernas por causa da desidratação. Mas eu sabia que eu precisava fazer apenas uma volta e meia na pista e estava determinada a conseguir completar, ainda que várias vezes o pessoal da organização tenha perguntada se eu queria ajuda ou se eu queria desistir.
Naquela condição, por que a senhora recusou ajuda?
Eu estava determinada a terminar a maratona, sabendo que não teria outra chance, pois já estava com 39 anos. Por isso é que eu digo que, além de estar em boa forma física, o atleta precisa estar com a mente forte, preparada para aguentar a dor e o sofrimento e focar no seu objetivo maior, no que realmente deseja.
O que aconteceu depois de sua chegada?
Depois de passar a linha de chegada eu me deixei cair ao chão, sabendo que eu havia completado. Fui colocada numa maca e levada para a área de primeiros socorros, no túnel, onde recebi gelo e soro. No início, eu estava com muita dor, sofrendo muito, mas depois de uma hora comecei a me sentir melhor, e depois de duas horas pude ir para a Vila Olímpica. Na manhã seguinte eu me senti muito bem. Saí para uma corrida leve e depois ainda nadei um pouco.
A primeira maratona olímpica feminina só veio a ser realizada quase 90 anos depois da prova masculina. A que a senhora atribui isso?
Nunca pude entender por que as pessoas pensavam que mulheres não poderiam correr maratonas. Não é uma questão de força bruta, e as mulheres já vinham se saindo muito bem em natação de longa distância. Então acho que era apenas uma questão de o Comitê Olímpico Internacional ser mesmo muito conservador.
Quando a senhora correu sua primeira maratona?
Corri minha primeira maratona na Alemanha em 1973, quando tinha 28 anos. Na época, eu competia em provas de pista, e a maior distância era 3.000 m. Como eu comecei a correr muito tarde, com 25 anos, nunca cheguei a ser muito rápida e me dava melhor em distâncias mais longas. Então, no final daquela temporada de pista, uma amiga e o meu treinador me encorajaram a tentar correr uma maratona. Lembro que corri de agasalho e terminei muito forte, vencendo a prova.
A corrida é algo muito simples, não precisa de equipamento sofisticado, você pode correr em qualquer lugar, não precisa gastar muito tempo –em resumo, uma maneira muito prática de se manter em forma. Além disso, ajuda a limpar a cabeça, dá um tempo para reflexão. A maratona é o objetivo máximo de muitos corredores, para testar não apenas sua capacidade física, mas também sua força mental.
Como a senhora chegou à equipe olímpica da Suíça?
Eu sempre fui uma corredora, exceto por eventuais temporadas de esqui alpino na Suíça. Mas, como cresci em Zurique, nunca tive muitas oportunidades para esquiar. Eu acabei me tornando professora de esqui depois de me mudar para Flagstaff, nos Estados Unidos, quando também pratiquei um pouco de esqui cross country. Morando nos Estados Unidos, eu não tinha mais técnico, e corria apenas por diversão, até mesmo maratonas.
Quando mudei de Flagstaff, no Arizona, para Sun Valley, em Idaho, passei a esquiar mais (cross country) e a participar menos em corridas, competindo por vários anos.
Então, em 1981, tive um acidente enquanto esquiava e quebrei o pulso, o que me impediu de continuar esquiando. Na primavera de 1983, corri uma maratona em Boise e fiz um tempo que me qualificava para participar da seletiva olímpica dos Estados Unidos. Até aquele momento, nunca tinha passado pela minha cabeça correr a maratona olímpica, porque eu já tinha 38 anos. Mas, com aquele resultado, resolvi entrar em contato com a federação suíça para ver quais eram as exigências de qualificação. No final de 1983, passei a integrar a equipe olímpica da Suíça.
Depois da Olimpíada, como seguiu sua carreira?
Depois da Olimpíada, ainda corri por mais alguns anos, fiz várias maratonas –Nova York, naquele mesmo ano, umas duas no Japão e mais outras nos Estados Unidos. Acho que ainda correi uma dúzia de maratonas antes de me aposentar, o que aconteceu em 1991, depois de uma cirurgia no joelho. Ainda continuei a correr por alguns anos, como amadora, mas por volta do ano 2000 decidi praticar outros esportes: voltei ao esqui cross country e passei a praticar mountain bike. Competi por vários anos e ganhei vários Mundiais de veteranos.
Que tipo de mensagem sua decisão pode ter passado?
Que as mulheres podem correr maratonas e, mesmo que tenham problemas, são capazes de superá-los sem efeitos negativos permanentes.