Zamperini, o Invencível, morre aos 97 anos nos EUA
04/07/14 11:10Em missão contra os japoneses, na Segunda Guerra, o avião bombardeiro em que estava levou mais de 500 balaços, mas ele saiu vivo. Dias depois, em um simples treinamento com outra aeronave, o aparelho falhou e ele caiu no Pacífico, em meio a lugar nenhum. Passou 47 dias à deriva e acabou resgatado pelos inimigos: até o fim da guerra, foi prisioneiro em campo de concentração, enfrentando torturas e humilhações a cada dia.
“A corrida me ajudou a enfrentar a dor”, me disse ele em entrevista por e-mail feita em 2011. De fato, quando corria, ele dava tudo de si: chegou a ser corredor olímpico, disputando prova de pista em Berlim-1936. Na guerra, enquanto outros descansavam e lambiam as feridas, ele treinava até quase a exaustão.
Sobreviveu aos japoneses, voltou aos Estados Unidos, mas as lembranças do sofrimento detonaram suas emoções. Caiu em depressão, recorreu às drogas e ao alcoolismo e, quando estava quase à morte, redescobriu a si mesmo. Até pouco tempo atrás, dava palestras para grupo de jovens contando seu processo de luta e redenção; nas horas vagas, fazia coisas diversas: aprender a andar de skate, por exemplo.
LOUIS ZAMPERINI, corredor olímpico e herói de guerra, morreu em paz durante o sono na última quarta-feira (2.7), nos Estados Unidos. Tinha 97 anos.
Suas aventuras foram eternizadas no livro “Unbroken” (tem versão em português, “Invencível”, que está há anos na lista dos mais vendidos do NYTimes e vai virar filme pelas mãos de Angelina Jolie.
Há dois anos, escrevi uma reportagem na revista “O2” contando um pouco da história desse grande homem, que agora nos deixa. A seguir, a íntegra do texto (as fotos nesta mensagem são do arquivo pessoal de Laura Hillenbrand, autora da biografia de Louis e ela também uma guerreira, sobrevivente de doença incapacitante –abaixo, os dois em um carinhoso momento).
INVENCÍVEL
Quando a sineta bimbalhou, anunciando a última volta, a corrida já não valia mais nada para ele. Em poucos segundos, ouro, prata e bronze já tinham dono, enquanto ele continuava encaixotado no segundo pelotão, pagando o preço dos recentes abusos na comida, do peso ganho em poucos dias. Só lhe restava mesmo desistir.
Fez a segunda curva da pista de atletismo, entrou na reta oposta, e qualquer coisa lhe fez lembrar o que era, sentiu renascer-lhe os brios, a vontade de lutar. Ele acelerou.
Passou um, passou dois, chegou à curva do fundo e seguiu correndo, entrou veloz na reta final. As arquibancadas trovejavam aplaudindo o esforço inútil do corredor que levava no peito o número 751. Mesmo vendo, lá na frente, mais um e mais outro e outro ainda cruzando a linha de chegada, ele acelerou.
Aplaudido de pé pelas 100 mil pessoas que lotavam o Estádio Olímpico de Berlim, o norte-americano Louis Zamperini terminou em oitavo lugar a prova dos 5.000 m dos Jogos Olímpicos de 1936. Tinha feito a última volta em 56 segundos, tempo inimaginável para a época –quatro anos antes, a última volta do recorde mundial da distância fora corrida em 69s2.
Depois da chuveirada, ele e a delegação norte-americana foi chamada ao camarote de Hitler, que acompanhava os Jogos como uma operação de guerra. Folgado, o filho de imigrantes italianos entregou a Joseph Goebbels, o temido ministro alemão da propaganda, uma máquina fotográfica, pedindo que fizesse uma foto do ditador alemão.
Para surpresa de todos, Goebbels não só concordou como apresentou a Hitler o audacioso autor do pedido. Ao que o “fuhrer” comentou: “Ah, você é o garoto com final rápido.”
Zamperini tinha então apenas 19 anos, mas já vivera muito, escapara duas vezes da morte e ainda teria muitas vezes sua vida ameaçada, ao longo da Segunda Guerra Mundial –foi prisioneiro de guerra dos japoneses, vítima de torturas impensáveis. Voltou vivo quase por milagre, mas em pouco tempo sucumbiu ao estresse pós-trauma, entregou-se à depressão e a bebedeiras, de onde saiu depois de uma epifania religiosa.
Até o mês passado, aos 95 anos, continuava sendo mais rápido do que o inimigo definitivo: no início de dezembro faria uma palestra na Base Edwards da Força Aérea dos Estados Unidos, contando com simpatia suas aventuras, que mais parecem coisa saída da cabeça de algum rocambolesco romancista (abaixo, Zamperini na sua festa de aniversário de 97 anos).
Louie, como a família e os amigos o chamam, nasceu em Olean, Nova York, em 26 de janeiro de 1917. Quando tinha dois anos, foi vítima de pneumonia, doença que já havia atacado seu irmão Pete, dois anos mais velho. Os pais, imigrantes italianos, acataram o conselho do médico de buscar terras mais quentes e se mudaram para a Califórnia.
Pouco antes da mudança, a casa onde viviam pegou fogo. Quando todos estavam a salvo, no jardim, alguém notou que faltava o pequeno Louie. Seu pai voltou correndo para a casa em chamas e encontrou o garoto dormindo embaixo da cama. Foi o tempo de pegar o menino e dar um salto para a rua; em seguida, o teto desabou. “Foi a primeira vez que escapei da morte”, lembrou Zamperini numa entrevista para a Fundação de Atletismo Amador de Los Angeles.
Um ano depois, na Califórnia, brincava com coleguinhas quando um garoto o desafiou para uma corrida: tinham de ir até a esquina, atravessar a rua e encostar a mão em uma palmeira do outro lado. O rival foi mais rápido, mas acabou atropelado enquanto atravessava a rua. “Perdi a primeira corrida da minha vida, mas mais uma vez escapei por pouco da morte”, contou.
Aos poucos, o episódio foi sendo esquecido pelo menino, que enfrentava outros problemas enquanto. Na escola, era discriminado porque não conseguia entender o que os professores e os outros garotos diziam –afinal, na casa dos Zamperini só se falava italiano. Mesmo quando a família foi obrigada a falar inglês pelo bem dos filhos, não ajudou muito: era o típico inglês macarrônico, e os garotos continuavam sendo vítimas de brincadeiras dos colegas –não poucas vezes, violentas.
O pai de Louie, que fora lutador na juventude, ensinou ao garoto alguns movimentos do boxe, esquivas, golpes rápidos. O menino rapidamente pôs em prática o aprendizado e em pouco tempo se transformou no terror de Torrance. Brigava, roubava, bebia, fumava, arrombava portas, era ameaçado por vítimas furiosas, não poucas armadas, em aventuras que costumava terminar com o garoto correndo “feito um louco”, como dizia.
Nos primeiro anos da adolescência, estava no caminho certo para longos períodos de detenção em reformatórios juvenis; mais tarde, a cadeia seria talvez o seu destino, quem sabe até a pena máxima. Foi seu irmão mais velho, Pete, que veio com a solução para tentar impedir que aquela tragédia anunciada se consumasse. Conseguiu convencer pais, professores e até o diretor da escola que a salvação de Louie estava no esporte.
Pete já fazia parte do time de atletismo da escola e acreditava que seu irmão poderia ter sucesso. Todo mundo concordou em dar mais uma chance a Louie. Era o ano de 1932, e o garoto começou a temporada odiando tudo aquilo, arrastando-se na pista e treinando obrigado, açoitado a golpes de vara que o irmão, que o acompanhava de bicicleta nos treinos, lhe dava quando não era rápido o suficiente.
Começou a vencer. No final da temporada, tornou-se o primeiro garoto de Torrance a participar das finais de uma competição intermunicipal de atletismo. No ano seguinte, com 16 anos, já estava apaixonado pelas corridas, feliz com as atenções que as vitórias lhe traziam: até as meninas começavam a gostar dele.
“A corrida me tirou de uma vida de garoto-problema”, me disse ele em uma curta entrevista por e-mail, no ano passado. Apesar de sua participação nos Jogos de Berlim-1936 e de outras conquista posteriores, a prova que mais lhe trouxe satisfação foi uma competição escolar de cross country, quando bateu os recordes de todas as categorias…
Naquela época, nos idos de 1933, derrubava recorde após recorde nos 400 metros, nos 800 m, na milha e até nas prova de duas milhas (3.200 m). Em 1934, correu a milha (1.609 m) em 4min21s3, diminuindo em dois segundos o recorde anterior dos alunos do ensino médio, derrubando uma marca estabelecida durante a Primeira Guerra Mundial. Seu tempo só seria superado 19 anos depois.
Apesar de sua progressão fantástica, no final do ano seguinte, quando os sonhos de todos os esportistas se voltavam para a Olimpíada, percebeu que não seria páreo para os corredores mais velhos e experientes. Por volta de abril de 1936, deu por encerrada sua tentativa de disputar os 1.500 m nos em Berlim.
No mês seguinte, porém, ficou sabendo que haveria uma corrida de 5.000 m no Los Angeles Coliseum e que Norman Bright, recordista norte-americano das duas milhas e segundo no país nos 5.000 m estaria presente. Resolveu testar suas forças na distância, 12 voltas e meia na pista, que ele descrevia como “uma câmara de tortura de 15 minutos”.
Terminou cabeça a cabeça com Bright, passou a acreditar que tinha chances e tratou de disputar as provas seletivas para entrar no esquadrão olímpico dos Estados Unidos. Em julho estava a bordo do navio a vapor Manhattan, que levava para a Alemanha a equipe dos EUA, além de jornalistas, empresários, socialites e ricaços em geral.
Louie treinava correndo no convés, lutava para ficar em pé quando o navio sofria com as grandes ondas, roubava lembranças de viagem como faziam quase todos os outros e, acima de tudo, comia. Com 19 anos, era um garoto magricela, esfomeado pela lembrança dos dias de pobreza. Seu apetite chegava a impressionar a ele mesmo que chegou a escrever em uma carta o quanto havia comido no jantar do dia 17 de julho de 1936: “meio litro de suco de abacaxi, duas tigelas de caldo de carne, duas saladas de sardinha, cinco pãezinhos, dois copos grandes de leite, quatro pepinos doces em conserva (pequenos), dois pratos de frango, duas porções de batata doce, quatro pedaços de manteiga, três porções de sorvete com biscoito wafer, três fatias de pão de ló com cobertura de açúcar, 680 gramas de cereja, uma maçã, uma laranja, um copo de água gelada”.
O resultado seria um recorde: durante a viagem, foi o atleta que mais aumentou de peso, ganhando 5,4 quilos durante os nove dias da travessia. Houve quem não ganhasse tanto peso, mas perdesse a chance de disputar os Jogos, como ele conta ao lembrar as aventuras no vapor Manhattan.
“Uma nadadora famosa decidiu sair do deque em que estavam os atletas, foi para a primeira classe para ficar com o filho de Hearst [William Randolph Hearst, magnata da imprensa], com quem dançava e bebia champanhe. Acabou expulsa da equipe olímpica por causa de seu comportamento, mas foi contratada como comentarista dos Jogos por um dos jornais de Hearst.”
Depois de sua prova no Estádio Olímpico, Zamperini saiu com os amigos em várias noitadas. Em um desses passeios, talvez já alegre demais, viu a bandeira do Terceiro Reich tremulando em um prédio oficial. Parou a observar o trajeto dos sentinelas que montavam guarda ao edifício e, quando estavam longe, correu, saltou e … não agarrou a bandeira. Pulou de novo, segurou a flâmula, que saiu rasgada enquanto Zamperini caía de bunda no chão, com um barulho surdo, que chamou a atenção dos guardas.
Tratou de fazer o que sabia: correu. Mas ainda conseguiu ouvir o ruído de fuzis sendo engatilhados e o grito de “Alto!”. Obedeceu. “Foi a coisa mais inteligente que fiz na minha vida”, brincaria ele anos mais tarde, recordando a conversa cheia de gestos que se seguiu e que acabou com todos rindo e com a bandeira rasgada devidamente dobrada, guardada em um bolso e levada para os Estados Unidos como suvenir.
Voltou à pátria e começou a carreira como esportista universitário –graças ao atletismo, podia cursar a universidade que quisesse; dos vários convites, ficou com a Universidade do Sul da Califórnia. E foi em nome da UCS que, em 1938, quebrou o recorde da milha, graças a um treinamento pouco convencional para a época, idealizado por ele mesmo.
“Era um programa secreto, que realizei sem que meu técnico soubesse: correr em subidas. Os treinadores e médicos eram contra, diziam que era prejudicial para o coração.” Mas não havia colinas na região, então ele tratou de subir as arquibancadas do estádio da universidade.
Depois de cada sessão de treino, ia ao estádio e subia as escadarias vezes sem conta, numa preparação estafante, que servia também para moldar seu espírito para suportar a dor.
E dor ele sentiu no dia da prova, num dia quente de junho de 1938. Não pelo esforço físico, mas pelo ataque de outros concorrentes, estudantes de universidades do Leste dos EUA, cujos técnicos tinham decidido vencer a qualquer custo –o que significava tirar Zamperini da competição.
“O plano deles era me deixar encaixotado [cercado por outros corredores] e, nas duas primeiras voltas, eles conseguiram. Eu reclamei, e os caras só me xingavam, tentavam me derrubar, davam socos. Alguns me atingiram as canelas com as travas das sapatilhas. Quando tentei uma ultrapassagem, levei uma cotovelada que trincou uma de minhas costelas. Levei um pisão e a trava furou meu pé… Até que consegui um espaço e disparei”, contou ele à Fundação do Atletismo Amador de Los Angeles.
Com o sapato rasgado, sangue descendo pelas canelas e o peito dolorido, venceu, mas ficou triste, cabisbaixo, frustrado, imaginando que tivesse sido uma corrida lenta. Errou.
No estádio de Mineápolis, fechara a milha em 4min08s3, novo recorde universitário. Seu tempo reinaria por 15 anos.
E foi assim que, quando a Segunda Grande Guerra estourou, Zamperini era visto no mundo esportivo amador como um dos candidatos –alguns o consideram o melhor candidato– a derrubar a mítica marca dos quatro minutos na milha.
O ataque japonês a Pearl Harbour mudou tudo. De uma hora para outra o corredor virou soldado, aviador, especialista em bombardeios. Envolveu-se em batalhas sangrentas, ajudou a arrasar cidades e, quando voltava para a base, no Havaí, tratava de correr sempre que podia, tentando manter a forma e o espírito guerreiro.
Numa missão, as coisas quase deram errado. Era chegar à região do alvo, soltar as bombas e voltar. Mas não contavam com a rapidez dos aviões japoneses, os ágeis caças Zero, que metralharam os aviões norte-americanos sem dó nem piedade. Zamperini conseguiu escapar, mesmo com seu avião crivado de balas –594 buracos, contados um a um por fuzileiros navais impressionados com a capacidade de sobrevivência de homens e máquina.
O desastre se deu na tarefa seguinte, sem a participação de nenhum inimigo. Foi mandado em uma missão de resgate num avião que vinha dando problemas. Acabou caindo ao mar. Só Zamperini e dois companheiros se salvaram –um acabou não resistindo durante a provação.
Ficaram 47 dias à deriva, quase enlouquecidos pelo sol e o sal, pela fome e pelo medo. Com remos, batiam em tubarões que rondavam os botes; pescavam e caçavam pássaros com as mãos, bebiam água da chuva e sangue dos bichos que conseguiam pegar, numa luta insana e incansável para ficar vivo só mais um segundo, um minuto, uma hora, um dia, sonhando sempre em chegar à terra firme.
Acabaram resgatados por um navio japonês e transformados em prisioneiros de guerra. Louis Zamperini, um atleta de 1,68 m, pesava então menos de 40 quilos –30 quilos, segundo alguns registros. De qualquer forma, tinha perdido quase metade de sua massa corporal.
Durante os dois anos seguintes, não iria ganhar muito mais peso, submetido a torturas constantes em campos de concentração japoneses. Sua primeira parada foi na Ilha da Morte, aonde os prisioneiros eram levados para serem executados. “Aqueles 43 dias em Kwajelin foram os mais difíceis de minha vida. Tudo era ruim, a comida era atirada na sujeira, um buraco no chão de minha cela servia como latrina, e minha cabeça ficava perto daquele buraco a noite toda. Havia piolhos, pulgas, insetos por todo o lado. Eu rezava para voltar no tempo, para ficar à deriva no mar…”, me disse ele.
Mas não voltou. Para os americanos, era tido como morto. Mas sobreviveu à Ilha da Morte, não sabe por quê, sendo levado para outro campo de concentração. As torturas continuaram, Zamperini virou joguete na mão de um sádico comandante de prisão. Imaginava que estava enlouquecendo, acordava tentando inventar formas de escapar de seu algoz, sonhava com os espancamentos e humilhações…
O sofrimento só acabou com o fim da guerra, a debandada dos oficiais japoneses e a chegada das tropas americanas. Zamperini não tinha mais condições de correr, mas estava vivo.
“A corrida me ajudou a sobreviver. Acho que aumentou a minha capacidade de suportar a dor”, me disse ele por e-mail.
Muito legal, a estória de um campeão…inspiradora!
Acabo de ler o livro. realmente uma emocionante história de vida e superação face aos inúmeros obstáculos. Sua morte, sem dúvida, sentida por quem teve a oportunidade de compartilhar sua história de vida nos deixa um maravilho legado de determinação, coragem e enorme capacidade de transpor barreiras. Sua morte há poucos dias deixa um sentimento de perda, como se ele (Louis) fosse alguém próximo. Abraços
Pois e , um historia fascinante de um garoto com todas as dificuldades da infancia, ainda se tornou um atleta , um heroi de guerra , um prisioneiro , e viveu tudo isso para nos contar essa experiencia fascinante, vivendo praticamente um seculo aos nosso lado ate o dia que tinha que permanecer ao nosso lado…
Acompanho vc no site,e na O2,o que vc escreve e sempre inspirador para quem corre.Abraco
Muito obrigado, abs