Conheça o calçado ideal para o corredor que você é
28/02/14 10:04Pronto! Tudo resolvido. Leia este texto de cabo a rabo e, depois do Carnaval, você estará pronto a escolher o calçado de corrida ideal para o corredor que você é, sabendo seu tipo de pé e de pisada, considerando seu peso e a frequência com que treina.
Protegido pelo tênis justo e perfeito, você estará em melhores condições de enfrentar as durezas do treinamento e as agruras de maratonas e ultramaratonas, provas curtas de rua e até desafios em pista, sem falar de corrida em montanhas e outros terrenos inóspitos. Melhor: estará protegido contra lesões. Não vou dizer que nunca mais você vai se machucar na vida, mas seu risco cairá enormemente.
Que maravilha, não?! É isso o que vários fabricantes de calçados de corrida querem nos fazer acreditar. Alguns chegam até a dizer que o tênis vai ajudar a promover o fortalecimento de setores de sua musculatura além de ajudar a aumentar a sua velocidade. Desde que seja o ideal para sua pisada, que pode ser com superpronação (roda o pé para dentro), supinação (para fora) ou neutra (deu para entender, né?).
Os argumentos se sucedem, muitas vezes embasados por trechos de artigos supostamente científicos, por evidências médicas, desenhos, ilustrações, exemplos dos mais diversos tipos.
Seria esplendoroso, não fosse tudo fantasia de Carnaval, sonho de uma noite de verão ou qualquer outra metáfora que você queira usar para ilusão passageira. Às vezes, é mais do que ilusão: chega mesmo á fraude, como já demonstraram processos nos Estados Unidos. Em geral, porém, tudo fica no terreno da legalidade.
O que não significa que fique no terreno da verdade. Há cada vez mais estudos de revisão, que analisam dezenas, centenas, às vezes milhares de pesquisas sobre um tema a fim de verificar se há consistência, se há padrões. Também há um número crescente de pesquisas que, desvinculadas a marcas ou empresas, procuram funcionar como “advogados do Diabo”, tentando ver a veracidade ou repetibilidade de estudos anteriores.
Está rolando pela internet um desses estudos, e eu resolvi mostrá-lo também neste espaço porque vem sendo divulgado pela Sociedade Brasileira de Medicina do Exercício e do Esporte.
Trata de um tema caro aos corredores, que adoramos escolhe rum tênis novo e estamos sempre pesquisando para encontrar o produto ideal para nosso pé. Participamos de estudos, fazemos testes e, no final, gastamos uma grana preta em tudo isso –um investimento que, a julgar pelo trabalho que passo a comentar, talvez não fosse necessário ou pudesse ser direcionado para outros lugares.
O estudo em questão busca analisar se o uso de tênis “adequados” ao tipo de pisada de cada corredor vai contribuir para melhorar sua saúde e reduzir índice de lesões.
O trabalho foi feito na Suécia e acompanhou durante um ano quase mil corredores, analisando cerca de 2.000 pés. Descobriram que há até corredores que supinam de um pé e superpronam com o outro. A maioria absoluta era de pés neutros (70%); 22% eram supinados ou supersupinados, e o restante pronado ou superpronado. Todos usaram ao longo de todo período o mesmo tipo de tênis, indicado para pisada neutro. Pouco mais de ¼ deles (27%) teve algum tipo de lesão no período.
Nos primeiros 500 km de cada corredor, não houve diferença significativa no índice de lesão por tipo de pisada; a partir dali, nos primeiros mil quilômetros, os corredores com pés pronados tiveram menor índice de lesão que os demais.
Conclusão geral: não há evidência de que o uso de tênis “adequados” reduza o índice de lesão. De modo geral, o tênis mais indicado é o confortável para o corredor, com bom amortecimento (há correntes que até são contra o tal amortecimento, preferindo os tênis minimalistas ou nenhum calçado). Tênis neutros são adequados para qualquer corredor, mas é preciso cuidado na quilometragem, especialmente a partir de 500 km de rodagem.
Especialista em medicina do esporte e diretor da Sociedades Brasileira de Medicina do Exercício e do Esporte, Ivan Pacheco diz o seguinte:
“Existe uma hiperindicação até mercadológica de uma questão que nem tem suporte na literatura científica. Isso porque a maioria das pessoas tem ‘deformidades’ discretas e muitas delas não necessitam de um tipo de tênis especial, o tênis neutro é o suficiente. Elas não precisam de um calçado pronador ou supinador porque não são desvios significativos. Quando esse desvio existe, é preciso precisa fazer uma avaliação com o médico antes para ver se há mesmo a necessidade de um tênis especial. Nesse caso, quando o desvio é significativo, ele pode alterar a biomecânica de todo o membro inferior da corrida. Porém tem muita gente que tem um pé mais alto e outro mais baixo, mas que são variações normais. Os pés não são totalmente iguais. Eu acredito que existe um exagero mercadológico nessa questão, veio para ajudar, mas está sendo exageradamente indicado.” (citação de artigo publicado no “Correio Braziliense” e reproduzido no site da entidade; leia o texto completo AQUI).
Bom, eu aproveitei para dar uma olhada na literatura médica a respeito e encontrei, orientado pelo dor Márcio Freitas, ortopedista especializado no cuidado dos pés, dois artigos daquele tipo que citei no início deste texto, de revisão da literatura.
O resumo da ópera é o seguinte: não há evidência de maior ou menor proteção contra lesões conforme o tipo de tênis usado. As lesões de corredores estão vinculadas a uma série de fatores; o mais importante parece ser o volume/intensidade/frequência de treinos. Eu coloquei essa trindade como se fosse uma coisa só porque são variações do mesmo problema: abuso do corpitcho.
Um dos estudos apresenta até diagramas em que aparece a “curva da lesão”; a partir de uma certa quilometragem semanal, o índice de lesão aumenta desproporcionalmente. Os estudos também destacam o que muitos treinadores sérios gostam de repetir: cada um é um, o que serve para um corredor pode não servir para o outro, não há “receita de bolo” no treinamento.
Mas há orientações gerais de proteção, que são o feijão-com-arroz: progressão gradual, descanso, boa alimentação.
Mesmo sabendo de tudo isso, a gente se lesiona. Há corpos que já chegam prejudicados ao treinamento; outros que, uma vez lesionados, passam a ter maior frequência de machucado. São as coisas da vida…
De onde se conclui que o calçado ideal para você, prometido no título deste texto, pode ser uma quimera, mas também pode ser aquele que você escolher, o mais confortável e o mais gostoso, mas que não deve ficar muuuuito tempo em uso.
Saudações caranavalescas que agora vou para o ala-la-ô (#sqn)!
Maratonista aposentado – 1ª 4:40 (com 40 anos), depois 3:45, 3:25 e 3:30 (com 42) – atualmente com 71 (12km em 1:30
de segunda a sexta), sempre ouvi dizer que pronação era tão comum quanto pisada “normal”, com supinação bastante incomum. V poderia comentar o 70, 22 e 8% para respectivamente normal, supinação e pronação mencionado?
esses dados são referentes apenas e exclsuivamente ao universo de corredores que participaram da pesquisa; não necessariamente se referem à população em geral