Quarenta dias, duas pernas e um coração, 460 quilômetros por São Paulo
12/01/14 15:21Acabou! Na manhã deste domingo, glorioso dia 12 de janeiro de 2014, completei meu projeto de percorrer 460 quilômetros por São Paulo, em homenagem ao próximo aniversário da cidade.
Comecei o percurso no dia primeiro de dezembro do ano passado, correndo morro acima o pico do Jaraguá, para chegar até o ponto mais alto da cidade e ainda subir mais um pouco, galgando os 250 degraus da escadaria que leva até a base de uma antena de telecomunicações lá instalada.
Ao longo de 40 dias de andanças (mais três dias de folga completa), percorri a cidade de norte a sul e leste a oeste, mergulhei dos meandros do centro, descobri belezas e misérias; principalmente, encontrei e conheci gente fabulosa, que faz de São Paulo o portento que é.
Para a última jornada, escolhi iniciar o começo do fim num ponto que ilustra bem um dos aspectos da cidade: sua desumanidade, seu desrespeito pela história, seu culto ao transporte individual, ao deus carro, seu descontrole arquitetônico.
O local também é exemplo de mudança e de como a cidade viva, a população paulistana, consegue virar as coisas, transformando o que lhe parece uma desgraça em algo não tão ruim assim.
Pouco depois das 7h de hoje, larguei do início do Minhocão, a ligação elevada leste-oeste –como saí de pertinho do largo Padre Péricles, o sentido é outro: oeste-leste. Esse imenso viaduto é visto por alguns (muitos, talvez) como um símbolo arquitetônico da ditadura militar. De fato, foi construído na gestão do prefeito biônico Paulo Maluf (biônico porque não eleito, mas indicado pelo governador do estado) –LEIA AQUI mais sobre a história da obra e VEJA AQUI uma galeria de fotos históricas.
Ouso dizer, porém, que, considerando a idade da população que vive em São Paulo, a maioria não tem a menor ideia do que seja a cidade sem o elevado; ele faz parte da vida assim como os engarrafamentos, os assaltos, a poeira, o buzinaço… Também é um maravilhoso espaço público, durante parte da noite e aos domingos, quando é fechado para os carros e entregue ao público –aliás, há sonhos de transformá-lo em um grande parque, como mostra ESTA REPORTAGEM AQUI.
Em passadas edições da São Silvestre, a gente corria cerca de um quilômetro sobre o elevado. Era muito bacana: o povo vinha para as janelas, aplaudia, vaiava, cantava, alguns jogavam água, outros acenavam, se encontravam com os corredores, que se encontravam com os moradores. A multidão de atletas se concentrava na pista leste-oeste, pois a alça que subíamos dava acesso para aquele lado; a sombra, porém, estava do outro lado; era um tal de gente pulando mureta, escorregando, indo e voltando (a curva de saída também seria mais bem feita pelo lado leste-oeste, para entrar na rua Dona Marta).
De vez em quando, volto ao Minhocão nas manhã de domingo e me sinto um pouco voyeur, um visitante indesejado, observador não solicitado pelos moradores do entorno. Afinal, o viaduto passa do ladinho das salas, cozinhas, quartos dos apartamentos; conforme a iluminação e o grau de abertura de janelas, vidraças, cortinas e venezianas, dá para ver o que rola na casa de cada um.
Mesmo sem invadir o espaço privado com nossa presença, simplesmente passar por ali tem um ar promíscuo: a gente vê, por exemplo, as roupas do povo a quarar nas varandas ou penduradas em fios abaixo de janelas. Se não incomoda aos donos das peças, aos passantes incomoda menos ainda, mas é uma demonstração dessa proximidade não escolhida ou nem sempre desejada.
Tirando isso ou talvez também por causa disso, é muito bom correr no Minhocão. Hoje, mais uma vez, senti a fissura por corrida. Não posso, já sei, já conversei com você sobre isso, já me olhei no espelho não sei quantas vezes para explicar a mim mesmo a situação, mas a ideia volta. Basta ver um espaço vazio, terreno aberto na minha frente e eu fico igual cachorro solto no parque, só falta babar de vontade.
Ainda bem que já tenho quase 57 anos (meu aniversário é no dia 14 de fevereiro) de desenvolvimento do superego e consigo controlar meus impulsos mais animalescos (nem sempre, devo confessar neste momento). Então, já aviso que, por maior que fosse meu desejo de correr, simplesmente caminhei ao longo de todos os centímetros dos sete quilômetros percorridos hoje. O motivo talvez você já saiba, mas não custa repetir: estou com uma fratura por estresse no joelho direito, que vai ficar de molho a partir de amanhã até se recuperar e permitir que eu volte a correr….
Caminhar, porém, não foi uma punição nem uma dor muito forte ao longo de meu percurso por São Paulo. Ao contrário, permitiu que eu tivesse um olhar mais atento sobre a cidade e facilitou as conversas com meus convidados. Do Elevado, por exemplo, olho as belezas arquitetônicas do centrão: o prédio circular que um dia foi uma unidade do hotel Hilton, o gigantismo do edifício Itália, a elegância das curvas do Copan, uma das marcas de Oscar Niemeyer na cidade…
Mais ao longe, imitando uma espécie de vigia da cidade, a tudo observando do alto de seus muitos metros, fica o prédio do Banespa, construído como se fosse uma obra de um garoto brincando com peças de madeira: uma base mais ampla, outro núcleo menor, mais um bloco ainda menor até a magreza final do mastro da bandeira no topo do edifício.
Saio do Elevado (veja NESTE VÍDEO AQUI, feito por Eleonora de Lucena, como foram os último metros no Minhocão).
Aaceno para a praça Roosevelt, hoje revitalizada, reconstruída, reurbanizada, terreno de skatistas e vizinha de bares e salas de teatro. Bordejo também a igreja da Consolação, onde já cantei algumas vezes (integro o naipe dos baixos, o que poderia ser uma referência à minha estatura limitada –mais ainda se comparada com o meu peso–, mas tem a ver com o meu tom de voz), e sigo em direção ao Municipal.
Esse teatro é um sonho (imagine só estar lá no palco para cantar “Carmina Burana”!!!). O prédio é maravilhoso,a programação lá apresentada é ótima, minhas histórias com sua história são uma gostosura (saiba mais sobre o Theatro Mvnicipal AQUI). Só não gosto dos preços praticados nas suas lanchonetes; as garrafinhas de água são mínimas e custam os olhos da cara. Também não gosto das filas para conseguir um mísero cafezinho (tenho certeza de que isso poderia ser mais bem organizado, mas parece que faz parte da personalidade do teatro, sei lá).
O teatro está fechado. Sigo pelo viaduto do Chá, tão importante na história da cidade. Ele se ergue sobre o vale do Anhangabaú, palco de shows marcantes para a Pauliceia, em geral nas comemorações do aniversário da cidade. Também foram ali alguns dos maiores comícios já realizados neste país, durante a campanha popular pelas eleições diretas para presidente da República, as Diretas Já!.
Passo pela memória, cruzo em frente do prédio conhecido como Banespinha, que é hoje a sede da prefeitura da cidade (vou lhe dizer, nunca vi uma prefeitura mudar tanto de lugar como a de São Paulo; acho que ela já teve umas quatro sedes desde que estou na cidade) e que foi vítima de ataque durante as manifestações de rua no ano passado (a foto abaixo é de outro ponto da cidade, mas gostei tanto dela que não resisto a colocá-la aqui mesmo).
Não me detenho muito nisso, porém, porque os quilômetros estão passando e eu não quero terminar antes de chegar ao local que escolhi para a conclusão desse projeto, que nasceu numa praia, em Santa Catarina. Foi lá que bolei esse plano e o aprimorei em produtivas conversas com minha sensacional Eleonora –juntos planejamos alguns percursos, escolhemos convidados e imaginamos detalhes.
O planejamento não foi muito exato nem detalhado. Imaginei lugares que gostaria de visitar e fui aos poucos montando o quebra-cabeças de tempo e espaço até chegar a esses 460 quilômetros em 40 dias.
A reta quase final passou pela estreita rua Direita, entrou na opulenta rua Quinze de Novembro, uma das poucas áreas de ruas para pedestres que conheço na cidade (a outra é ali pertinho, entre o Municipal e a praça da República), e enveredou para o Pateo do Collegio. Claro que não podia deixar de visitar esse local, o espaço da gênese paulistana, onde a 25 de janeiro de 1554, com Manuel da Nóbrega e Anchieta, foi rezada a missa que é tida como marco no surgimento de São Paulo –saiba mais AQUI.
Faltavam então apenas poucos metros para a chegada, que seria na praça da Sé. De uma de suas esquinas, vi uma fila enorme de moradores de rua, cada um aguardando sua vez de receber um prato de sopa, um pão, algum alimento entregue por voluntários que fazem trabalho social. A comida ajuda, com certeza, mas não resolve o sofrimento do povo da rua, que vai enfrentando sua dor e abandono com álcool e crack…
A alameda em frente à catedral é grandiosa. Cheia de história, de sangue e suor dos brasileiros. Ali se reuniram as combativas mulheres que começaram o Movimento Contra a Carestia (saiba mais AQUI). Ali foi também palco dos primórdios da campanha pela anistia (leia aqui a convocatória para o ato histórico, ocorrido em 1979). E, claro, foi na Sé que deslanchou a campanha Diretas Já! (este TEXTO AQUI também traz informações legais sobre as lutas populares no período da ditadura militar)
Hoje, a praça da Sé é dos moradores de rua, de religiosos que pregam para ninguém, de turistas, de vendedores, de ladrões e traficantes, de policiais e vigilantes. E também é deste corredor, que arrodeia, arrodeia e não chega…
Enquanto caminho, penso no que foi essa jornada, que durou mais de 106 horas. Lembro que a corrida –a caminhada também—é um esporte solitário, mas totalmente coletivo. Muita gente colaborou para que esse projeto desse certo. Ontem falei do pessoal do jornal, dos motoristas, dos convidados. Há que agradecer também ao meu treinador, Vanderlei “Branca” Severiano, e à turma de branco: o ortopedista Henrique Cabrita, a osteopata Luca Mameri, as fisioterapeutas Graziella Candido, Ana Claudia Rodrigues e Aline Andrade, as massagistas Manoela Vilarinho e Rosangela Bittencourt.
Acima de tudo, agradeço a você, leitor, que vem me acompanhando quilômetro por quilômetro até este final. Porque, como disse na primeira palavra deste texto, eu concluí a jornada.
Cheguei ao Marco Zero, no coração da praça da Sé, no coração de São Paulo. Ergui os braços, festejei comigo mesmo e ganhei um beijo da Eleonora, sem a qual nada disso teria sido possível. Ao encerrar essa jornada, dedico a ela e às minhas filhas, Laura e Claudia, cada um dos centímetros, metros e quilômetros suados, sonhados e realizados ao longo desses 40 dias de andança. Mais ainda, ao longo de toda a minha vida.
Em homenagem a elas e a São Paulo, encerro esta jornada sob a inspiração de uma música romântica, apaixonada, sugerida como trilha sonora por minha filha mais velha. CLIQUE AQUI para deixar o som rodar.
Vamo que vamo!
DIA 40 – PROJETO 460 KM POR SÃO PAULO
Clique no mapa para conhecer mais detalhes sobre o percurso do dia
QUILOMETRAGEM DO DIA: 7 km
TEMPO DO DIA: 1h43min56
QUILOMETRAGEM ACUMULADA: 460 km
TEMPO ACUMULADO: 106h42min22
DESTAQUES DO DIA: minhocão, centro velho, teatro Municipal, páteo do colégio, praça da Sé
Só agora consegui parar para ler com a atenção merecida. Parabéns Rodolfo. Foi uma narrativa e tando da minha amada São Paulo. Já pensa em colocar isso num livro? Vou querer com autografo. Abraços
Parabéns pelo lindo trabalho.
Sua ultra maratona comemorativa mostrou os aspectos sociais e culturais de São Paulo, esperamos que as autoridades possam valorizar esta inicativa que vai além das fronteiras do esporte.
Com abraço
Zequinha
Prezado e espetacular RODOLFO, parabéns pelo feito, foi emocionante, instigador, agradável e muito gostoso deleitar e acompanhar toda essa peripécia ou epopéia pela cidade em que nasci, amo e já não reconheço mais. Vou guardar as publicações até você publicar esta história fantástica. Lendo todos esses 460km por São Paulo, mais uma vez posso afirmar que CORRER É UM HINO DE AMOR À VIDA! Muito obrigado por partilhar essa aventura, e como você sempre diz, vamo que vamo! sds rodolfo
Parabéns Rodolfo, foi um belo projeto! Esperamos que possa render ainda outros frutos.
abs. Paulo
Parabéns, Rodolfo! Terminar no Minhocão é uma homenagem e tanto a nossa grande São Paulo. Amo treinar naquele lugar justamente pelo contraste dos moradores, o asfalto, a riqueza x decadência do centro. É esse antagonismo que nos apaixonada e vez a sua jornada ser tão bela. Cuide do joelho agora, hein? Grande beijo.
Olá Lucena,
Simplesmente fantástica essa série.
Já aguardamos o livro.
Brilhante
Harry
Adorei acompanhar por estes 460k o teu blog. Ganhaste uma nova leitora e admiradora! Faz um pouco mais de um ano que corro e posso ter noção do quão difícil e incrível deve ter sido a tua jornada! Parabéns! Quem sabe, um dia, dividiremos a mesma pista. hehe
SENSACIONAL!!! Parabéns!
Rodolfo,
Parabéns pela conclusão do projeto e principalmente pelos textos que escreve.
Foi um grande prazer poder ter te acompanhado em uma pequena parte disso tudo.
Um abraço
Luis Augusto
Lap e end é o caralho.
Vai ser pedante no inferno.
Tomara que vc não fique bom do joelho.
Para nunca mais ocupar o espaço da cidade.
Vai trabalhar vagabundo.
Parabéns pela façanha e pelo texto que explica o caminho percorrido e tudo aquilo que vai ficando no esquecimento dos paulistanos: os locais e as histórias que transformaram e vêm transformando a cidade.
Parabéns!!!
Daria um livrinho essa experiência.
Rodolfo Lucena
Só agora tomei conhecimento de sua façanha. Que inveja! Nos meus 70 anos de São Paulo, não pensei tomar tal decisão, para percorrer minha cidade, que amo e defendo com muita garra e muito amor.
Seu feito foi grandioso e por demais significativo. Quero cumprimentá-lo e desejar muita saúde para que possa realizar outras aventuras com o mesmo sentido de amor e respeito. Parabéns! Parabéns também`à Eleonora, Laura e Cláudia que pelo que diz em sua narrativa, foram suas fiéis incentivadoras.
Parabéns pelo projeto. Sou mineiro, mas adoro a cidade de São Paulo e rever as imagens, lê os relatos e encerrar com esta linda música me fez gostar ainda mais desta grandiosa cidade sulamericana. Parabéns !!!
Parabéns pelos relatos, recheados de interessantes informações históricas e geográficas que comprovam a excelencia do corredor cronista. Abraços.