Caminhos de Paraisópolis são de mobilização e arte
10/01/14 14:32Um porco foi o passaporte de Gílson Rodrigues para voltar à cidade grande. Mal nasceu, esse baiano de Itambé foi dado pela mãe para um casal de italianos, mas a avó materna recuperou o garoto para a família. Criado pela avó e por tios, foi trazido para São Paulo com cinco anos. Trabalhou numa feira como carregador e vendedor de temperos, mas a experiência não durou: questões familiares o obrigaram a retornar à Bahia no início da adolescência.
Com 11 anos, só pensava no mundão que tinha descortinado em São Paulo. Na roça onde trabalhava, juntou dinheiro para comprar um porquinho, que engordou e vendeu por R$ 60. A fortuna lhe garantiu a viagem até o Rio, onde ainda ficou seis meses trabalhando, até poder voltar a São Paulo, de novo morando num barracão na favela de Paraisópolis, na zona sul de São Paulo, do lado do Morumbi, um dos bairros mais ricos da cidade.
“Meus filhos são a quarta geração da minha família vivendo aqui”, me disse hoje de manhã Gilson Rodrigues, 29, que está no último ano de seu segundo mandato como presidente da União dos Moradores e do Comércio de Paraisópolis e foi meu anfitrião na caminhada de hoje de minha jornada de 460 km por São Paulo em homenagem ao próximo aniversário da cidade.
O passeio, apesar de curto, foi bastante demorado. Em cada rua, éramos parados por alguém que cumprimentava meu anfitrião, fazia uma crítica, reclamava, apontava um problema, denunciava alguma irregularidade.
Uma senhora disse desconfiar de que havia gente se alistando para receber imóvel sem ter esse direito; outro pedia a intervenção do líder para abrir um estacionamento num prédio; e uma vovó muito ativa reclamava que todos os extintores de incêndio do prédio em que morava estavam vazios. “Se acontecer uma desgraça levo meus netos para morar na sua casa”, ameaçou ela.
São as dores do crescimento, acredita Gílson: Paraisópolis vive um processo de transformação, em que parte da área está sendo urbanizada, e os moradores estão aprendendo a viver a nova vida, como o que tem de bom e o que traz de responsabilidades diferentes. Sobre os extintores de incêndio, por exemplo, convida a tal senhora a visitar a associação e diz que vai ver o que é possível fazer; a questão, no entanto, deveria ser de responsabilidade do próprio condomínio do prédio.
Acontece que incêndio é um dos pavores de Paraisópolis. A comunidade ainda lambe as feridas do mais recente, ocorrido há um mês e que deixou cerca de mil pessoas desabrigadas. Foi a primeira área que visitamos, no passeio de hoje, e que é exemplo das vivas diferenças existentes na comunidade.
A área queimada era de barracos montados em uma encosta, em situação de risco; os moradores tinham invadido o terreno, onde já tinham sido realizadas algumas obras de contenção. Pois bem em frente à área do incêndio, na baixada, existe uma bela obra: um pequeno auditório a céu aberto, para exibição de filmes na rua.
Algumas curvas e subidas depois, novamente se vê essa espécie de vida dupla, de favela e bairro de classe média, de quase classe média ou da nova classe C. Na mesma cena, constrói-se uma grande avenida, movimentam-se toneladas de terra para receber escola e área de lazer comunitário, vive-se em modernos conjuntos habitacionais e ocupam-se encostas com moradias precárias, em vielas onde há lixo espalhado, crianças sem creches e adultos que não sabem ler.
Paraisópolis é assim, um mundo: em 1 milhão de metros quadrados, contidos em encostas de morros, vivem cerca de 100 mil pessoas, mais da metade delas oriunda da Bahia. É uma população jovem –35% têm de 15 a 29 anos—e trabalhadora –21% dos moradores da comunidade que estão empregados trabalham na própria Paraisópolis, que tem 8.000 pontos comerciais e três agências bancárias, além da filial de um grande magazine.
Hoje de manhã, mais uma lojinha estava sendo aberta, a Loja Artesanal Jane. A dona fez um curso promovido pela associação de moradores (que tem um sem número de atividades, como você pode conferir no SITE OFICIAL) e se entusiasmou: passou a fazer sorvetes Jane, trufas Jane, aromatizantes Jane e por aí vai.
O caso dessa moça ilustra, de certa forma, a própria história da comunidade e da associação de moradores. Paraisópolis tem cerca de 65 anos. Os primeiros moradores eram operários vindos do Nordeste para trabalhar em grandes obras na região, como a construção do hospital Albert Einstein e do estádio do Morumbi. Ocuparam fazendas do Morumbi, terras abandonadas ou sem controle, e foram ficando (saiba mais AQUI).
No final dos anos 70, a favela, que já estava de bom tamanho, passava a incomodar as autoridades, não só por causa da pobreza mas também porque lá se encontravam, supostamente, inimigos da ditadura militar. Houve um tentativa de retomada da área e desocupação da favela, mas os moradores resistiram. Não só: reagiram e formaram a associação, nascida formalmente em 1983.
“Ela já nasceu com um objetivo: transformar a favela em bairro”, diz Gílson Rodrigues (confira ESTE VÍDEO AQUI, que gravei com ele na manhã de hoje). Assim, além de representar a comunidade e liderar movimentos em defesa da moradia, a entidade ao longo dos anos tratou de realizar projetos que abrissem oportunidades para a população local.
Fez e faz, por exemplo, cursos de formação profissional, desde o artesanato de Jane até a formação de pedreiros; há aulas para adultos analfabetos, atividades para moradores da terceira idade e muitos projetos para a juventude: cursos de balê e informática, escolinha de futebol e de rúgbi, além de aulas de judô são algumas delas. A Orquestra de Paraisópolis tem fama que vai muito além dos limites da comunidade, e a rádio e o jornal da associação ajudam a manter os moradores informados sobre o que rola na rua.
Algumas delas, por sinal, passaram a receber turistas. Em setembro passado, a associação inaugurou o programa Paraisópolis das Artes, que já levou mais de cem pessoas em passeios pela comunidade, visitando exemplos do trabalho da entidade e ateliês de artistas locais (saiba mais AQUI).
Um dos artistas é Estevão Conceição, conhecido como “Gaudi de Paraisópolis” por causa do trabalho que fez, de colagens sobre colagens em cimento e pedra, construindo grandes estruturas. O maior exemplo é a casa onde mora, que há 28 anos vem recebendo pedacinho por pedacinho de coisas –máscaras, pires, bonecas e até uma máquina de escrever, tudo cimentado na parede.
O artista não estava lá na manhã de hoje, mas Gílson me contou que, apesar de morar no que alguns chamam de “castelo na favela”, o artista ainda vive de seu trabalho como jardineiro. Aliás, foi para conter uma roseira que ele construiu o suporte que acabou se transformou na gênese de sua arte (saiba mais AQUI).
Outro que não conheci, porque ainda não havia chegado para iniciar as lides do dia, foi o sujeito apelidado de Maluco Beleza. Aliás, ele é conhecido assim, mas seu apelido oficial é Berbela, que dá nome à oficina mecânica onde trabalha e expõe suas criações feitas com restos de ferro-velho.
Eu achei tudo muito sensacional. Claro que ali há muitas contradições, pobreza e violência latente. Gílson diz que a população não se sente em risco nem vive o problema da violência, mas de vez em quando há grandes operações policias na região –a mais recente foi em 2012, quando a policial ocupou a favela com pompa e circunstância.
“Os problemas estavam acontecendo nas regiões norte e sul, mas diziam que as ordens partiam daqui”, comenta Gílson. Na caminhada de hoje, achei tudo muito tranquilo, ainda que noticiário recente tenha relatos de crimes e de pedido de aumento do policiamento.
Em um dos textos que li (AQUI), a ex-presidente do Conseg (conselho de segurança) da região, Rosa Richter, diz: “Estamos na área que é o maior contraste social da América Latina. Tem que haver um olhar especial”.
É preciso que esse olhar seja despido de preconceitos, alerta Gílson: “Paraisópolis cuida tanto do Morumbi quanto o Morumbi de Paraisópolis. As pessoas que trabalham no Morumbi, que cuidam das casas, dos filhos das pessoas do Morumbi, são de Paraisópolis, são motoristas, porteiros, babás. São os cuidadores do Morumbi”.
Ele propõe: “Temos de quebrar essas barreiras e dar as mãos, conhecer um pouco melhor uns aos outros e caminharmos juntos para poder melhorar. As duas comunidades devem se encontrar e se transformar em um bairro grande, forte, com poder de articulação e de realização”.
É um poder que, de seu lado, a comunidade mais pobre vem construindo: “Paraisópolis é uma experiência que a gente pode levar para o mundo todo, de como as pessoas se organizam, se mobilizam e transformam a realidade”, afirma Gílson.
Com o que concluo este capítulo. Vamo que vamo!
DIA 38 – PROJETO 460 KM POR SÃO PAULO
Clique no mapas para conhecer mais detalhes sobre o percurso do dia
QUILOMETRAGEM DO DIA: 4 km
TEMPO DO DIA: 2h05min50
QUILOMETRAGEM ACUMULADA: 441 km
TEMPO ACUMULADO: 102h29min05
QUILOMETRAGEM A CUMPRIR: 19 km
DESTAQUES DO PERCURSO: Paraisópolis, ateliês de artistas locais e atividades da associação de moradores
Caminhos de Paraisópolis são de mobilização e arte | Rodolfo Lucena – Folha de S.Paulo – Blogs