Lugar da USP é no coração e na memória do corredor
09/01/14 15:49Ainda via, lá longe, a camiseta amarela. O sujeito que a vestia era grande, despontava entre a massa de corredores. Já estivera muito mais distante, agora se transformava num alvo possível, talvez a 300 metros, quem sabe a 200 metros. Não sabia ainda calcular distâncias, mas tinha certeza de que queria alcançá-lo, passar dele: derrotar o rival seria a medida do sucesso.
Rival, aliás, inventado ali mesmo, na hora. Não tinha nada contra o tal fulano, que conhecera em outros carnavais, nas lides informatas, e agora via ali, tal como eu, meio pelado para o calça-paletó-gravata que costumávamos vestir no cotidiano. Por certo, ele nem me percebera, mas isso não importava; o que valia era que eu estava mais perto.
Ele entrou no estádio, na parte decisiva da prova, e eu cruzei o portão talvez uns 20 metros atrás; eu estava na reta, ela já na primeira curva. Mas ele parecia enfraquecer, eu acelerava. Ele na segunda curva, eu já passando a primeira, entramos na reta e eu estava na cola do sujeito. Acelerei mais, acelerei mais, o pórtico parecia crescer, ficar enorme, assim como o sujeito de camiseta amarela.
Passei, fui o primeiro, venci, cruzei gritando a linha de chegada na minha primeira corrida de rua, já lá se vão mais de 15 anos. Não se assuste, não fui o campeão na geral, muito menos na faixa etária; como em todas as outras corridas de minha vida, porém, fui o vencedor na minha categoria, a de mim mesmo.
Era o mês de maio de 1998, e o local a Cidade Universitária, o campus principal da Universidade de São Paulo, na região oeste da cidade. Centro da intelectualidade brasileira, coração da pesquisa científica do país, é também o maior cenário de encontro de corredores, que aos sábados costumam lavar com suor o asfalto de suas alamedas. Quase 16 anos mais tarde, fiz da USP meu destino de hoje na reta final de meu percurso de 460 km por São Paulo, em homenagem ao próximo aniversário da cidade.
Confesso que, por várias vezes, relutei em incluí-la no meu trajeto. Conhecida demais, carne de vaca, pensava eu. Não há, porém, como dissociá-la do mundo das corridas, do atletismo, da busca de saúde e diversão.
Quando comecei a frequentar a Cidade Universitária, por sinal, era diversão e descanso que buscava. Nos domingos de sol, levava minhas filhas para desfrutar dos gramados, do sol, das sombras. Hoje a Cidade Universitária não é aberta ao público aos domingos, mas, nas manhãs de sábado, fica engalanada pela presença de milhares de atletas amadores –já vi cálculos estimando em 10 mil pessoas a frequência nas sabatinas.
Há corredores e ciclistas, num convívio de equilíbrio instável, que às vezes explode em bate-boca, briga ou acidente (não tenho dados para julgar com precisão, mas fico com a impressão de que esses acontecimentos menos felizes estão menos frequentes).
Para evitar a muvuca, preferi a manhã de hoje. Imaginava que seria uma trajeto solitário e desde ontem me preparava psicologicamente para enfrentar longas horas de conversa comigo mesmo. Para minha sorte, porém, encontrei um corredor, colega de longa data, que se juntou à minha caminhada, tornando tudo muito mais fácil e divertido.
Mesmo assim, enquanto conversávamos, uma parte de mim mergulhava na ladeira da memória. Cada pedaço de asfalto fez parte de um treino; cada metro de trilha me acompanhou em algum momento da minha vida de corredor.
Quando me recuperava de minha primeira fratura por estresse, por exemplo, usava apenas a grama. Quando fiz a preparação para minha primeira ultramaratona, rodei quatro vezes seguidas a “volta da USP”, um treino de cinco horas do qual saí convencido de que estava pronto para enfrentar os morros e o sol da África do Sul (estava mesmo!).
A tal “volta da USP” é um percurso de dez quilômetros com algumas subidas e descidas leves, mais a temida escalada da Biologia e a veloz rampa abaixo da Arquitetura. Na época, alguma provas “oficiais” usavam esse trajeto –hoje quase todas dão preferência para roteiros mais planos e menos complicados–, mas meu debute foi em circuito diferente.
A minha primeira corrida teve apenas oito quilômetros e consistiu de duas voltas na avenida em frente à raia de remo, com o final na pista de atletismo do estádio. Resumo da ópera: vai 2 km, volta 2 km, repete o feito e termina o estádio, sob o aplauso das arquibancadas. Que não estavam lotadas, mas tinham minha mulher e minhas filhas, o que era tudo o que eu precisava e queria…
Caminhando hoje, revi a curva do retorno, no fundão da reta da avenida Professor Mello Moraes (é a primeira vez que leio, escrevo ou ouço o nome oficial da avenida da raia). Prezado leitor, estimada leitora, você não imagina como essa curva demorou a chegar, na primeira volta de minha primeira corrida.
Eu lembro de ver os atletas voltando; fazia o maior esforço para entender onde ficava o ponto de retorno, mas estava distante de minha vista. Quanto mais corrida, o ponto de retorno parecia mais distante; eu bufava, resfolegava e seguia correndo, algum dia ia ter de haver uma curva, algum dia eu ia começar a voltar também.
Depois, passou; fui passando alguns atletas, encontrando o caminho de mim mesmo até que descobri o alvo, acho que foi lá pelo km 5 ou 6, e aí tudo ficou mais fácil –ou, pelo menos, é assim que eu vejo olhando de longe, quase 16 anos depois, feliz por saber do resultado daquele desafio.
A USP, claro, não é só corrida; aliás, como é evidente, corrida é apenas um aspecto secundário, lateral, do portento que é essa universidade. “Sua graduação é formada por 240 cursos, dedicados a todas as áreas do conhecimento, distribuídos em 42 unidades de ensino e pesquisa e oferecidos a mais de 57 mil alunos. A pós-graduação é composta por 239 programas (totalizando 308 cursos de mestrado e 299 de doutorado)”, diz o site oficial, AQUI.
Mais importante que a numerália, é sua história de templo da ciência e da cultura –hoje em dia, segundo ouço, há divergências quanto à excelência da universidade, mas, de qualquer forma, fica o registro. Tem um passado de intelectualidade irrequieta, de espírito crítico e contestador –não por acaso, teve muitos de seus professores (os melhores da época, alguém poderia argumentar) cassados, perseguidos e até banidos pela ditadura militar.
Mesmo assim, a USP foi por muitos anos um centro de resistência à opressão. Eu ainda morava em Porto Alegre quando o Crusp (Conjunto residencial da USP) se tornou símbolo de luta pelas liberdades democráticas (saiba mais AQUI, por um site oficial, e AQUI, com um olhar diferente; AQUI estão os registros do inquérito feito pela ditadura).
Já em São Paulo, tive oportunidade de presenciar as grandes manifestações que tiveram como resultado o impeachment do ex-presidente Collor –lembro de um ato em que todos foram vestidos de preto, em resposta à convocação presidencial para que o povo usasse verde-amarelo.
Hoje, acompanho à distância os entreveros que lá acontecem. Participo apenas de corridas e passeios, faço de lá palco para alguns treinos de excelência.
Adoro visitar, por exemplo, o bosque da USP, um local totalmente excelente, como diria Paulo Bonfá no saudoso programa “Rock Gol”.
Quando lá fazia os tais passeios dominicais com minhas filhas, era certo parar na área das argolas; as meninas adoravam se balançar ali, deixando o pai cheio de medo e orgulho (vai que uma caia!!!).
Hoje, o que mais prezo são a sombra e o piso de terra batida, uma raridade nesta São Paulo de cimento, asfalto e fumaça. A volta ali tem um quilometrozinho, faz-se num zás-trás e é uma delícia.
Em treino, é claro, é melhor repeti-la algumas vezes antes de seguir asfalto afora; hoje, porém, fiquei apenas no reconhecimento mínimo e indispensável.
No asfalto, gosto das longas subidas do “final” da USP, passando pela prefeitura e voltando pela avenida do hospital; ainda que não tão íngreme quanto a da Biologia, essa ascensão é demorada, exige resistência e determinação, permite avaliar o ritmo e o fôlego.
Gosto também de me embrenhar por alamedas menos usadas, sair fora do trilho comum da volta já conhecida. Foi numa dessas que descobri uma subida que leva a uma das unidades do Instituto de Física; no alto é o estacionamento do prédio e, de lá, tem-se uma vista sensacional da cidade.
Às vezes, vou até lá só para ficar parado, besta, olhando esse monumento que é São Paulo. Subo num banco que parece estar à minha espera, dirijo a vista para a zona oeste, bebo com os olhos a serra da Cantareira e o pico do Jaraguá, giro o corpo para atacar o centro, a Paulista, a cidade inteira parece estar ali e é de quem viu primeiro.
Hoje sei que não está. Um dia, num texto aqui do blog, escrevi que São Paulo é um mar. Cada vez mais, descubro que não é. Mais se parece, talvez, com um sistema solar, uma galáxia, cheio de planetas de tamanhos e poder diversos, distantes uns dos outros, mas vinculados entre si. E não é de quem viu primeiro, não é de ninguém e é de todos nós.
Melhor parar por aqui, se não viro poeta, apóstolo ou louco (um pouco mais do que sou…). Vamo que vamo!
DIA 37 – PROJETO 460 KM POR SÃO PAULO
Clique no mapa para conhecer mais detalhes sobre o percurso do dia
QUILOMETRAGEM DO DIA: 15 km
TEMPO DO DIA: 2h55min52
QUILOMETRAGEM ACUMULADA: 437 km
TEMPO ACUMULADO: 100h23min15
QUILOMETRAGEM A CUMPRIR: 23 km
DESTAQUES DO PERCURSO: Cidade Universitária, com seu bosque e suas alamedas
Maravilhoso texto, Rodolfo! E que emocionantes as suas memórias. Parabéns por cumprir mais esse grande desafio de vencer a vc mesmo.
Ahhh as corujas que rodeiam a Zona Oeste, elas são ou eram ao menos bem comuns num bairro bem pertinho daí do Villa Lobos e da Vila Leo, a JaGUArA que não se você conhece, e não o Jaguaré não.
Ali tem o parque Vila dos Remédios, que está ótimo, ou estava quando fui para SP da última vez, tem umas 3 trilhas sinalizadas, além de ser super coberto por arvores enormes, cheio de vida e animais.
Parabéns, Rodolfo. Pelo feito e pela bela ideia de homenagear São Paulo em seus 460 anos. Gostaria muito de correr junto cada quilômetro. Desejo sucesso até o final.
Abraço. Jair.
Falta pouco Rodolfo! Mais 23km e Feliz Aniversário Sampa!
Foi eleito o melhor dia, pra mim, que tem um irresistivel apego à Cidade Universitária. Minha tia – mãe conta as história do Crusp, ao qual morou enqto estudava na USP , e foi bem à época mencionada e local onde até hj trabalha como orientadora de Doutorado. Cresci neste local. Era meu passeio predileto e foi lá que me apaixonei por leituras. Deveras…o laboratório dela até hj é repleto de livros . Mas a Cidade Universitária em si é um local delicioso. Tem-se de tudo lá. E esportes sempre foi um ponto forte . Foi com esta matéria que me recordei que já corria desde pequena, na USP. Poxa! Havia apagado da memória. Belas lembranças. Parabéns e até amanhã.
Pena que hoje em dia os bandidos tomaram conta da USP. Só os desavisados passam pela região do HU (Hospital universitário), pois lá é certo que você será assaltado pelos bandidos da favela San Remo. Além disso, motoqueiros com garupa estão roubando bicicletas a luz do dia (último sábado 04/Jan foram 4). Outro ponto de insegurança manjadíssimo é a rua em frente aos caixas eletrônicos (Atiraram no carro de uma corredora da BK no dia 28/Dez se não me falha a memória). E ainda dificultam a entrada da polícia…. Leve seu colete a prova de balas na corrida, pois arma só os bandidos podem usar.