Um caminhante à procura de um parque
05/01/14 14:44“É isto mesmo: avenida Guarapiranga, 575”, me garantiu ontem, por telefone, a simpática moça que atendeu em nome do parque municipal Guarapiranga. Eu havia ligado porque o endereço disponível na página da prefeitura não batia com a localização que os mapas internéticos apontavam.
E, ainda que em boa parte de meus percursos eu saia meio que sem destino, sempre há algum grau de programação, de preparação, especialmente quando o terreno me é pouco conhecido. Hoje pretendia visitar os parques da região da represa de Guarapiranga (alguns deles tinha percorrido dias atrás).
Encontrar o parque ecológico não foi problema, endereço e localização internética bateram de primeira. Já a área verde municipal foi mais complicada, pois o endereço apresentado no portal já não existe, pelo menos oficialmente.
Mas o parque, com certeza, existia: vi na rede vários relatos de visitantes, com descrições que confirmavam as informações do site oficial. Então resolvi sair em busca da área verde, começando do princípio.
Às 7h de hoje, mais ou menos, larguei do largo do Socorro e tomei o rumo da avenida Guarapiranga, uma das grandes vias de acesso a essa parte da zona sul –é a maior região da cidade e tem vários escaninhos, cada um, por sua vez, também gigantesco, como você já viu em outros passeios dessa jornada de 460 km por São Paulo.
Nos seus primeiros dois quilômetros, é puro asfalto, cinza, feiura (sei que volto a me repetir, mas, com raras e conhecidas exceções, a cidade de São Paulo é muito feia, suja, abandonada. Na manhã nublada de hoje, então, as coisas ficavam ainda piores.
Nem passar por um córrego alegra muito a vista. Depois de uns dois quilômetros de avenidona, com corredor de ônibus e vária pistas de rolamento, começo a entender a confusão do endereço (ou, pelo menos, faço uma hipótese que parece razoável).
No que seria seu caminho natural, seguindo em frente, a Guarapiranga vira estrada do M`Boi Mirim (que é a subprefeitura da região). Ou seja, morreria no encontro com a outra avenida. Mas não é isso que acontece: ela faz uma acentuada curva à esquerda, aproxima-se da represa, e a numeração da avenida se confunde com a numeração antiga, da estrada Guarapiranga. O que fora 575, hoje 2.700 e qualquer coisa; quem buscar nos mapas por esse endereço, porém, também não vai encontrar o local do parque.
Mas, caminhando, achei a entrada. E a irritação com a confusão enderecística se transformou em satisfação e prazer: o parque é uma beleza.
Não é muito grande –o equivalente a pouco mais de 15 quarteirões—e o acesso à represa está fechado, porque há risco de desabamento do talude. As outras áreas, porém, podem ser visitadas ao bel prazer do vivente, e são por demais prazerosas.
Adorei, por exemplo, a sala de estar, recantos abertos na mata, com bancos de madeira nem um pouco confortáveis, mas lindos. Quando cheguei, o parque estava com pouco movimento (esperado num dia nublado e propenso à chuva), o que fazia do local um convite ainda mais incisivo ao recolhimento.
Quem prefere ação também encontra: há quadras para esporte, áreas com brinquedos bem bacanas para a criançada, academia ao ar livre para exercitar os músculos e uma volta de 1.500 metros bem desafiadora, com fortes subidas e descidas. O único problema é o piso, paralelepípedo, muito perigoso; há risco de escorregões e de topadas nas pedras irregulares.
Para mim, não parece o mais recomendado piso para corridas, mas havia gente trotando por lá, assim como vários caminhantes. Eu me metia pelas trilhas que encontrava, procurando áreas diferentes, subindo escadarias lindas, algumas feitas de tocos de árvores, outras escavadas na terra.
Não é para menos: o paisagismo do parque foi projetado pelo escritório de Burle Marx, arquiteto apaixonada pela natureza. Segundo o site oficial (veja AQUI), foram registradas na área 181 espécies de árvores, algumas de existência ameaçada –portanto, o parque serve também como reserva natural.
Eu já estava dando por encerrada minha visita quando di um caminhozinho subindo bosque adentro. “Vamos ver no que vai dar”, disse a mim mesmo. Meu amigo, minha amiga, é uma trilha sen-sa-cio-nal, que tem lugar em qualquer treino de força ou preparação para corrida de montanha.
Sobe, desce, tem curva à direita, curva à esquerda, descida mais forte, descida mais leve, subida curta e íngreme, degraus irregulares, sombra, sol, vista da represa… Tá bom assim ou quer mais?
Tem mais: é chão de terra batido, afofado por folhas que caem sem parar das árvores em volta. Há silêncio, quebrado apenas pelo eventual ruído das passadas e resfolegar de outros corredores.
Alguns podem dizer que ela tem muitas curvas. De fato, não é uma volta de um quilômetro como as do bosque da USP ou do bosque do Morumbi: tive de fazer várias idas e vindas para completar aquela distância, o que ficaria muito chato e cansativo na realização de treinos longos.
Acontece que o corredor não usa esse tipo de trajeto ou terreno para longos, nem mesmo para ritmos. Vale para um treino talvez de 5 km, subindo e descendo, invertendo direções, testando caminhos. Além de ser uma boa preparação de força, é também um teste de equilíbrio (a tal propriocepção) pois as mudanças são muitas em todo o percurso.
Resumo da ópera: apesar de não ser treinador, aposto que corredores que se preparam para provas de trilha aproveitariam muito um treino por lá. Vale a viagem, uma vez por semana ou uma vez a cada dez dias. Caminhante desengonçado e medroso que sou, fiz as descidas pé ante pé, temendo sofrer no joelho; quando ficar bom dessa maldita fratura por estresse, pretendo voltar lá e fazer algumas voltas nessa trilha, em alguma manhã solitária.
Minha jornada não terminou ali. Queria ainda conhecer o tal Parque Ecológico Guarapiranga, que fica relativamente perto (mais uma meia dúzia de quilômetros). O caminho não tinha muito mistério: seguir pela avenida Guarapiranga (que um dia fora estrada….) até o fim, tomando então a estrada da Riviera.
No papel, é lindo, na vida real é complicado: como em toda a cidade, ali também as calçadas são um desastre. Tento manter um ritmo razoável, mas a maior dificuldade é ficar equilibrado no terreno irregular, que piora nas longas e, às vezes, íngremes subidas e descidas.
Logo depois do final do parque, passo por uma rua que me faz esquecer daqueles perrengues das calçadas e mergulhar na ladeira da memória. Ali era, até hoje, o ponto mais distante que eu conhecia dessa região da zona sul. Estive ali há mais de dez anos, entrevistando um velejador que foi um dos brasileiros medalhistas de ouro no Pan de 1963, o primeiro realizado no Brasil.
A entrevista fazia parte de um projeto que desenhei e realizei, chamado Ouro no Brasil. Em resumo, conversei com [quase] todos os brasileiros que foram campeões naquela competição, quando o país conquistou 14 ouro. No caso do boxe, não encontrei os lutadores, mas falei com o treinador deles, o grande Valdemar Zumbano, que também recebeu medalha.
Meu entrevistado na Guarapiranga foi o sensacional Klaus Hendriksen, que me recebeu com uma alegria e gentileza que poucas vezes vi em gente tão importante. A entrevista com ele ESTÁ AQUI; se você quiser conhecer todos os entrevistados, CLIQUE AQUI –um dia ainda transformo todas essas conversas em livro…
Bom, chega de passado. A vista a partir da avenida Guarapiranga vai mais uma vez mudando, transforma-se num retrato de São Paulo, das enormes discrepâncias sociais que vivemos. Na avenida, o comércio vibrante subindo o morro; nas encostas, favelas em diversos estágios, algumas até misturadas a ruas em que aparecem grandes sobrados, outras só com barracos muito modestos.
As imagens se repetem na estrada da Riviera, que tem um jeitão mais rural, com grandes terrenos cercados, alguns condomínios, um movimentado pesqueiro… Em alguns pontos, simplesmente não há calçadas, o que torna meu andar ainda mais complicado: o joelho direito volta a doer. No km 11 de minha jornada, sofro pontadas lancinantes, agulhadas, tenho de parar. Mexo um pouco a perna, faço massagem no joelho, mas a dor é interna, lá no meião do osso, sei lá…
Ela passa, porém, depois de alguns instantes. Consigo apoiar a perna no chão; para mim, fica claro que terrenos irregulares são um veneno para o joelho. A pisada fica irregular, os ângulos de entrada são sempre diferentes, e o fêmur dá umas carcadas na área machucada. Calçadas bagunçadas, descubro, são ainda piores para o caminhar do que descidas íngremes; nestas, já sei que o joelho poderá sentir e tomo precauções…
Bom, mas não vou parar agora (atenção, leitor: você NÃO deve fazer isso; ao primeiro sinal de dor, pare; descanse; se a dor persistir, aborte o treino). Tento fazer caminhada mais ritmada, usando mais a rua e menos a calçada; dou jeito na passada e sigo em frente.
O Parque Ecológico do Guarapiranga é um portento! É gigantesco: tem 250,30 hectares, ocupando 7% dos 28 km no entorno da Represa do Guarapiranga.
Toda essa maravilha, no entanto, não está disponível ao público: o parque foi criado em 1999 “para promover a preservação e proteção da fauna e flora no entorno da represa, (…) constituindo uma proteção contra invasões e ocupações ilegais”, de acordo com o site oficial.
São objetivos nobres, e o parque os procura cumprir: há aulas de educação ambiental, atividades monitoradas e um surpreendente e assustador Museu do Lixo, que mostra uma pequena parte dos objetos que já foram retirados da represa…
Como corredor transformado em caminhante, porém, o que mais me interessa em um parque são as trilhas, as áreas de exercício. Vou para a pista de Cooper e me apaixono: todinha de grama, com marcação de distância a cada 100 metros e ainda possibilidade de áreas de sombra… Não tinha visto nenhuma como ela na cidade…
Quando já escrevia na minha cabeça as loas e moas que faria à pista, ela acabou: é curta, curtinha e não tem sequer uma rotatória final de retorno: o caminhante volta sobre seus próprios passos. Pode enveredar por uma trilhazinha mais selvagem, na mata, o que sempre alegra o coração, mas, no final, são meros 500 metros…
Dá para caminhar em outras áreas do parque, mas a passarela ecológica, de madeira, que não agride o solo, é também muito escorregadia quando molhada, como estava hoje. Foi uma luta sair de lá sem levar um tombo daqueles humilhantes… Pelo menos quatro vezes dei um escorregão assustador…
O que não diminui a beleza e os atrativos do parque, que ainda tem quadras esportivas à beira da represa e brinquedos para a criançada. Corredores e caminhantes da região, porém, pelo que vi hoje, preferem ficar mesmo no asfalto em frente ao parque, criando seus próprios caminhos. Afinal, não é o que fazemos sempre? Vamo que vamo!
DIA 33 – PROJETO 460 KM POR SÃO PAULO
Clique no mapa para conhecer mais detalhes sobre o percurso do dia
QUILOMETRAGEM DO DIA: 15 km
TEMPO DO DIA: 3h15
QUILOMETRAGEM ACUMULADA: 400 km
TEMPO ACUMULADO: 91h08min20
QUILOMETRAGEM A CUMPRIR: 60 km
DESTAQUES DO PERCURSO: parque Guarapiranga, Parque Ecológico do Guarapiranga, avenida Guarapiranga, estrada da Riviera
Rodolfo, vc ta correndo ou andando nessas reportagens?
Com uma camera na mao ou na cabeça? Ou uma “armação” presa ao corpo?
Estou caminhando; uso a cãmera de um celular que estou testando. Depois do final do projeto vou publicar texto de avaliação da câmera