“Revolução Esquecida” é lembrada por corredor em São Paulo
02/01/14 14:16Quinhentos e três mortos, 4.846 feridos, mais de 1.500 prédios destruídos –esse foi o resultado do cruel bombardeio que atingiu São Paulo em julho de 1924, castigo que o governo federal impôs à cidade onde seguia vitorioso o movimento de rebeldia contra a oligarquia cafeicultora.
Apesar da enormidade do morticínio no mais violento conflito armado da história paulistana, a memória daqueles dias parece apagada dos registros. Não por acaso, a Revolução de 1924, uma das etapas do movimento tenentista, é também chamada de “Revolução Esquecida”.
As ruas de São Paulo, no entanto, ainda expõem feridas daqueles dias de terror. Foi em busca de alguns desses pontos que saí na manhã de hoje em mais uma etapa de minha jornada de 460 km por São Paulo, em homenagem ao próximo aniversário da cidade.
Dei a largada em frente ao que muitos consideram um dos poucos locais preservados, que resistiram ao tempo e ao bombardeio. Trata-se da chaminé da antiga Usina de Força, no bairro da Luz, ao lado do que hoje é o quartel da temida Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar). O prédio também foi duramente atingido.
Na chaminé, dá para notar o efeito dos tiros e também do tempo. É exagero dizer que ela está preservada. Protegida, talvez, porque há uma cerca em seu redor. Mesmo assim, há lixo atirado na área protegida, e moradores de rua se abrigam nos escaninhos na construção.
O desmazelo com relíquias de nossa história, que ali vi, se repetiu em quase toda a minha jornada. Algumas centenas de metros adiante, na mesma rua João Teodoro, vejo antiga fachada do Liceu de Artes e Ofícios também “preservada” –vítima de vandalismo e sem sequer uma placa que dê informações sobre o local, apesar de estar integrada ao conjunto do prédio da instituição.
Aliás, o centro velho não é apenas testemunha dos maus tratos com nossa história, mas evidência dos maus tratos com o nosso presente. As ruas estão imundas, há lixo espalhado e concentrado em muitos lugares, e perdi a conta do número de prédios abandonados que vi (fiquei pensando na quantidade de gente vivendo ao léu na cidade).
Enveredei pelas ruas mais movimentadas no Brás, onde quase nada é bonito, mas se respira ação, atividade, vida na enorme quantidade de lojas, lojinhas e lojões de confecção. Hoje, porém, a rua Oriente estava mais parada, efeito dos festejos do Ano Novo e do feriadão: muitas portas fechadas decepcionaram os poucos turistas e compradores –em relação a um dia normal—que lá estiveram no início da manhã. Talvez abrissem mais tarde, sei lá.
Cruzei o largo da Concórdia, de irônico nome e, em vez de volta subindo o viaduto do Gasômetro, resolvi margear a linha férrea, do lado de lá, passando pela estação Brás e seguindo em direção ao metrô Bresser. Brás e Belenzinho, ao lado da Mooca, eram bairros operários nos anos 1920 e foram algumas das regiões mais atingidas pelo bombardeio das tropas federais.
Naquela direção, o comércio muda de gênero; em vez de lojas de confecção, uma sequência de armazéns e vendas de comida, casas do norte, alguns depósitos de bolachas e doces. Meus caminhos nem sempre têm saída: mais de uma vez dou de cara no muro que protege a linha férrea. Finalmente, chego à estação Bresser e posso cruzar os trilhos em direção à Mooca.
Passo pelo Museu da Imigração, que fica em um trecho sem saída da rua Visconde de Parnaíba. Ocupa belo prédio de interesse histórico, mas está em obras, fechado à visitação –AQUI você pode consultar o acervo digital.
Frustrado, continuo minha jornada. Numa rua próxima, há uma casa de atendimento a adultos carentes, e seu entorno é tomado por moradores de rua –fico pensando que, mesmo que seja bom o atendimento no albergue, é preciso alguma política para atender os que ficam do lado de fora, entender suas razões, conhecer seus medos.
Bem, na caminhada há também espaço para deixar a mente rolar e curtir a arte pela arte: é assim que registro esta prateleira de uma oficina.
Do viaduto sobre a Alcântara Machado, tenho um vislumbre da área da Mooca que foi bombardeada. Vejo prédios em ruínas, chaminés que resistem ao tempo, telhados com jeito de antigos. É para lá que vou.
Ainda que, entre todos os locais que visitei hoje, a Mooca seja a mais limpa e afluente, ali também encontro lixo nas calçadas de algumas ruas periféricas.
Relego. Meu destino é descobrir os restos do cotonifício Rodolfo Crespi que, além do belo nome, era um dos mais importantes estabelecimentos industriais de São Paulo no início do século. Além de sua pujança econômica, também abrigava um vibrante movimento operário. Foi bombardeado, assim como outros estabelecimentos industriais da região.
Aliás, prédios civis foram os alvos de escolha do governo federal. No dia 13 de julho de 1924, “os bairros da Mooca, Braz e Belenzinho foram atingidos por um canhoneiro tão pesado que as ruas ficaram repletas de cadáveres. Os coveiros não davam conta de cavar sepulturas para enterrar todos os mortos, o que levou muitas famílias a enterrar os mortos nos quintais de suas casas”, segundo registra o site Portal da Mooca (por sinal, muito bom, dá para ficar horas ali).
Do imponente prédio da fábrica de tecidos, sobrou a fachada; o resto é usado por uma grande supermercado que, pelo que pude perceber, talvez tenha mantido também alguns prédios de armazéns antigos. Mas não vi na fachada nenhum registro do que foi o prédio nem da importância histórica dele.
Aliás, estou a me repetir, mas é doloroso ver a história se perdendo no asfalto, como grãos de areia escapando pelas mãos. Meu sentimento se transformou em alegria ao ver um monumento vermelho numa esquina próxima, a confluência das avenida Paes de Barros e ruas da Mooca, do Oratório e Taquari, que era conhecida nos anos 1920 com Praça Vermelha, local de encontros de militantes comunistas e anarquistas.
Ledo engano. A escultura cuidadosamente arquitetada para projetar no solo a letra M foi ali colocada em homenagem aos 450 anos do bairro. Mas as placas nela instaladas não fazem nenhum referência ao local. Foi dali que, em 1930, quando da Revolução comandada por Getúlio Vargas, o povo marchou para arrebentar a delegacia onde sindicalistas e operários costumavam ser trancafiados e sofrerem torturas –o episódio foi uma espécie de Queda da Bastilha paulistana.
O vitorioso movimento de 30, por sinal, é herdeiro direto do derrotado movimento de 1924 –grande parte dos militares que participaram da revolta em São Paulo se somou à Coluna Prestes e ajudou a dar substância ao processo que redundou na vitória getulista.
Donde se conclui que, como diz Chico Buarque na canção imortalizada na voz de Milton nascimento, “A História é um carro alegre, cheio de um povo contente, que atropela indiferente todo aquele que a negue. É um trem riscando trilhos, abrindo novos espaços, acenando muitos braços, balançando nossos filhos”.
Enfim, como em muitos outros conflitos da humanidade, é preciso dar tempo ao tempo para que se possa avaliar quem foram, efetivamente, os vencedores e os vencidos.
Os revolucionários de 1924 podem ter sido esquecidos, mas seu movimento acabou dando frutos seis anos mais tarde. Este não é um blog de história, mas me permita sugerir algumas leituras sobre o assunto.
Para um resumão geral, leia ESTE TEXTO AQUI, de um dos maiores estudiosos do período, o historiador José de Souza Martins. AQUI VOCÊ ENCONTRA um texto acadêmico bem interessante, de Carlo Romani, que oferece uma visão de esquerda daquele processo. Se você prefere um estilo mais jornalístico, confira ESTE TEXTO AQUI, que traz como epígrafe trecho da “Moda da Revolução”, de Cornélio Pires e Arlindo Santana, que você pode OUVIR AQUI. Já que entramos no terreno multimídia, talvez você se interesse pelo documentário “São Paulo, Cidade Aberta”: leia AQUI uma resenha e VEJA AQUI uma cena do filme.
Encontrei ainda um site gigantesco sobre o assunto. Tem o óbvio título de Revolução Brasileira de 1924 e traz muitos artigos de historiadores, com diversas orientações ideológicas. Um dos primeiros textos é uma ampla reportagem sobre a inauguração, no ano passado, no Paraná, de um Memorial da Revolução de 1924. Aqui em São Paulo, não encontrei homenagem semelhante, mas o Arquivo Público fez em 2009 uma exposição chamada “1924 – A Revolução Esquecida” –o registro digital você encontra AQUI.
Bueno, voltando à minha caminhada, segui pela rua Javari para conhecer a fachada do estádio do Juventus, cujo nome oficial é Conde Rodolfo Crespi, o mesmo do já citado cotonifício.
Os vigias não me deixaram entrar para fotografar o campo, o que não diminui meu carinho pelo time: há alguns anos, adorei participar de uma corrida promovida pelo clube. O relato está em meu livro “+Corrida” e também AQUI, na verão antiga deste blog; você precisa rolar a página até chegar ao texto, que se chama “Travessura Encabritadas”.
Dali segui por outras ruas onde estiveram erguidas fábricas vítimas do bombardeio; hoje há fechadas, prédios mal cuidados, de novo o desmazelo com a história de nosso povo. Há pelo menos um quarteirão na rua Borges de Figueiredo que poderia ser transformado em museu a céu aberto. Mas as relíquias se perdem, e as áreas são destinadas a estacionamentos ou enormes condomínios –este, em construção, pelo menos preservou uma chaminé dos tempos antigos.
Não é muito, mas é melhor que nada. A essas altura, já tinha percorrido mais quilômetros do que pretendia nesse dia –tenho de preservar o joelho direito, que tem reclamado um pouco das caminhadas sem descanso (afinal, uma fratura por estresse merece algum cuidado, não é mesmo?).
Apesar disso, sigo em frente, porque tinha visto, em mapa internético, um certo Parque da Mooca, que queria fazer de ponto final de minha jornada de hoje. Caminho, caminho e nada. Vejo apenas um enorme quadrilátero vazio, terreno baldio protegido por muros, numa região um pouco mais alta, de onde é possível ter até uma boa imagem de parte da cidade.
Ando e anda por ali, nada do tal parque, nem ao menos uma pracinha. Só aquele terrenão, que parece estar lá apenas esperando o tempo passar, em tradicional processo de especulação imobiliária.
Calculo que tenha pelo menos uns 100 mil metros quadrados, e imagino se não seria ali o tal Parque? Não é, mas deveria ser –pelo menos, na opinião de um grupo de moradores. É o que percebo nas pichações nos muros que protegem a área verde: “Queremos um parque na Mooca”, diz uma delas.
Em agosto passado, descubro depois de rápida pesquisa na internet, cerca de 500 pessoas participaram de um abraçaço no terreno, reivindicando que o espaço seja entregue ao público. Parece que a Mooca mantém viva sua tradição de mobilização popular.
Vamo que vamo!
DIA 31 – PROJETO 460 KM POR SÃO PAULO
Clique no mapa para conhecer mais detalhes sobre o percurso do dia
QUILOMETRAGEM DO DIA: 12 km
TEMPO DO DIA: 2h37min26
QUILOMETRAGEM ACUMULADA: 380 km
TEMPO ACUMULADO: 85h52min42
QUILOMETRAGEM A CUMPRIR: 80 km
DESTAQUES DO PERCURSO: chaminé da Luz, tombada pelo Patrimônio Histórico, bairros do Brás, Belenzinho e Mooca, áreas atingidas por bombardeio na Revolução de 1924, Museu da Imigração,
Sensacional! Trabalho de corredor-historiaado sem precedentes. O texto faz até os mais jovens e assumidamente alienados (com vergonha, assumo) viajarem na importância do passsado.
Que legal! Muito obrigado, abs
Lucena, também sou jornalista e invisto na corrida para reforçar a qualidade de vida. Mantenho o blog com dicas, aqui em Ribeirão, onde edito Economia. Parabéns pelo projeto 460, que divulguei no blog. Vindo para cá, mantenha contato. Abs
Obrigado, Delcy, abraço
Oi, bom eu estudei no Liceu de Artes e Ofícios e cresci na Mooca, por isso tenho dois comentários para fazer.
1. Se você tivesse entrado no Extra próximo aos caixas tem um pequeno memorial de uns 5 banners contando a história do prédio e sua importância na Revolução de 1924, ele até que está bem preservado internamente…
2. A fachada mostrada pela foto do Liceu está realmente desgastada, mas o interior dos galões foi recentemente reformado para uma exposição de arte ( A Paralela), assim com as partes históricas da escola estão bem preservadas, mesmo sendo utilizadas para aulas, a escola também abriga um museu, porém este está fechado a 15 anos por falta de verbas, apenas os alunos e convidados tem acesso
PS. a chaminé mostrada não foi conservada de boa vontade, foi uma imposição para a construção dos prédios, o alvará foi concedido apenas após a garantia de que ela seria conservada.
PS 2. A ROTA recentemente abriu um museu que fica em túneis subterrâneos usados durante a ditadura para o transporte de prisioneiros políticos, tendo uma saída inclusive dentro do próprio Liceu, no Museu da Arte Sacra e na atual estação pinacoteca, acho que seria bastante interessante contar essa história.
Desculpe se fui repetitiva ou se contei coisas que você já sabia, achei muito interessante sua iniciativa 🙂
Iara
Que nada, iara, muito obrigado pelas informações enriquecedoras. Vou ver essa história do museu da Rota
Rodolfo, parabéns!
Valeuuuuuuuuuuuuuuuuuuu!
Brilhante!!! Percusro muito interessante, texto excepcional.
O percurso deveria ser objeto de excursão escolar. Este texto deveria constar do curricullum escolar do prezinho a provas de vestibular.
O trajeto deveria ser percorrido por vereadores, secretarios da prefeitura, pelo Sr. Prefeito. Sim, e desetes últimos cobramos providencias para a preservação da historia desta cidade.
Parabens Rodolfo.