Corredor descobre Bororé, ilha com veneno no coração
29/12/13 16:19Câncer. O diagnóstico veio em agosto do ano passado, e ela seguiu os passos recomendados: fez a cirurgia para extirpar as mamas, radioterapia e quimioterapia. Para ficar mais segura, complementou o tratamento com produtos naturais, que podem lhe fortalecer o sistema imunológico. Hoje caminha firme, mesmo sob o sol forte, e acredita que não foi acidente:
“Não sou só eu. Aqui perto de casa, tem mais uma. Dois morreram esses tempos e tem mais dois com câncer, intestino, mais ali para a frente”, diz Jacqueline Penha Ribeiro, 49, funcionária pública na área de saúde e guia de turismo na ilha do Bororé, na zona sul de São Paulo.
Não parece normal tal incidência da doença. A culpa, diz ela, pode ser da água. O bairro que, apesar de ser chamado de ilha, é uma península, não tem água encanada, não recebe serviços da Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do estado de São Paulo). Os moradores se abastecem em poços, e o terreno está contaminado por metais pesados.
Jacqueline conta que estudo recente demonstrou a presença de alumínio e bário entre outros metais deletérios para os humanos e de comprovada relação com a incidência de câncer e outros males (uma reportagem que vi sobre a ilha falava de pessoas com problemas de pele). Além desse, vários trabalhos científicos realizados nos últimos dez anos já demonstraram que há diversos tipos de contaminação na água da região.
Esta pesquisa AQUI, por exemplo, conclui que “parte dos poços utilizados para abastecimento humano na região da Ilha do Bororé-SP apresentam-se contaminados por microrganismos do grupo coliformes; a maneira como são construídos pode estar auxiliando na contaminação; e existem indícios da ocorrência de doenças associadas ao consumo de água contaminada”.
Todos os estudos que li propõem imediata intervenção de autoridades competentes para minorar os problemas. Jacqueline, que hoje foi minha anfitriã na ilha, em que trilhei mais um pedaço de minha jornada de 460 km em homenagem ao próximo aniversário de São Paulo, diz que nada tem sido feito, apesar das reivindicações da comunidade.
A Associação de Turismo da Ilha do Bororé, por exemplo, tem um projeto para identificar os problemas de abastecimento e procurar soluções. Por ironia ou como manifestação de desejo, a página se chama Ilha do Bororé Saudável (saiba mais AQUI).
A ilha, no entanto, parece mais com o próprio nome, que identifica veneno feito com ervas e usado para deixar mais mortais as flechas produzidas pelos índios da região. O veneno do nome, a ilha o traz também no coração, nos intestinos, na terra e na água.
Está, porém, distante da vista. Ao olhar do visitante, Bororé é uma beleza, recanto paradisíaco feito de verde intocado (ou pouco tocado), que contrasta com o cinza e a feiura do lado de cá do as águas.
Para chegar até a balsa que faz a travessia 24 horas por dia, é preciso descer a avenida Dona Belmira Marin, que é supermovimentada e, nas horas de pico, para mesmo –há quem leve uma hora para percorrer os cerca de oito quilômetros da balsa até a avenida Teotônio Vilela, uma das principais artérias da zona sul.
Hoje, porém, foi rapidinho: quando passei por lá, o comércio estava todo dormindo e não havia fila para a balsa. A travessia durou cerca de cinco minutos e, chegando ao outro lado, dois impactos: a sujeira da rua, com lixo espalhado pelo chão contrastando com a beleza natural da área, e o cheiro de mato, ar gostoso.
Nossa anfitriã nos leva, primeiro, por um passeio histórico. Vemos o cruzeiro, supostamente ponto de partida e chegada de romarias de tropeiros no final do século 19, e a capelinha local, construída em 1904. Do outro lado da rua, o primeiro armazém do bairro ainda resiste, depois de reformas e mais reformas. Sobraram, porém, a estrutura arquitetônica original e parte da cobertura, montada com telhas feitas nas coxas ali mesmo no bairro.
Olarias, nos conta Jacqueline, foram as primeiras atividades econômicas da região, aproveitando o terreno argiloso. Havia também fazendas de carvão, a exemplo das existentes em encostas na serra do Mar (falei sobre isso no texto de ontem). Hoje, Bororé faz parte de uma área de proteção ambiental e a ilha é reserva natural, então há grande controle sobre a produção na região, e não são permitidas novas construções.
O que não significa eu tudo esteja às mil maravilhas para os cerca de 3.500 moradores da ilha. Que não é ilha, mas onde a população fica ilhada e abandonada a qualquer problema: por causa da chuva da noite passada, a ilha acordou hoje sem luz elétrica, o que é muito comum acontecer.
Mesmo em dias de sol, o povo pode ficar sem ter o direito de ir e vir. Isso porque a afluência de visitantes nos fins de semana engarrafa a via de acesso à balsa, e os ônibus não conseguem passar ou têm de esperar muito para conseguir passagem. “Já teve demora de mais de cinco horas”, diz minha cicerone.
Ao que parece, é terra sem lei: não há na região posto de polícia, nem mesmo daqueles trailers… Apesar disso, na minha visita de hoje vi passar um carro da PM e um da Polícia Ambiental da Guarda Civil Metropolitana. E foi só. Também, pelo menos que eu visse, não havia nada que exigisse presença das forças da lei.
O certo é que, segundo me diz Jacqueline (foto), a juventude local não se sente atraída a ficar por ali. E os moradores mais antigos, como a própria anfitrião, que nasceu ali mesmo, em uma baia de cavalos, numa fazendo onde trabalhavam seus pais, estão cada vez mais desconsolados.
“A gente fornece água e luz para São Paulo”, diz Jacqueline, referindo-se à represa Billings, “mas não temos água boa nem luz”. Seu rosto, que sempre esteve disposto ao longo de nossa caminhada, se entristece: “A pior coisa é o descaso, o abandono.”
Como a pontuar a frase da bororerense, ouvimos um ganido de cão, fraquinho, choroso. Machucado ou doente, imaginamos. Passávamos sob o Rodoanel, e Jacqueline logo encontrou uma trilha para que subíssemos até o estradão. Dali mesmo deu para ver um cachorrinho preso em um moirão, no canteiro central da autoestrada.
Atravessamos o asfalto, fomos até lá. A cadelinha era o retrato da maldade humana: estava amarrada com um fio, deixada ali sem água nem comida, para morrer se esganiçando em choro por ajuda. Ciclistas que passavam por ali também já a tinham visto e nos falaram que havia avisado a polícia.
Mas resolvemos não esperar. Ela estava arisca, apesar de cansada, e ameaçava morder a mão do afago. Recusou comida, mas aceitou água. Com ajuda de um ciclista, conseguimos por fim desembaraçar o emaranhado de nós que a prendia. A cadelinha não quis vir com a gente, mas, pelo menos, estava livre. (Pelo que conta ESTE SITE, a ilha do veneno também pode ser conhecida como ilha do abandono)
Ficamos imaginando quem poderia ter feito tal coisa, qual a personalidade do sujeito. Ele se deu a um trabalho danado para fazer a maldade, chegou mesmo a colocar em risco a vida –atravessar o rodoanel não é a coisa mais segura do mundo. Vai entender a raça humana…
A gente nem tentou. Seguimos até o ponto final da estrada principal da ilha, que começa em uma balsa (a primeira balsa, por suposto) e termina na segunda balsa (há ainda uma terceira, mais ao sul, mas leva a outras áreas da região).
Em caso de total incapacidade de ação das balsas, o visitante pode pegar uma estrada que desemboca no terminal de ônibus Varginha. Mas advirto que o percurso é dolorido e pouco recomendado.
O rodoanel rasgou Bororé em duas –diferentemente do ocorrido em Parelheiros, aqui a autoestrada se assentou sobre aterro, fazendo uma espécie de muralha, com aberturas em alguns pontos. Já ocorreu acidente em que um ônibus voou do rodoanel e fechou a passagem sob a estrada, reilhando os ilhéus.
Falando em passagem, Bororé está no percurso de um importante circuito de ciclismo, a rota Márcia Prado, em homenagem a uma ciclista que morreu atropelada na avenida Paulista (saiba mais AQUI). Também faz parte do caminho de uma cavalgada até Pirapora do Bom Jesus.
E, a partir de hoje, integra minha jornada de 460 km por São Paulo. Foram 13 km de muito aprendizado e descobertas na ilha que não é ilha e tem o coração envenenado.
Amanhã tem mais. Vamo que vamo.
DIA 27 – PROJETO 460 KM POR SÃO PAULO
Clique no mapa para conhecer mais detalhes sobre o percurso do dia
QUILOMETRAGEM DO DIA: 13 km
TEMPO DO DIA: 4h03min17
QUILOMETRAGEM ACUMULADA: 326km
TEMPO ACUMULADO: 74h54min46
QUILOMETRAGEM A CUMPRIR: 134 km
DESTAQUE DO PERCURSO: ilha Bororé
Gostei muito da reportagem, morei por 20 anos nas proximidades (Jd. Eliana) e quando criança gostava muito de passear pela Ilha do Bororé. É uma pena que esteja neste estado.
Muito boa sua reportagem. Pena que nossos políticos não servem para ajudar nosso povo. Bororé precisa urgentemente de socorro.
Um abraço, grande maratonista.
Dorivam.
Que fantástica associação dos fatos estás fazendo Rodolfo Lucena. Estou acompanhando e adorando tua crônica a pé por São Paulo, com olhar sintonizado no esporte, história e na cotidiano raramente observado com o rigor com que estás olhando e contando para a gente. Obrigada, parabéns!
Já estive lá algumas vezes, por balsa e
pela estrada. A região é linda!!