Água da bica revigora caminhante cansado da trilha
28/12/13 20:32Quando saí de lá, já quase não se enxergava nada. Vinda do mar, da montanha, dos céus, sei lá de onde, a neblina tomava conta da paisagem. Vinha a galope, tal Cavalo Branco, como é chamada pelos índios guaranis que habitam a região. Mas não apagava da memória as imagens que eu acabara de ver, gigantescos cartões-postais feitos de vida, verde, mata e morro, nuvens e sol a pino (meio envergonhado de quando em vez e, na hora em que saí, totalmente dominado…).
Visitei hoje, na minha jornada de 460 km por São Paulo, em homenagem ao próximo aniversário, o ponto mais distante do centro que conheço. É no alto de um morro, 880 m acima do nível do mar, no extremo sul da cidade, divisa com Itanhaém, que vai se derramar montanha abaixo até chegar às ondas do Atlântico.
O mirante, de onde dizem que se avista o mar em dia de céu limpo, fica no Parque Estadual Serra do Mar, núcleo Curucutu, uma joia da natureza protegida pela distância do centro, por estradas de terra não muito bem cuidadas e pelo difícil (impossível???) acesso por transporte coletivo –o ponto de ônibus mais próximo fica a 11 km da entrada do núcleo, segundo site oficial, mas trabalhadores do parque me falaram em 15 km…
Donde se conclui que não faço poesia nem invento marra se lhe digo que a primeira aventura foi a própria chegada ao local. O que deveria ser um percurso de cerca de 70 km, conforme os mapas oficiais, chegou a mais de 92 km por causa dos caminhos errados que tomamos.
E não foi por falta de orientação: na véspera, liguei para o parque e fui muito bem atendido por telefone. Recebi várias dicas a respeito do passeio e até uma mensagem eletrônica com mapa e mais orientações para a trilha (levar comida, não esquecer o repelente de insetos nem o protetor solar, colocar na mochila troca de roupa extra e por aí vai).
Na interpretação do mapa, porém, nos equivocamos; quando pedimos ajuda na estrada, recebemos dicas pouco claras e até desorientadoras. Resultado: depois de mais de duas horas de viagem, chegamos à porteira da estrada que nos levaria à aldeia Curucutu de índios guarani.
Estávamos na estrada errada, na direção errada, na distância errada e no Curucutu errado. O remédio, nos disse um superatencioso guarda ambiental, seria voltar tudo até a bifurcação onde havíamos cometido o pecado original.
Cocei a cabeça, comecei a arrancar a barba em desespero, o que talvez tenha avivado a carta geográfica cerebral de nosso amigo, que sugeriu um corte de caminho, mas por estrada de terra. O percurso seria mais difícil, mas bem mais curto e com menor risco de erro, garantiu ele (desculpe aí, não lhe guardei o nome, a conversa foi rápida, mas saiba que tem minha gratidão eterna; aliás, acho que era soldado Douglas, mas pode ser só impressão).
Vamos nessa. A vantagem foi que tangenciamos a Cratera de Colônia e pude entreter os parceiros de jornada com informações sobre o território paulistano onde, há milhões de anos, um corpo celeste explodiu. Você, fiel leitor deste blog, já conhece toda a história; se não conhecer, por favor, dê uma pesquisada rápida aqui mesmo no Mais Corrida –basta colocar a expressão Cratera de Colônia na caixinha de busca que fica aqui ao lado deste texto (vale a pena, lhe garanto, ainda que minha opinião possa ser suspeita).
Bueno, para encurtar a história, perguntamos ainda mais algumas vezes ao longo do caminho, mas não nos perdemos mais. De qualquer forma, exultei e saí correndo do carro, quase gritando GOOOOLLLL! Quando vimos a primeira placa indicativa apontando o Núcleo Curucutu. Dizia que nosso destino estava a 5,5 km de distância. Se estivesse a 55 km, e nós na direção certa, também festejaria!
Contamos a sucessão de trapalhadas ao simpático monitor que nos atendeu, destacamos que tinham sido três horas e quarenta minutos de viagem sob o sol inclemente e sobre chassis trepidante em estrada de que carrinho mil, como o nosso, pede distância. O especialista nas trilhas do Curucutu foi solidário e ainda nos deu esperanças: “Demorou, mas vai valer a pena”.
Conta já, para lhe deixar com água na boca: valeu a pena mesmo. E olha que a trilha tem míseros dois quilômetros e caquerada. Com mais umas voltinhas que fizemos, meu GPS marcou 3,4 km percorridos em quase três horas de caminhada. Como um pequeno trecho da trilha invade o município fronteiriço, deixamos tudo por 3 km, para efeito do Projeto 460 km por SP, e fica resolvido.
Perdão por ter interrompido a descrição do majestoso parque com essas minúcias administrativas, mas é bom que você fique sabendo de todos os meus andares, em nome da transparência. Além disso, o passeio também começa de uma forma um pouco burocrática para quem está com sede de mato.
Antes de meter o pé no barro (hoje nem tinha tanto barro assim) somos apresentados às instalações do Núcleo Curucutu. Um mapa mostra as dimensões do parque estadual como um todo, uma maquete dá uma ideia tridimensional do terreno, e o monitor ensina que o nome do núcleo homenageia um tipo de coruja.
Ficamos sabendo também que, até 1957, a área era ocupada por uma fazenda produtora de carvão vegetal –ou seja, plantava árvores para queimar. Para preservar mananciais –na região, há nascentes dos rios Capivari e Embu Guaçu–, o Estado comprou a Fazenda Curucutu em 1958 e transformou seus 12,029 mil hectares em reserva florestal.
É um terreno enorme. Imagine que um hectare é mais ou menos um quarteirão de rua (10 mil metros quadrados). O parque, então, toma 12 mil quarteirões e mais um pouco. E coloca na trilha marco informando o ponto exato da divisa entre São Paulo e Itanhaém.
Nas suas boas intenções em defesa do ambiente, São Paulo tratou de tentar recuperar a área deflorestada. O governo investiu em espécie de rápido crescimento e, desde 1963, já foram cultivadas ali cerca de 63 mil árvores pinus eliiottii (uso a grafia recomendada pelo Aurélio).
Muito bem, a mata reviveu. Alto lá! Como percebe quem passa por ali ou em qualquer outro território de pinheiros, onde eles crescem não nasce grama nem praticamente nenhum outro tipo de vegetação. Há silêncio na mata porque não há pássaros nem animais em busca de comida.
O resultado é que há no parque uma floresta de pinheiros que faz um mal danado para a vegetação nativa, dificulta sua recuperação. Hoje consciente disso, a administração tem planos para cortar todos os pinus, mas isso envolve licitações, concorrências, burocracia e tal e coisa –não se sabe quando, portanto, serão tomadas as devidas providências.
Enquanto isso, os monitores e manejadores do parque estão em guerra de guerrilha contra o pinheiral, cortando e eliminando as mudas pequenas que encontram pelos caminhos do Curucutu.
Então, chega de conversa e trilhemos esses caminhos. São de subida, por suposto, já que o destino é o Mirante (1,6 km de percurso com dificuldade média, segundo o folheto oficial, cerca de duas horas de caminhada com paradas e explicações do monitor).
A trilha começa lindinha e arrumadinha, com degraus sustentados por pedaços de tronco, e vai se tornando menos comportada à medida que adentramos a mata. Nas imediações das instalações do parque, a floresta é o tal pinheiral e, assim, um tanto estéril (algum biólogo que me leia por certo vai pular da cadeira ao ler um ambiente natural descrito como estéril, mas não se avexe não, é força de expressão…).
Caminhemos mais alguns metros e a mata se enche de vida: dá para perceber exatamente o fim do pinheiral e o início da vegetação nativa, menos vibrante e impressionante, mais baixa, arbustiva, verdejante.
Trata-se, mais ainda, de um impressionante viveiro de bromélias e orquídeas, de diferentes tipos, tamanhos, cores –a chuva-de-ouro parecve dominar, mas há muitas outras.
Pare um pouco e respire. Dá até dor no pulmão. Não vou dizer que o ar seja limpo, pois dificilmente encontraremos ar puro no planeta terra, em tempos hodiernos, mas pelo menos não é fedido; é claro, cheiroso, um sopro de vida em alvéolos carcomidos pela fumaça dos motores.
A parada é boa para perceber o chão. Há terreno mais seco, outro mais escorregadio, barro, terra firme, às vezes alguma pedra cheia de limo vira armadilha –as piores, porém, são as arapucas colocadas por caçadores clandestinos à caça de tatus e outros animais.
Na vimos nenhum bicho grande (a joaninha não conta nem os famélicos insetos), apesar da propalada riqueza da fauna da região.
Veados, macacos, tatus, antas, jaguatiricas e onças estão entre as espécies de presença registrada, assim, como uma variedade enorme de aves –que eu me lembre, só vi um casal de quero-queros valentemente protegendo seu ninho com rasantes aterradores.
O que não vimos de bichos, vimos em penca de plantas. Até uma carnívora –insetívora, corrige o monitor, mas admite que todo mundo chama a dita de carnívora. Sua base mantém fresquinhas as gotas do orvalho noturno; quando insetos vêm se banhar ou beber, se enredam nos pelinhos da planta. De consumidores, passam a ser consumidos…
Já os caminhantes se consomem em suor; o sol está forte, mas escondido pelas nuvens. Mesmo assim, o calor é intenso. “Tudo é mais aqui”, diz o monitor, informando que a diferença de temperatura em relação ao centro da cidade, no calor ou no frio, pode chegar a seis graus.
Apesar do nevoeiro, do topo do mundo –ou, pelo menos, do topo o mirante—dá para ver o marr de morros que se estende até o oceano de água. Não consigo identificar Itanhaem nem a praia, mas a paisagem grandiosa já me satisfaz.
A viagem de volta, moror abaixo, dá ainda mais satisfação. Passamos por um bica, ducha e baheira naturais em um dos caminhos de água do morro. Desce gelada e forte, explode na cabeça, na nuca, nas costas, dá um choque que faz o coração voar para tentar obrigar o corpo a reagir…
Berrando e pulando, aos poucos a gente se acalma. Não que o gelo fique menos gelado, mas é suportável. O choque inicial se transformação em compreensão, mergulho na água, me deixo envolver; apesar de pequena, a banheirinha permite até que estenda o corpo e me deixe levar pela água.
Revivo. Saio da água melhor, mais disposto, alegre, falante. Ainda bem, porque aqui acabou. E amanhã tem mais. Vamo que vamo!
DIA 26 – PROJETO 460 KM POR SÃO PAULO
Clique no mapa para conhecer mais detalhes sobre o percurso do dia
QUILOMETRAGEM DO DIA: 3 km
TEMPO DO DIA: 2h54min17
QUILOMETRAGEM ACUMULADA: 313km
TEMPO ACUMULADO: 70h51min29
QUILOMETRAGEM A CUMPRIR: 147 km
DESTAQUES DO PERCURSO: Parque Estadual Serra do Mar, núcleo Curucutu; trilha do Mirante
Prezado Rodolfo, obrigado pelas narrativas, essa da trilha do Mirante foi espetacular, me vi mergulhando nessa água maravilhosa. Grande abraço e continue nos brindando com seus passos rumo aos 460km. ass rodolfo luiz do nascimento