Corredor vê Campo Limpo coberto de asfalto e cinza
27/12/13 14:15A mão foi o que vi primeiro. Tal qual em um filme de terror, os dedos emergiram das profundezas, parecendo independentes de corpo. Tatearam o cimento e sentaram praça, permitindo que a palma se apoiasse completamente, dando sustentação ao braço esquerdo, que se ergueu e, como guindaste ou grua, puxou o resto do homem.
Apareceu o cabelo, a testa, o rosto, o tronco já curvado sobre o braço, impulsionado talvez pela perna esquerda que, fora da vista, protegida pela mureta, servia de alavanca para o salto. O braço direito girou em movimento amplo, como pêndulo, carregando um enorme saco preto de lixo, talvez cheio de latinhas de cerveja vazias, pedaços de papelão ou outro lixo qualquer que pudesse valer alguma coisa em algum lugar. Enfim, o homem vindo das margens do córrego sujo e fedorento, metros abaixo do nível da rua, pulou a mureta, equilibrou-se no arremedo de calçada, ganhou a avenida e foi-se embora pelo dia adentro.
Vi a cena na manhã de hoje, enquanto caminhava pela estrada de Campo Limpo, na zona sul de São Paulo, ciceroneado pela jornalista comunitária Patrícia Silva, 25. Tudo aconteceu em poucos segundos, mas o movimento pareceu resumir o que vi hoje naquele bairro da zona sul de São Paulo, nos limites da cidade: muitos riachos a céu aberto, valões escuros e fedorentos, e muita gente querendo ganhar a vida como lhe fosse possível, em um comércio que parece florescente.
Antes de nosso passeio começar, fomos até o Cristo de Taboão da Serra. Fica no alto de uma escadaria que pode tirar o fôlego de alguém menos treinado. De lá, vê-se São Paulo e uma grande parte do bairro que iríamos visitar; até bati uma foto (acima) que me pareceu artística, seja lá o que esse conceito encerre.
Apesar de nos arrancar um pouco de suor, essa primeira caminhada não valeu. Só liguei o GPS quando já estávamos novamente em São Paulo –ali, basta atravessar a rua para trocar de cidade. Mas o piscinão do córrego Pirajussara, obra protetora contra enchentes na região, deixava bem claro que estávamos na Pauliceia.
Seguindo pela estrada do Campo Limpo, que é uma espécie de perimetral do bairro e tem alguns quarteirões com muitas casas de comércio e serviço, de bares a bancos e filiais de grandes magazines, encontraríamos ainda mais um grande piscinão, além de muitos córregos…
Não por acaso, o bairro é ponto de enchentes e, nas encostas dos morros que o rodeiam, há muitas casas enfaveladas que podem cair em algum temporal mais forte (há 32 áreas de risco, segundo levantamento divulgado pela Prefeitura).
Na avenida, porém, o risco maior é para os pedestres: as calçadas, como em quase toda a cidade, são estreitas; quando eventualmente mais largas, é preciso disputar a tapa o espaço com carros levados para conserto em oficinas ou simplesmente fazendo alguma manobra…
Patrícia, que mora ali há 20 anos, define Campo Limpo como bairro-dormitório; é exemplo de construção sobre construção, cimento, asfalto, tijolo e fumaça de ônibus, carro e caminhão.
Só depois de uns cinco quilômetros andando é que chegamos à primeira grande área verde da região, um complexo de duas praças, cada uma com seu próprio nome, que é mais conhecido como praça do Campo Limpo.
Escrevi “grande” em comparação com outras áreas que vi, mas não serve nem para disputa de uma milha: a volta dá menos de um quilômetro e boa parte do terreno estava às traças (ou às pombas, para ser mais preciso) na manhã de hoje.
Mesmo assim, é o melhor terreno para treinos de corrida e caminhada; vi alguns abnegados esportistas ali valendo volta sobre volta, completando a distância do treino fazendo contornos em uma avenida que sai do meio da praça e que, apesar de larga, é pouco movimentada. Ainda bem…
Na sua área mais movimentada, há brinquedos para crianças e uma pista de skate, que um solitário skatista ocupava hoje. É um terreno bem arborizado e fica vizinho a uma das entidades mais ativas na comunidade, comandada pelo grupo de teatro Trupe Artemanha (leia AQUI reportagem que Patrícia escreveu sobre o trabalho da turma). Do outro lado da praça, que parece o epicentro do movimento comunitário local, fica a portentosa sede do Projeto Arrastão.
Não que tudo seja uma belezura pelos arredores. A próxima rua, apesar do animado nome de Serra da Esperança, é grudadinha num desesperado córrego (mais um, este talvez seja caudatário do Pirajussara, se não for o próprio…); logo em seguida vem a fronteira com Taboão, com o que faço a volta e trato de me enfronhar mais pelos caminhos do Campo Limpo.
É uma grande área da cidade. O bairro em si tem cerca de 13 quilômetros quadrados e mais de 200 mil habitantes; é administrado pela subprefeitura de Campo Limpo, que ainda abrange Capão Redondo e Vila Andrade –mais de 600 mil pessoas no total, em uma área de aproximadamente 36 quilômetros quadrados.
“Eu não seria assim, de correr atrás e querer saber das coisas, se não morasse aqui”, avalia a jovem Patricía. “Eu quero entender melhor as pessoas, descobrir qual o meu papel em tudo isso.”
É o que a move a fazer mais um vestibular, agora para cursar Ciências Sociais. Por isso, sai da casa por volta das nove da manhã e só volta perto da meia noite, depois de um dia de trabalho e de aulas no cursinho.
É uma rotina a que está acostumada, e já foi pior: quando se preparava para o primeiro vestibular, de jornalista, trabalhava em um restaurante de dia e estudava à noite. Ganhava bem menos do que hoje, mas o tempo gasto no transporte, na fieira de ônibus, metrô e trem, continua o mesmo.
No final de semana, é dia de cuidar das tarefas domésticas. Nem sempre, porém, é possível cumprir sua cota de lavação de roupa: ontem, por exemplo, faltou água na casa em que mora (não é coisa nova, como se vê nesta reportagem AQUI).
A rua onde mora Patrícia é longa, começa com moradias que chegam a custar R$ 200 mil, vai subindo o morro e se enfavelando: barracos se acotovelam, pessoas caminham quarteirões em penca até chegarem à parada de ônibus mais próxima, e a violência diz presente.
Numa rua vizinha, no quarteirão abaixo da casa da jornalista comunitária, por exemplo, dois jovens foram executados a tiros no ano passado. Estavam numa viela, pertinho de outro córrego imundo onde casas se equilibram sobre palafitas. A reportagem que relata o crime cita outros assassinatos ocorridos em dias próximos, também ali por perto (leia AQUI). Aquele outubro foi pródigo de sangue, em casos em que os criminosos podem ter sido integrantes da polícia que jurou proteger a população (leia mais AQUI).
Para sair dali, muitas vezes ela subia uma montanha, na sua caminhada até o transporte público para ir à escola. Hoje, repetimos a escalada, que é muuuito mais íngreme do que qualquer Brigadeiro que se apresente na São Silvestre. Mesmo assim, sobrevivemos, chegamos ao alto e despencamos para mais uma das grandes áreas de comércio do Campo Limpo.
Tal como outras da região,a rua da lomba abaixo encerra em si mesma ampla diversidade: num mesmo quarteirão, comércio, favela e bem pintadas casas de alvenaria. Algumas aproveitam o sol para secar a roupa do dia…
Concluímos nossa jornada na praça do Arariba, cuja reforma foi festejada há alguns anos no boletim da subprefeitura, que também comemorava a limpeza do local. Pois olha, está precisando urgente de nova visita dos garis, pois parece abandonada à própria sorte.
Aliás, como você pode ver na imagem acima, não vi nada na área que justificasse o nome de Vila das Belezas. Talvez alguma fina (ou nem tanto ) ironia, sei lá.
Com a dúvida, encerro a caminhada, pois amanhã tem mais. Vamo que vamo.
DIA 25 – PROJETO 460 KM POR SÃO PAULO
Clique no mapa para conhecer mais detalhes sobre o percurso do dia
QUILOMETRAGEM DO DIA: 12 km
TEMPO DO DIA: 2h46min26
QUILOMETRAGEM ACUMULADA: 310km
TEMPO ACUMULADO: 67h57min12
QUILOMETRAGEM A CUMPRIR: 150 km
DESTAQUES DO PERCURSO: piscinões do córrego Pirajussara, estrada e praça do Campo Limpo, parque Arariba, Vila das Belezas
em qualquer região de são paulo,tem
lugares feios e bonitos,lado a lado,essa
é a caracteristica de são paulo.
a vila das belezas por exemplo tem favelas,industrias,comércios,bancos,metrôe casas muito bem construidas e caras.
Olá Amigo Rodolfo! estou curtindo e muito seus relatos do dia a dia de corridas, seu Linguajá é incrível, vc consegue expressar o que somos nos seus textos, gostaria de te abraçar um dias desses, em um de seus percursos vc passou aqui pertinho de min. na VL Mariana em frente meu serviço r. Afonso Celso e não sabia, meu Abraço boa sorte no seu projeto, uma ideia maravilhosa de um cara inteligente.
ass: C a l o i, F E L I Z A N O N O V O