Festa de corredor é meter o pé no asfalto
26/12/13 14:03Depois de um diazinho de folga saudado com alegria e gratidão pelo meu joelho direito, voltei hoje ao meu percurso de 460 km por São Paulo em homenagem ao próximo aniversário da cidade.
No espírito natalino, a jornada de hoje foi de confraternização e reencontro: caminhei com um bando de amigos que comigo integram a Nossa Turma, equipe de corrida sem chefes nem lei, em que impera a amizade descompromissada, mas duradoura. Coisa de corredor…
O grupo completa dez anos de vida em 2014, meio desmelinguido e, ao mesmo tempo, cada vez mais forte. Já chegamos a ter perto de 40 pessoas em uma turma de comunicação internética; na caminhada de hoje, juntamos uns dez… Mas haja experiência: já tivemos casamentos e descasamentos no grupo, nascimentos e namoros, além de títulos em penca e participações nas corridas mais estranhas do planeta.
Um dos nossos, por exemplo, já participou até em uma maratona coberta, em ginásio. Haja paciência. Temos gente muito rápida e lerdinhos como eu, especialistas em montanha e guerreiros do asfalto. Fazia uma data que não nos encontrávamos; claro que a confraternização precisava ser em uma corrida ou, pelo menos, em um treininho coletivo.
Em consideração por meu joelho detonado, ninguém correu: caminhamos todos por percurso muito querido dos corredores paulistanos. Começamos com o céu ainda escuro, no viaduto da Oscar Freire sobre a avenida Sumaré (para ser mais preciso, acho que, naquela altura, é a avenida Paulo 6º; ih, acho que “acho” não combina com precisão, mas é o que temos).
A Oscar Freire é cantada em prosa e verso como a Quinta Avenida paulistana, cheia de lojas de marcas internacionais, com ricaços percorrendo suas calçadas. Mas isso é mais lá para baixo, em alguns quarteirões dourados; nos seus altos, perto da Heitor Penteado, a rua é tão classe média como qualquer outra da região.
O viaduto, logo de manhã cedo, fica lotado de gente que utiliza os ônibus especiais, fretados, que levam e trazem trabalhadores das cidades próximas à metrópole. Põem-se todos em fila, apertados, desconfortáveis; em dia de chuva, então, é um horror.
Aos domingos, o viaduto recebe uma feira. Tem boa variedade de frutas, mas apenas uma banca de peixes; os preços são razoáveis, considerando a região (é menos careira que a feira do Pacaembu, por exemplo, que também é mais famosa e tem o pastel da Dona Maria…).
Do viaduto da Oscar Freire, vê-se a estação Sumaré do metrô, que é uma das mais bonitas, na opinião deste que vos fala. Além da arquitetura, dos vãos e dos vazios, ela tem um enorme mural com fotografias de anônimos paulistanos. É obra do artista Alex Fleming, que é da terra, mas mora em Berlim.
Ele diz que seu trabalho reflete a Paulicéia: “As pessoas anônimas, todas as raças se misturando, como na Sumaré. As pessoas devem ser decifradas, porque todas têm poesia dentro delas. Então, vamos decifrar o outro, vamos conviver” (leia a entrevista completa AQUI).
Descemos a Sumaré em direção ao Pacaembu. O canteiro central está arrumadinho, bem mais agradável para caminhar; não que esteja bonzão, mas já foi muito pior, então, encaremos o chão com olhar positivo.
Para mim, isso não importa muito, pois gosto da Sumaré de qualquer jeito. Foi ali com aprendi a correr na rua. Lembro que, no início, mal conseguia ir de uma ponta a outra da avenida. O dia em que fiz ida e volta, há 15 anos, foi de festa para mim. E quando fiz ida e volta duas vezes, então!!!
Já levei um tombo feio, que me arregaçou joelho, cotovelo e o mingo direito. Também já furei a cabeça num galho escondido (desviei do primeiro, mais baixo, mas não percebi que havia outro na sequência). Nesse dia, bares e até um açougue me negaram guarida para lavar a testa ensanguentada; esperei sentado na guia até que Eleonora foi me resgatar. O machucado não era grande, mas a sangueira assustava…
Sem tombos nem sangue, saímos da Sumaré e fomos até o parque da Água Branca, que alguns do grupo não conheciam. É um parquinho muito legal, ainda que pequeno: a volta dá 1.600 metros se você fizer alguns contornos extras; simples, acho que não chega a 1.200 m.
Essa é a visão do corredor. As famílias se divertem levando a criançada na área de brinquedos, além de atirar nacos de pão aos peixes do lago e correr atrás das galinhas, que circulam livremente pelo asfalto, muitas delas levando a filharada a tiracolo…
Ali já foi a sede do Dieese, o Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos, grande aliado nas lutas dos trabalhadores brasileiros, notadamente nos anos 1970 e 1980.
Hoje, os prédios históricos abrigam escolas, associações e até uma espécie de clube de recreação da terceira idade, que promove animadas matinês dançantes. Aos sábados, há uma feira de produtos orgânicos e tendinhas onde é possível fazer um ótimo café da manhã.
Passeamos com satisfação pela Trilha Pau Brasil, que é curtíssima, mas muito interessante. Minifloresta, traz árvores as mais diversas, muitas delas devidamente identificadas: espatódea, quaresmeira, sibipiruna e, claro, um rol de pau Brasil. Vale a pena passar por ali.
Alguns dos jardins estão bem cuidados; várias áreas parecem ter recebido flores há pouco tempo, como essa da foto abaixo, aos fundos do laguinho de águas turvas, onde as carpas se divertem…
Deixamos os bichos conversando entre eles mesmos e subimos a Monte Alegre para tomar o rumo da volta à estação Sumaré do metrô. Essa é uma ruazinha danada, principalmente residencial, mas com um pequeno comércio pequeno comércio nos quarteirões mais próximos ao parque. E, claro, é nela que ficam os prédios mais bonitos do complexo de edifícios da PUC; o destaque vai para o Tuca, o teatro da universidade.
Além do mais, é uma ótima pedida para treinos de força. Tem uma subida brutal, depois dá um mergulho alucinante (joelho nenhum merece aquilo), terminando numa escadaria escorregadia, para então oferecer cem metros de subida que é quase uma escalada… Depois vira normal de novo. Fazendo ida e volta umas duas ou três vezes já dá uma sessão de treino de força para ninguém botar defeito.
E assim terminamos a jornada de hoje, mas não a sessão de “Túnel do Tempo”. Disse que a Nossa Turma completa dez anos em 2014. Nossa primeira corrida, a primeira vez que surgimos como grupo, foi um revezamento de 90 em São Francisco do Sul, Santa Catarina, que festejava 500 anos em 2004.
Na época, escrevi um texto contando como fora a prova e nossa participação. Ei-lo a seguir , em itálico (avise, por favor, se estiver ruim de ler).
“Encharcado dos pés ao peito, o corredor emerge da praia depois de enfrentar um trecho onde cruzara um riozinho transformado em caudaloso obstáculo. Antes dele, uma atleta mirrada chegara ao asfalto molhada até o pescoço, nervosa, reclamando que a água supostamente “pela canela” quase a tinha encoberto. Até dera braçadas para salvar da correnteza a pulseira que indicava ser ela a corredora da vez.
Foram momentos do Revezamento dos 500 Anos – Volta de São Francisco do Sul, prova de 90 quilômetros realizada em 17 de setembro passado como parte das comemorações do pentacentenário da bela cidade do litoral norte de Santa Catarina.
Beleza, por sinal, talvez tenha sido o principal chamariz a atrair as equipes que participaram do evento. Dividido em 15 etapas, o percurso da prova acompanhou todo o perímetro da ex-ilha (no início do século passado, um aterro a ligou ao continente), passando por estradas de terra, condomínios litorâneos e praias atraentes _várias delas, porém, com areia fofa, tornando mais pesado o desafio da corrida.
Para tornar as coisas ainda melhores, o dia, que prometia ser quente, amanheceu nublado e assim permaneceu pela maior parte do tempo, facilitando o trabalho das 16 equipes que participaram do evento, organizadas em grupos de três e seis atletas.
Uma turma pequena, que tomou de assalto o estacionamento do mercado público, no centro histórico de São Francisco _a ilha foi descoberta em 1504 pelo comandante francês Binot Paulmier de Goneville. Um século e meio mais tarde, foi povoada pelos portugueses, que deixaram a herança arquitetônica que emoldurava a área da largada da corrida.
O primeiro corredor de cada equipe cruzou por essa área multicentenária, pisou em paralelepípedos e rapidamente saiu da vila, tomando uma estrada de terra quase vazia, ladeada de verde e calmaria.
Por esse terreno a prova seguiu também na segunda etapa, que terminou na beira do asfalto, sinal de que estávamos, sim, na era do motor, e não das caravelas. Ali, todas as equipes fizeram uma pausa, aguardando a chegada da última: era preciso cruzar a autoestrada, que não podia ficar interrompida à espera da passagem de cada uma.
Quando todos estávamos no local, a Polícia Rodoviária armou a proteção, e corredores e carros de apoio atravessaram o asfalto. Do outro lado, foi dada nova largada. Iniciava-se o terceiro dos 15 trechos, e agora era cada um por si.
Só na quinta etapa chegamos à praia, depois de passar pelos intestinos da ilha, em estradas tranquilas. Sempre que uma bifurcação ou cruzamento pudesse levar dúvida ao atleta, havia pessoal da organização para informar o caminho certo.
Da quinta perna em diante, sucederam-se as praias. Aqui, areia fofa. Mais à frente, terra firme. Aqui, distância solitária. Mais à frente, surfistas em penca. Mas, em geral, os corredores éramos os donos do terreiro.
Para o bem e para o mal, enfrentando sozinhos perigos não prometidos, como relata o atleta Marcos Sanches, o mais rápido da equipe Nossa Turma (da qual tive a honra e o prazer de participar):
“Eu estava apreensivo, pois a galera tinha comentando que no meio do caminho havia um rio, havia um rio no meio do caminho…
“Comecei o meu trecho e tão logo estava na beira da água do mar corri forte. A sensação de correr ali foi a mais gostosa de toda a corrida: a areia era tão dura que parecia uma pista de borracha, era fácil correr em um ritmo muito forte, eu nem sentia o cansaço enorme herdado do primeiro trecho.
“E assim acompanhei a praia, correndo na divisa entre o mar e a areia, as vezes tendo que tomar cuidado para não molhar os pés. Quando cheguei ao rio, na minha frente era só água. Eu só não queria perder tempo, aquele rio era um obstáculo muito indesejável, ele roubava de mim o ritmo forte que eu estava segurando de forma tão agradável.
“Segui pela margem do rio até que não deu mais, tirei o tênis o mais rápido possível e logo estava dentro da água até a cintura, precisava passar e fui em frente. A água chegou ao peito, e a correnteza tentava me levar para o mar. Quanto mais eu afundava maior era a força relativa da água porque eu perdia meu peso, minha resistência. Eu não podia nadar, porque a água me levaria. Por um momento, fiquei com medo.
“Mas eu já estava saindo do outro lado, e o rio foi ficando mais raso. A areia no fundo era muito mole, os meus pés afundavam até o joelho na areia. Se estivesse de tênis, seria desesperador porque ele encheria de areia. Saí logo do outro lado e comecei a correr, tentando voltar ao ritmo antigo, mas as pernas parece que endureceram na água fria e por uns 200m eu corri lentamente, com o tênis na mão.
“Logo o ritmo voltou ao normal e senti o pé arder. Era uma bolha, O final do trecho não chegava, eu precisava colocar o tênis, que havia molhado, pois não aguentava a dor. Calçado, voltei ao meu ritmo forte e ainda tive um longo trecho para me deliciar com o prazer de correr naquela areia.”
Cerca de sete quilômetros depois, outro rio estava no caminho dos corredores. Dessa vez, porém, não havia ilusão: todos sabiam que teriam de dar pelo menos algumas braçadas. A travessia foi acompanhada por pessoal dos bombeiros, e havia até uma corda jogada na água para eventual apoio aos atletas.
O sol já mordia, quando conseguia passar entre as nuvens. Mas, mesmo com o céu nublado, o mormaço fazia aumentar o cansaço das equipes, que agora só queriam completar a prova o mais rápido possível.
Faltavam apenas quatro trechos e as posições de todas as equipes estavam razoavelmente consolidadas nas respectivas categorias. Mas ninguém queria afinar, e cada corredor dava o máximo para o grupo.
No caso dos primeiros, porém, a situação era diferente, pois a disputa seguia firme. A Petrobras Paraná, de seis atletas, enfrentava o assédio do trio By Digo Maxímus, que brigou palmo a palmo no percurso. Acabou firmando pequena vantagem e terminou os 90 quilômetros em 5h30, menos de quatro minutos à frente do trio.
Vencedores e vencidos foram festejados no jantar de confraternização em que foram distribuídos os prêmios. Na verdade, saíram todos vitoriosos, satisfeitos depois de uma prova que, apesar das evidentes dificuldades de logística, apresentou boa organização e respeito aos atletas.
Quanto à Nossa Turma, terminamos com muita festa, de peito estufado pelas várias corridas que enfrentamos e vencemos.
A primeira foi simplesmente chegar a Santa Catarina como grupo: a equipe foi montada via internet, com atletas que não se conheciam entre si e moram em locais tão diferentes como Porto Alegre, Concórdia (SC), São Paulo e São José dos Campos. Mas cada um queria fazer o grupo funcionar, correr o que desse e o que não desse: acabamos fazendo um tempo oito minutos melhor que o estimado e ainda trouxemos um belo troféu para casa, o de segundo lugar na categoria aberta mista.”
Com o que encerro mais esta etapa. Amanhã tem mais. Vamo que vamo!
DIA 24 – PROJETO 460 KM POR SÃO PAULO
Clique no mapa para conhecer mais detalhes sobre o percurso do dia
QUILOMETRAGEM DO DIA: 9 km
TEMPO DO DIA: 1h59min43
QUILOMETRAGEM ACUMULADA: 298 km
TEMPO ACUMULADO: 65h10min46
QUILOMETRAGEM A CUMPRIR: 162 km
DESTAQUES DO PERCURSO: avenida Sumaré, parque Água Branca, Tuca