Esgrimista faz da São Silvestre coisa de cinema
24/12/13 14:34
Ela era um colosso. Enorme, erguia-se pelos menos 20 centímetros acima da adversária. Morena, de cabelos longos, tinha olhos também negros, profundos, que pareciam engolir a rival, torná-la ainda menor, mais mirrada e oprimida. Além do mais, era ar-rreen-ti-na, que se pronuncia assim, arreganhando os dentes cheios de erres. E vinha para a luta embalada com a glória de uma medalha conquistada meses antes, nos Jogos Pan-Americanos de Winnipeg.
“Eu acertei o primeiro golpe! Aquilo era uma afronta, uma coisa inimaginável. Como é que um serzinho medíocre, uma formiga como eu, podia pensar em enfrentá-la de igual para igual? Berrei, gritei e voltei para a luta”, conta a cineasta paulistana Lina Chamie, imitando seus gestos de comemoração enquanto relembra os tempos de esgrimista competitiva.
A luta daria direito a chegar às quartas-de-final no Sul-americano de 1999. Já veterana, a brasileira de 38 anos passara a etapa classificatória em último lugar e, nos mata-matas, vinha se equilibrando no fio da navalha –ou melhor, no fio da espada, a arma branca que manejava no tablado. Vencera duas eliminatórias por 15 pontos a 14, mas agora com certeza não ia dar.
Treinador e companheiros de equipe lhe cumprimentavam pela inesperada trajetória, dizendo que já tinha cumprido seu dever, como se considerassem a derrota inevitável. Qualquer análise fria da retrospectiva das oponentes confirmaria a expectativa, mas o fato é que, chegando ao terceiro e definitivo round , a minúscula brasileira perdia por apenas um ponto do portento argentino: 13 a 12 para a rival é o que dizia o placar.
Pois não é que Chamie empatou? E, num golpe certeiro, passou à frente? “No me vas a ganar!!”, gritou Lina para a própria máscara, que atirou no chão enquanto comemorava o ponto conquistado, imitando gesto de célebre esgrimista. A luta se reiniciou, a argentina atacou, a brasileira respondeu e também a beliscou: ponto para as duas, vitória para Lina, os mesmos 15 a 14 dos combates anteriores.
“Foi a glória”, lembra ela enquanto passeamos pela zona oeste de São Paulo em mais uma caminhada de meu percurso de 460 km em homenagem ao próximo aniversário da cidade. Mesmo perdendo a etapa seguinte, a esgrimista terminava então seu melhor ano da carreira. Como cineasta, também concluía um 1999 denso: meses antes, acabara de filmar seu primeiro longa-metragem, “Tônica Dominante” (veja um TRAILER AQUI).
Não por acaso, o filme tinha a música como fio condutor. De certa forma, invertia a trajetória da diretora. “Descobri a música no cinema”, me conta ela. Aos 11 anos, assistiu com a mãe, a artista gráfica Emilie Chamie (1927-2000), ao filme “2001”, de Stanley Kubrick. “A música de Strauss foi uma descoberta”, diz, citando ainda o encontro com as composições de Mahler no filme “Morte em Veneza”, de Visconti.
Por essas e outras, foi estudar música e filosofia em Nova York. Para completar o sustento, trabalhou em ofícios diversos. “Fui lanterninha do Woody Allen”, diz, revelando a admiração pelo cineasta norte-americano a quem teve a subida honra de levar até a poltrona em uma sala de espetáculo às escuras.
Formou-se, fez mestrado e carreira como musicista, tocava clarinete em orquestra e banda. Mas continuava ligada no Brasil, onde jogava seu amado Santos. “Fui a todas as finais”, afirma. Menos a de 1984, contra o Corinthians, pois estava nos Estados Unidos. Mas ficou grudada ao telefone, ouvindo o pai, o poeta Mario Chamie (1933-2011) contando os detalhes do jogo: “Foi um a zero para nós, gol do Serginho Chulapa”.
A volta ao Brasil marcou sua transformação: o cinema, que a levara à música, chamou-a de volta. Primeiro fez curtas-metragens; quando filmava seu primeiro longa, o artista principal sofreu um acidente, quebrou a cabeça. Ficou hospitalizado e passou por longo processo de recuperação, tempo em que a diretora se afastou do cinema, chegou até a ficar ruim.
Lembrou-se da esgrima, que praticara em seus anos nova-iorquinos, e voltou à luta. Os treinos fortes incluíam voltas e mais voltas em torno do bloco onde está instalado o ginásio do Ibirapuera. “Quarterón!”, comandava o técnico cubano Guillermo Bettancourt, e lá se ia ela rodar os 2.200 m, que uma vez completou em 10mi17.
“Cheguei a fazer 10 km em 58 minutos”, diz ela, lembrando que, não poucas vezes, corria com caneleiras e carregando pesos nas mãos. Outro temido ingrediente da preparação para as lutas de espada eram os saltos nas escadarias do ginásio Mauro Pinheiro, que faz parte do complexo esportivo do Ibirapuera.
Na sua jornada, Chamie olhava a cidade, que integrou como personagem em seu filme de maior destaque, “A Via Láctea”, que abriu a semana da crítica no Festival de Cannes de 2007 (veja o TRAILER AQUI). Assim, não é inesperado que a São Paulo esteja presente em seu trabalho primeiro documentário, “São Silvestre”, que estreia nesta sexta-feira, dia 27, em cinemas de São Paulo, Rio e Curitiba.
No longa, a mais importante e tradicional corrida de rua do Brasil é mostrada como uma imitação da vida, a jornada de luta, dor e superação que todos nós enfrentamos. A inspiração para o filme veio da própria corrida. Há alguns anos, quando morava em um prédio na Paulista em frente ao ponto de chegada da prova, Lina desceu ao asfalto, viu as expressões dos chegantes e disse a si mesmo: “Isso tem de virar filme” (confira AQUI VÍDEO em que ela me conta essa história em mais detalhes).
Demorou, mas virou. É documentário, mas tem ator. O corredor principal é interpretado (ou seria vivido?) por Fernando Alves Pinto, o mesmo que sofreu concussão cerebral quando participava do primeiro longa de ficção de Chamie. Talvez agora tenha sofrido mais…
“Lina, não vai dar… Lina, desculpe, não vai dar”, arfava ele pelo sistema de radiocomunicação, falando com a diretora enquanto corria sob a chuva subindo a Brigadeiro na edição de 2011 da São Silvestre. Estava chegando ao ponto final de suas forças, já correra mais de uma hora carregando cerca de cinco quilos em equipamento (foto Divulgação).
Sem falar do peso do próprio corpo. Fernando nem de longe é gordo, mas também não era um atleta; treinou um pouco, mas na corrida que é a preparação para filmagem. Imaginou que dava, imaginaram todos, porém o asfalto lhe foi comendo as forças com mais rapidez e intensidade que esperava.
Sobrou-lhe a vontade, como acontece com muitos de nós nos quilômetros finais de uma maratona ou nos derradeiros metros de um cinco quilômetros de estreia. Com câmera, fios e metais amarrados ao corpo, reuniu forças para não levar um tombo na descida da Brigadeiro –a filmagem foi na edição de 2011, quando a prova terminou no Ibirapuera— e pode festejar a chegada.
Lina, por seu lado, festeja seu trabalho: “Não há nada que eu não goste no filme. Ele é o filme que eu queria fazer, esta lá sem concessões e é isso”.
A produção envolveu um pequeno exército de câmeras e corredores. Além de Fernando e sua grua particular, outros corredores carregaram máquinas na testa, no peito, na nuca, na canela; houve também câmeras montadas em uma bicicletas e uma máquina de andar.
No total, 14 olhos de lentes de máquinas esportivas e ainda três câmeras cinematográficas captaram a corrida; sem diálogos, as cenas são marcadas por música, pela respiração dos atletas e por alguma interjeição do ator. “É um filme sem palavras que procura reproduzir de maneira sensorial a viagem do corredor”, diz Lina (esse VÍDEO AQUI mostra bastidores da filmagem).
E por que mostrar isso em cinema?, pergunto a ela, já no final de nossa caminhada, em frente ao local de chegada da prova, na avenida Paulista. “A São Silvestre é um marco da nossa cidade e existe no imaginário coletivo de todo brasileiro. É uma corrida democrática pelas ruas de São Paulo reocupando a cidade de maneira única. É uma corrida emocional e muito peculiar pois representa a passagem do ano e todas as esperanças de um futuro melhor.”
Belas palavras, que poderiam bem servir para terminar este texto. Bastaria colocar meu “vamo que vamo” depois do “um futuro melhor” e a conclusão estaria totalmente dentro dos conformes.
Quase. Faltou dizer que Lina ainda esgrima de quando em vez, que treinou em Cuba, na mesma Havana de onde voltou há poucos dias depois de participar de um festival em que mostrou “São Silvestre”.
E que a ar-rren-ti-na por ela derrotada nos idos de 1999 continuou espadachim; apesar de altos e baixos, há dois anos, voltou a medalhar em um Pan-americano. Fora dos ringues (será que se diz ringue na esgrima?), Elida Aguera também é artista: cantora, a morena de negros e profundos olhos já tem dois discos no mercado (saiba mais AQUI).
Agora, sim, sem cantar, filmar nem brandir florete, espada ou sabre, eu me despeço. Vamo que vamo!
DIA 23 – PROJETO 460 KM POR SÃO PAULO
Clique no mapa para conhecer mais detalhes sobre o percurso do dia
QUILOMETRAGEM DO DIA: 10 km
TEMPO DO DIA: 2h17min13
QUILOMETRAGEM ACUMULADA: 289 km
TEMPO ACUMULADO: 63h11min03
QUILOMETRAGEM A CUMPRIR: 171 km
DESTAQUES DO PERCURSO: ginásio do Ibirapuera, avenida Paulista