Corredor vai às alturas do Jova Rural, entre Mamonas e Adoniran
21/12/13 19:06A palavra museu, com o ar solene e o tom empoeirado que carrega, talvez seja pomposa demais para descrever o centro cultural que visitei hoje. Por trás de uma paredinha simples, pintada de azul, há duas casas também simples, cada uma com um grande cômodo ocupando quase toda sua área, e as paredes cobertas por recortes, quadros, fotografias: é o Museu Memória do Jaçanã.
Pouco depois de minha saída, seria servido bolo e suco a alguns poucos convivas: o museu festejava hoje 30 anos de existência. Trinta anos de luta, no dizer de seu idealizador, Silvio Bittencourt, que dedicou grande parte de seus 82 anos a proteger e reconstruir a memória do bairro.
Apesar de pequeno e sem grandes atrativos para turistas, o Jaçanã é um dos mais conhecidos bairros da cidade, pelo menos de nome, pois foi imortalizado na música “Trem das Onze”, do grande sambista paulista Adoniran Barbosa (ih, não vai me dizer que não conhece! Conhecendo ou não, aproveite uma palhinha clicando AQUI).
Cheguei ao museu e a uma boa prosa com o veterano jaçanense depois de mais de uma hora de caminhada. Vinha do alto de um morro que tudo observa: vê o centro da cidade, vê Guarulhos, vê a baixada do Jaçanã, vê os morros que levam ao Pico do Jaraguá. Estou falando de uma comunidade chamada Jova Rural.
Talvez tenha problemas de identidade: nos painéis dos ônibus, o bairro é assim identificado, mas, para os Correios, é Jardim Felicidade. Moradores mais antigos preferem chamá-lo de Jardim Portal II, por causa do nome da rua que, há tempos, era a principal porta de entrada na comunidade.
Minha cicerone de hoje foi a jornalista Aline Kátia Ferreira de Melo, 30, que milita em uma rede de jornalistas da periferia e colabora com o blog Mural, vizinho nosso, pois é hospedado também aqui na Folha (clique AQUI).
Ela mora na comunidade há 15 anos, bem pertinho da padaria Esperança, e lembra dos tempo em que por ali era só barro, lamaçal, e para qualquer necessidade era preciso descer até o comércio do Jaçanã. E olha que não é pequena a diferença: pelo meu GPS, chegamos hoje a 875 m acima do nível do mar –o centrinho do Jaçanã está 125 m mais baixo.
No alto do morro fica a entrada da comunidade, que hoje tem quase todas as ruas asfaltadas, ainda que as casas estejam em situação irregular. Como outras regiões da periferia, o Jova Rural vive esquecido, a não ser por breves momentos de atenção –no cemitério da região está enterrada a menina Isabella Nardoni, vítima de um crime que chocou a cidade (o pai e a madrasta foram condenados pelo assassinato da garota, que tinha então cinco anos).
Basta girar um pouco o corpo e, dali mesmo, avista-se a serra da Cantareira. “Foi por ali que caiu o avião dos Mamonas”, diz Aline, referindo-se ao acidente em que morreram todos os integrantes do conjunto Mamonas Assassinas (ouça AQUI uma das música mais famosas do grupo).
Mas não se veem no bairro referências aos artistas. Pelas ruas, parece ser tranquilo, satisfeito consigo mesmo. Eventuais reivindicações são levadas à frente pela Associação de Mulheres Amigas de Jova Rural. Ou, quando a dor é maior, a comunidade se mobiliza e resolve os problemas por si mesma.
Depois de um acidente que provocou a morte de uma criança, em uma rua sem sinalização, os moradores se reuniram e construíram lombadas no asfalto para tentar reduzir a velocidade dos veículos.
Outros descuidos, porém, passam ao largo. Algumas ruas, por exemplo, não têm placas de identificação; em outras, as placas são improvisadas –Aline (foto) está colecionando casos para um texto que deverá publicar no blog ou na página que criou para falar sobre a história e os problemas do Jova Rural.
Problemas que vamos deixando para trás à medida que descemos o morro e entramos no Jaçanã. Ali, estranho apenas a falta de referências a Adoniran Barbosa.
Imaginava que encontraria faixas e cartazes por todo o lado, mas, nos primeiros quilômetros do passeio, encontro apenas uma pichação em terreno onde não mora ninguém, no prolongamento de uma avenida do bairro.
Mais além, um barzinho se intitula Trem das 11, e é só. Talvez por isso seja tão melancólica a canção que o senhor Bittencourt criou, falando do bairro –neste CLIPE AQUI, gravado hoje, ele interpreta a canção com absoluta exclusividade para você (e todos os demais leitores deste Mais Corrida).
Foi nesse tom, assim, que ia encerrando a jornada de hoje, em que fui de Mamonas a Adoniran, passando por um morro alto e poderoso, cheio de vistas fabulosas e também crivado de problemas. Percebi, porém, que o caminho tinha sido relativamente curto; assim, depois de agradecer a acolhida e me despedir de minha anfitriã-convidada, parti para outro percurso na zona norte.
Desci ainda mais, rumo à Marginal Tietê, e fui abraçar o terreno em que um dia ficou a penitenciária mais temida de São Paulo (talvez do Brasil): o Cadeião, o Carandiru.
Série de prédios onde a vida nada valia, como nos conta Dráuzio Varella no livro em que relata suas experiências como médico naquela penitenciária, o Carandiru foi palco de terrível massacre. Em 1992, a Polícia Militar invadiu suas galerias para acabar com uma rebelião e deixou 111 presos assassinados.
Dez anos depois, o Cadeião foi desativado e a maior parte do conjunto destruída –a Penitenciária Feminina da Capital ainda está de pé e operante. No local, foi construído o Parque da Juventude, onde já tive oportunidade de assistir a shows de Gal Costa e Maria Rita (a filha de Elis Regina).
Com bastante área verde, o parque tem também uma biblioteca e quadras esportivas –futebol de salão, tênis e basquete–, além de um território especialmente construído para skatistas. Não esqueceu de onde veio: partes das muralhas do Carandiru foram preservadas, assim como restos de galerias, que podem dar ao visitante uma ideia de como eram os cubículos onde viviam os presos.
Já tinha corrido por lá antes; hoje, encontrei vários corredores. Mas me parece mais uma área para passeio e lazer em grupo, aproveitando os equipamentos oferecidos, do que área boa para corrida. Para meter o pé no asfalto, prefiro o entorno, as calçadas e avenidas largas nos arredores do antigo Cadeião.
Assim concluí a jornada dupla do dia. Amanhã tem mais. Vamo que vamo!
DIA 20 – PROJETO 460 KM POR SÃO PAULO
Clique nos mapas para conhecer mais detalhes sobre os percursos do dia; a numerália traz os dados do acumulado nos dois trajetos
QUILOMETRAGEM DO DIA: 12 km
TEMPO DO DIA: 2h49in03
QUILOMETRAGEM ACUMULADA: 257 km
TEMPO ACUMULADO: 55h42min01
QUILOMETRAGEM A CUMPRIR: 203 km
DESTAQUES DO PERCURSO: Jova Rural e Jacaçã, Carandiru e Parque da Juventude, Museu da Memória do Jaçanã
muito boa a matéria. parabéns ao reporte Rodolfo Lucena pela matéria gostei muito de vários pontos sitados pelo mesmo..e parabéns a reporte Aline Katia por relatar um polco de tudo que a comunidade que dizer mais não tem voz …estarei aguardando as próximas matérias…