No caminho dos poetas, médico dá dicas para tentar evitar lesões
19/12/13 15:33“Por favor, ajude ele urgente. Proteja meu filho (…) o resgate desta situação”. Grafada em letra redonda de mãe ou professora, a cartinha escrita em uma folha pautada de caderno escolar é a imagem do desespero. Estava jogada, entre grãos de cereais, bagos de uvas vermelhas e outras frutas diversas ao pé de uma árvore na praça Poeta Carlos Drummond de Andrade. Era um “despacho”, uma oferenda a santos que, segundo a crença de alguns, podem resolver problemas de nós outros.
“Nunca tinha visto isso aqui no Morumbi”, espanta-se meu convidado/anfitrião da caminhada de hoje no meu percurso de 460 km por São Paulo em homenagem ao próximo aniversário. Morador do território na região sul da cidade em geral caracterizado como “bairro de classe alta”, o ortopedista Henrique Cabrita, 44, também é corredor dedicado e treina regularmente pelas terríveis subidas e não menos desagradáveis descidas morumbísticas.
Talvez não tenha percebido porque, como muitos corredores rápidos, roda concentrado, preocupado com o desempenho no treino e não com a paisagem que rola ao redor. Hoje, porém, caminhamos –meu joelho fraturado não vai permitir que eu volte a correr por algum tempo— e vimos de um tudo pelo bairro repleto de prédios luxuosos e mansões (além de 18 favelas, segundo me conta ele).
Havia três “trabalhos” só na pequena praça dedicada ao poeta mineiro, pertinho do local onde começamos nossa jornada. O início, mesmo, foi em outra praça, esta dedicada a um rico fazendeiro do tempo do império que, por seus bons serviços a dom Pedro 2º, ganhou título nobiliárquico, virando visconde de Cunha Bueno. Aliás, para ficar tudo em salões reais, a rua de fronte à praça homenageia outro visconde, o de Nacar, este um comerciante do Paraná. Não por acaso, fica tudo na porção do Morumbi chamada Real Parque.
Voltemos, porém, à praça Drummond, que está precisando de mais cuidados. É pequena, simples e cheia de árvores frondosas; num marco pétreo está registrado um trecho de uma das poesias do homenageado: “Quando nasci, um anjo torto, desses que vivem na sombra, disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida” (leia mais AQUI).
Caminhando, seguimos o conselho. Como meu convidado/anfitrião é médico, puxei assunto sobre o recente anúncio de uma multinacional farmacêutico afirmando que iria deixar de pagar médicos para que receitassem seus produtos. Cabrita me conta que há sucedâneos desse tipo de prática, mesmo entre cirurgiões –alguns recebem para empregar determinados modelos de prótese. “É público e notório que tem médicos que fazem isso”, diz ele, defendendo maior fiscalização do exercício profissional.
Assunto muito sério, que a gente vai pontuando com conversas mais leves. Traquejado por quatro anos de residência, vários em pronto-socorro, e mais de 5.000 cirurgias realizadas –cerca de 3.000 delas de quadril–, o médico diz que o seriado televisivo “ER” (de emergency room, sala de emergência) era muito fiel à vida real no cenário americano. Até na apresentação das relações humanas, os imbróglios entre médicos, enfermeiras e pacientes, o programa teria base concreta.
Sem falar nas piadas e gozações das diversas especialidades médicas, entre si e contra os outros. “Qual a diferença entre um ortopedista e um obstetra?”, pergunta Cabrita. “O ortopedista tem de ser forte e burro; o obstetra não precisa ser forte…” E outra: “Como esconder uma nota de US$ 100 de um anestesista?”. A resposta demole: “Basta guardá-la em algum livro de estudos…”
Tudo isso é intriga, afirma ele. É fato que, não poucas vezes, o trabalho do ortopedista é brutal, especialmente para fazer as tais “reduções”, que são o processo de forçar a volta do osso ao seu devido lugar, depois de uma luxação. Mas, modernamente, várias especialidades da área, como a cirurgia de mão, exigem ação superprecisa e minuciosa.
Conversa vai, conversa vem, circulamos por um quarteirão plano no Morumbi, coisa rara no bairro, e aproveitamos para testar meu joelho com uma corridinha. Aguento um quilômetro, mas o trote deixa suas marcas de dor. É melhor seguir a passo, pois está confirmada a fratura por estresse, e um dos caminhos para a cura é tirar a carga extra e deixar que o corpo vá se refazendo (isso demora, meu!).
Assim, Cabrita vai me mostrando o caminho de suas corridas. O percurso passa pela beira de um córrego, que tem uma surpreendente rua lateral de chão batido. “Quando chove forte, a água vem até o topo”, afirma Cabrita,dizendo que, nas inundações, o riachinho vira rio caudaloso e chega mesmo a invadir o estádio Morumbi, do São Paulo.
É o time de seu coração, por orientação paterna. Nascido em Porto Alegre, Cabrita é filho de português torcedor do Benfica. A família morou na terrinha por um tempo e, quando voltou ao Brasil, o pai orientou para que apoiassem sempre times de vermelho. Assim, quando morou em Brasília, torcia pelo Flamengo; no seu Rio Grande de nascença, é colorado, e por aqui defende o tricolor paulista.
Seu esporte predileto na juventude, porém, não foi o futebol, e sim o rúgbi, que praticou durante os dez anos de sua formação médica (seis de curso universitário, quatro de residência). Chegou foi da seleção brasileira como juvenil e adulto; nos campos de batalha, consertando ombros de amigos e rivais, é que decidiu se especializar em ortopedia.
Aquela modalidade esportiva, porém, com seus choques, encontrões, quedas e puxões, é incompatível com o trabalho na sala de cirurgia. “Quebrei por três vezes o quinto dedo (mindinho) direito durante os jogos, e não dá para arriscar não poder operar sendo ortopedista”, diz Cabrita, que hoje se dedica às maratonas. Já fez meia dúzia (o relato de algumas delas você encontra neste blog, basta colocar a palavra Cabrita na caixa de diálogo de pesquisa).
No passeio pelo bairro, vai lembrando momentos dos treinos e da vida de médico: “Vi quando estavam construindo essa casa”, diz; aponta para um edifício belíssimo, todo coberto por vegetação: “Ali mora uma paciente minha, foi assaltada depois de levar os filhos para a escola, teve arrastão no prédio todo…”. Nota ainda que várias casas de luxo vão se deteriorando, abandonadas (aliás, carros também são largados nas ruas do bairro de classe alta).
Conversa vai, conversa vem, chegamos ao km 7 de nossa caminhada, com o qual completo 230 quilômetros percorridos em 18 dias de jornada (hoje é 19 de janeiro, tirei um diazinho de folga há uma semana).
“Agora é só morro abaixo”, penso eu enquanto poso para uma foto em frente ao estádio Cícero Pompeu de Toledo, o nome oficial do Morumbi.
Como um dos consultórios em que Cabrita atua é ali mesmo no estádio, temos livre acesso. Pela primeira vez, adentro o campo são-paulino e ainda tenho a oportunidade de correr na pista de atletismo que circunda o gramado –o joelho direito chia um pouquinho, mas eu não iria perder essa oportunidade, ainda que sob o olhar de um médico.
O estádio do São Paulo de fato é um portento, exemplo de construção dos anos 1970, longe do conceito de “arena”, hoje tão difundido. Além do mais, tem lugar garantido na história do futebol, pois foi palco da primeira conquista de um título do Brasileiro pelo Grêmio. Eu acompanhei a partida decisiva da casa de minha avó, em Porto Alegre, de ouvido colado no rádio, sentado na cadeira de balanço que meu avô costumava ocupar. Ele não viveu para ver o gol de Baltazar, que se redimiu em São Paulo no pênalti perdido no jogo de ida, na capital gaúcha. Se você também não conhece a história, clique AQUI para saber mais (mesmo se conhece, é bom reviver aqueles momentos).
Já satisfeitos com a caminhada, partimos para o caminho final. Tínhamos iniciado perto da praça Poeta Carlos Drummond de Andrade, nada melhor do que completar o circuito em território de outro, o grande Vinicius de Moraes. Fronteira ao palácio dos bandeirantes, sede do governo de São Paulo, e vizinha do hospital Albert Einstein, um dos mais incensados da cidade, a praça é, como o bairro, cheia de altos e baixos. Sobe-se e se desce, há raros momentos de paz para o corredor (ou caminhante). Está muito limpa e bem cuidada, pelo que pudemos ver. E, tal como o território de Drummond, também recebe “despachos” de quem busca ajuda etérea.
Com o que chegou a hora de o médico partir para sua lide diária. De carro, o levamos de volta ao ponto de início da caminhada. Lá, aproveitei para inteirar 12 km e fechar quilometragem redonda.
Também aproveitei para pedir ao ortopedista maratonista algumas dicas para que a gente consiga ficar mais tempo sem se machucar. Eis a lista que ele propõe:
1) correr de acordo com o que o seu corpo falar, não exagerar na dose;
2) progredir de acordo como seu próprio ritmo;
3) descansar pelo menos uma vez por semana;
4) fazer trabalho de musculação ou exercícios funcionais como base para a prática de corrida;
5) correr em terrenos adequados e com tênis próprios para o seu tipo de pé e pisada;
6) tomar cuiddado com novidades, tanto na parte nutricional quanto de equipamentos e de técnicas de corrida ou planilhas;
7) sempre que tiver dúvidas, recorrer a profissionais da área, como treinadores, técnicos, médicos ligados a área esportiva ou fisioterapeutas;
8) não deixar lesões ficarem crônicas, ou seja durarem mais do que duas semanas; doeu um pouco: corra um pouco; doeu muito: pare de correr e procure ajuda médica;
9) procurar ter uma rotina semanal e mantê-la, apesar de trabalho ou férias;
10) manter sempre o bom humor, corrida é para promover saúde.
São mandamentos simples, diz ele, de acordo com o bom senso. Mas todos nós sabemos que o tal bom senso nem sempre é a característica mais marcante dos corredores, maratonistas e ultras.
Vamo que vamo!
DIA 18 – PROJETO 460 KM POR SÃO PAULO
Clique no mapa para conhecer mais detalhes sobre o percurso do dia
QUILOMETRAGEM DO DIA: 12 km
TEMPO DO DIA: 2h10min04
QUILOMETRAGEM ACUMULADA: 235 km
TEMPO ACUMULADO: 50h16min50
QUILOMETRAGEM A CUMPRIR: 225 km
DESTAQUES DO PERCURSO: bairro Morumbi, estádio do São Paulo, praças Poeta Carlos Drummond de Andrade e Vinícius de Moraes
corro todos os dias 12km xingando de filha da puta todos os motoristas para que eles morram, de tanta raiva que passo.