Em Guarapiranga, corredor medita sobre joelho detonado
18/12/13 13:21Prestes a cruzar a metade de meu percurso de 460 km por São Paulo em homenagem ao próximo aniversário da cidade, percebo que é chegada a hora de lhe dizer, em confidência, ao pé do ouvido, segredando: agora tenho a certeza de que não sei se vou conseguir completar esse desafio.
A dúvida, então disfarçada de medo, se instalou na minha mente e tomou conta de meu corpo há 15 dias, quando eu mal começava a execução deste plano. No terceiro dia de corrida, percorri 20 km pela avenida Sapopemba, a mais longa de São Paulo, cheia de sobe-e-desce, com calçadas irregulares e repletas de obstáculos.
Na tarde daquele dia, terça-feira, 3 de dezembro, o joelho direito chiou. Gritou. Havia uma dor agora logo abaixo da patela, mais para o lado de dentro. Comecei imediatamente a fazer fisioterapia, passando por diversos tipos de tratamento para reduzir inchaço, minorar a dor e, a médio prazo, acreditava eu, acabar com o problema.
A dor seguiu por mais dois dias, mais três, mais quatro, o médico que me atende, ele também corredor, pediu exame de ressonância magnética. Ele tinha lá sua hipótese de diagnóstico, mas o joelho não estava se comportando como esperado, era melhor colocar ossos e ligamentos sob exame da máquina.
Do ponto de vista clínico, o corpo estava respondendo. Continuava mancando, mas, na corrida, estava um pouco mais equilibrado. Não chegava a ter mais aquela dor agudo dos primeiros dias, ainda que bambeasse a perna de vez em quando.
Tirei um dia de descanso, mas segui correndo. Por recomendação do médico e dos fisioterapeutas –além de orientado por meu próprio corpo–, mais andei que corri. De qualquer forma, não saí do asfalto, das trilhas, das vielas e bibocas de São Paulo.
Hoje, por exemplo, comecei minha jornada no que já considerei confins da zona sul, mas que agora sei que não passa da metade do caminho. O carro me deixou depois bem depois do número 5.000 da avenida Atlântica, que já foi Robert Kennedy (a mudança ocorreu em 2010, leia AQUI, mas até agora o Google não a aceitou, a julgar pelo mapa da corrida de hoje…).
Por ali fica o início (ou fim, sei lá), de um trecho da ciclovia que acompanha parte da represa Guarapiranga. Atrás de mim, um condomínio de classe média alta; ao meu lado, um parque que apenas adivinhava, não lhe via a entrada –trata-se do parque Linear Castelo, que não cheguei a visitar, mas vi seus limites com a Atlântica.
Seguindo por ali, fui captando aos poucos o espírito da avenida. De um lado, alguns quarteirões reúnem um bom n úmero de motéis; do outro lado, o da represa, há de vez em quando casas de show, bares e restaurantes. Aqui e acolá, um parque ou área destina ao público.
Passei, por exemplo, pelo parque Praia do Sol, cujo nome me pareceu um pouco retumbante para as dimensões da faixa de areia. Mas, garante uma placa por ali, o local é perigoso.
Vindo em direção ao centro, sempre costeando a represa, às vezes perco a tal ciclovia –há áreas em que o próprio calçamento está em construção. Já se fica longe da avenidona; passo por vielas e ruas mais simples, onde há casas boas e outras não tão bem arrumadas. Algumas são claramente cortiços; outras, acesso para pequenas favelas surgidas em fundo de quintal ou ao lado de campos. É como se tivéssemos, em algumas centenas de metros, um modelo da balbúrdia, confusão e disparidade que caracteriza a (des)organização urbana da Pauliceia.
Enfim volto à pista de caminhada. Passo pelo campo do clube de rúgbi Spac, fundado em 1888 (saiba mais AQUI) e chego ao meu objetivo: o parque municipal Barragem de Guarapiranga. É a primeira vez na vida que fico assim pertinho das águas dessa represa e olha que já estou em São Paulo há 32 anos.
O parque é pequeno, mas muito agradável e bonitinho. Na entrada, o monumento “Heróis da Travessia do Atlântico” homenageei três italianos que voaram de seu país até nossas plagas, pousando um hidroavião nas águas da Guarapiranga, em 1927. Também é lembrado um brasileiro que, meses depois, repetiu a façanha (saiba mais AQUI).
O maior destaque do parque é uma pista de asfalto de pouco mais de 800 m, planinha, no alto de um talude que margeia a represa; nas suas franjas, já quase com os pés na água, alguns pescadores tentam a sorte; na pista, caminhantes se exercitam tendo a bela paisagem como inspiração.
Para mim, é momento de reflexão. Do lado do asfalto, na grama baixinha, há um trilho forjado por milhares, milhões de passadas de corredores. Dá vontade de seguir seus passos. Lembro, porém, das palavras não muito claras, mas aterrorizantes, do laudo da ressonância magnética.
“Destaca-se fratura subcondral por insuficiência no platô tibial medial associado a edema ósseo medular regional.” E mais ainda: “Condropatia patelar caracterizada por alteração de sinal condral nas facetas medial e lateral, observando pequena fissura superficial no início da faceta medial associado a pequeno edema ósseo medular subcondral no vértice. Condropatia troclear caracterizada por alteração de sinal no sulco com edema ósseo subcondral”. Para completar: “edema no coxim gorduroso suprapatelar relacionado a fricção do aparelho extensor.”
(Observação entre parênteses: perceba, caro leitora, prezada leitora, o grau de confiança e intimidade em que vos tenho, abrindo não só meu coração como também as miudezas da musculatura e os intestinos da ossatura que formam o conjunto conhecido como Rodolfo Reckziegel de Lucena.)
Não vou entrar em explicações médicas. Conversei sobre o assunto com conhecidos, ouvindo previsões tétricas. “Pacientes meus precisaram usar muletas” e “o tratamento envolve repouso de quatro a seis meses” foram algumas das informações que recebi.
São verdadeiras, por certo. Uma terrível combinação de velhice e uso continuado de articulações, agredida de forma aguda por movimentos intempestivos e bruscos dos ossos, provocados pela irregularidade do terreno pisoteado deu nisso: está fraturado o osso que funciona como um travesseiro onde se assenta o fêmur (médicos com certeza terão definição mais precisa, mas espero que dê para entender).
Dá para curar, e muita gente sai dessa sem sequelas. Mas é preciso tirar a carga. Coisa que não pretendo fazer até terminar esse projeto, pelo menos não enquanto ainda houver chance de seguir no trote ou mesmo caminhando. Ao mesmo tempo, tenho que ser responsável com meu corpo: se os riscos forem demasiados –e quem vai dizer será meu médico–, talvez seja mesmo necessário cortar até as caminhadas.
A palavra final é minha, por certo –afinal, não há pacientes que desistem de cirurgias fortemente recomendadas; ou outros que decidem passar na faca apesar de poucas chances de bom resultado? Qual vai ser minha decisão, para onde devo andar, o que me joelho quer e o que desejo eu, essas foram questões que me atribularam enquanto passeava no parque.
Cheguei ao fim do caminho: uma cerca proibia a passagem, mas minha sombra não aceitou a limitação física ali imposta. Será que eu não aceitaria?
Já cansei de conversar com outros corredores e comigo mesmo sobre essa questão de limites. Ninguém rompe limites, do ponto de vista físico ou fisiológico. O que a gente consegue fazer é expandir esses limites, ampliá-los; ou aguentar o risco quando as barreiras são forçadas (o resultado nem sempre é muito bom, há tendões partidos, músculos dilacerados e riscos ainda maiores).
Sei lá. O certo é que decidi seguir caminho depois de cruzar todas as trilhas do parque da Barragem. Atravessei a avenida Atlântica e segui meu nariz, como gosto de fazer quando treino pelas ruas sem destino.
Descobri que nem sempre o nariz é bom conselheiro: fiquei dando idas e voltas em um rol de ruas sem saída, até que percebi o problema: a terra terminava logo ali adiante, estava quase na beira do rio Pinheiros, o que eu precisava era descobrir uma ponte…
Acabei voltando, sem querer querendo, até a avenidona. Cruzei a ponte do Socorro e ainda rodei pouco mais de um quilômetro, novamente enveredando por trilhas interrompidas, até que resolvi dar por encerrado os trabalhos de hoje. Amanhã tem mais, digo para meu joelho, que me responde: “Tomara!”
Vamo que vamo!
DIA 17 – PROJETO 460 KM POR SÃO PAULO
Clique no mapa para conhecer mais detalhes sobre o percurso do dia
QUILOMETRAGEM DO DIA: 15 km
TEMPO DO DIA: 2h49min28
QUILOMETRAGEM ACUMULADA: 223 km
TEMPO ACUMULADO: 48h06min46
QUILOMETRAGEM A CUMPRIR: 252 km
DESTAQUES DO PERCURSO: avenida Atlântica, parques municipais às bordas da represa Guarapiranga, clube de rúgbi
Caro Rodolfo,
parabéns pelo projeto 460km SP! Muito bacana!
Em janeiro correrei a Maratona de Dubai, você já a correu? Tem alguma dica?
Quando voltar eu posso lhe enviar meu relato da prova?
Abraço e sucesso!
Não corri em dubai, não; sucesso lá, seu relato será muito bem-vindo, abs
Bravo, Rodolfo… estou na torcida, como muita gente. Parabéns pelos percursos e relatos.
abração, aureliano