Em Capão Redondo, mulherada corre por alegria e autonomia
16/12/13 16:25O marido foi assassinado pela polícia, o filho morto por assaltante. “Eu tinha tudo para sair matando e atirando”, diz Neide. Mas não: corredora apaixonada, diz que montou seu projeto de apoio a crianças da periferia seguindo o desejo do filho perdido para uma bala disparada por um garoto de 12 anos.
Baiana de 53 anos, Marineide dos Santos Silva é a idealizadora do projeto Vida Corrida, implantado no parque Santo Dias, no coração do Capão Redondo, zona sul de São Paulo. Ele foi a minha anfitriã de hoje, liderando uma corrida e caminhada pela região, mostrando as dificuldades enfrentadas pelos moradores da comunidade –que já foi tida como uma das mais violentas da cidade—e também as conquistas.
Por onde passamos, aliás, tudo é fruto da luta de entidades de favelas e de conjuntos habitacionais, a começar pelo próprio parque. Há cerca de 30 anos, a região teve uma explosão de crescimento. Conjuntos de habitações populares –como o predinho da Cohab onde Neide tem um pequeno apartamento— foram construídos, aos poucos ocupando o que antes era uma grande fazenda.
“Não ia sobrar verde em lugar nenhum”, conta a líder corredora, lembrando a mobilização da comunidade em defesa de uma área de lazer. A reivindicação local acabou sendo atendida, e o parque Santo Dias acaba de completar 21 anos. O local, cheio de trilhas e com áreas de mata nativa, foi nomeado em homenagem a Santo Dias da Silva, operário morto pela polícia durante as mobilizações dos metalúrgicos no final dos anos 1970 (saiba mais AQUI; se puder, confira também este VÍDEO, que tem cerca de 40 min.).
“Ele nos inspira”, diz Neide, que, na adolescência, chegou a conhecer o dirigente operário em reuniões da igreja local. Ela mesma, porém, nunca teve grande participação em lutas reivindicativas: tratava de viver sua vida, trabalhando em uma oficina de costura e treinando corrida, pois acreditava que o esporte poderia ajudá-la a ter melhores condições.
Depois da morte do filho mais velho –ela tem ainda um casal de filhos, ambos já vivendo independentes, e uma netinha–, começou a dar dicas de treinamento para mulheres que a viam correr no parque. Aos poucos, o treinamento ganhou regularidade, e o grupo passou a conquistar também as crianças.
“É uma forma de tirá-los das mãos do tráfico”, diz a corredora, afirmando que muitas crianças da comunidade eram usadas como “aviãozinho”, para entregas de drogas. Hoje há professores contratados pela ONG Vida Corrida (graças a patrocinadores empresariais e individuais), e a entidade se orgulha dos números que exibe: atende cerca de 350 pessoas, quase 90% delas mulheres e meninas de 4 a 80 anos. (Confira AQUI UM VÍDEO que fiz com Neide)
Uma parcela delas estava na manhã de hoje no parque quando lá cheguei. Era um grupo colorido e risonho, em que também havia espaço para provocações –uma dizia que a outra precisava emagrecer, outra que precisava engordar, chamavam para a corrida, tudo na brincadeira. Fizeram alguns minutos de alongamento e partimos, Neide, a mulherada e eu, de “bendito fruto”.
Começamos experimentando as trilhas do parque, absolutamente maravilhosas, todas em chão batido, cobertas de folhas e protegidas do sol por árvores em penca. A trilha principal é plana e curtinha, pouco mais de 800 metros, e os corredores completam o quilômetro da volta rodando um pouco pelo asfalto nos arredores do parque.
Há ainda trilhas menores, escadarias rústicas encravadas no chão, sobe-e-desce sem parar. “É perfeito para o treino de base”, diz Neide, referindo-se ao período em que o corredor prepara o corpo para a dureza do ano fazendo trabalhos de força, que costuma incluir séries de subidas em terreno irregular.
Além dos caminhos, o parque tem um pequeno lago com carpas, quadras esportivas e área de brinquedos para a criançada; não chega a ser grande (são 134 mil metros quadrados), mas oferece diversão bem variada.
Para mim, porém, a maior diversão era ouvir a conversa de minhas colegas de trabalho, as mulheres do projeto Vida Corrida. Havia de um tudo ao meu redor, de jovem senhoras a veteraníssimas, de moças em plena forma física a outras que lutavam para encontrar seu melhor momento, de rápidas puxadoras de ritmo a atletas não tão velozes.
Pedi a elas que não forçassem a corrida, porque precisava respeitar meu joelho, arrebentado pelos anos de esforço e pelas irregularidades e exigências deste meu projeto amalucado.
Consegui acompanhar o trote do grupo, mas era obrigado a caminhar nas descidas –e posso lhe garantir que a topografia do Capão Redondo é beeem irregular. E podia ouvir suas histórias.
De cada uma, uma emoção. Para essas mulheres, a corrida parece ser não apenas um bálsamo curativo, mas principalmente uma ponte para uma nova vida.
Um jovem mãe passava os dias sem fazer nada, atirada na comunidade; pelo que acreditava ser o bem do filho, passou a levá-los às sessões de esporte do parque. No vai-da-valsa, acaba aceitando convite para ser também uma corredora: hoje é ativa entre as colegas, participa de provas, sorri mais, é mais feliz.
Outra grita para mim, enquanto corremos pelas subidas do Capão Redondo: “Perdi dez quilos com isso. Não largo mais”. Mulheres com câncer, carecas por causa do tratamento, foram chamadas às caminhadas e corridas, protegidas pelo grupo, em vez de ficarem em dolorido e solitário processo de autocomiseração em uma cama. “Botou lenço na cabeça, uso touca, mas veio”, lembra Neide, sem apresentar a colega.
É melhor mesmo que algumas histórias fiquem sem nome. As mulheres com quem corri hoje e quase todas as integrantes do projeto têm trajetórias de dor e superação que nem sempre gostam de relembrar: vale mais a pena sorrir e brincar agora, correndo pela alegria.
Correm também pela autonomia, como diz uma das mais veteranas do grupo, dona Maria do Livramento, mineira que chegou a São Paulo ainda menina para trabalhar como doméstica. Analfabeta até os 17 anos, é hoje professora, ostenta diploma universitário e pós-graduação; mesmo na chamada terceira idade, voltou à escola para fazer graduação em história, por enquanto interrompida.
As dores da vida, porém, a levaram a uma depressão profunda. “Eu já não tinha autoestima”, diz. De alguma forma, o grupo e o esporte fizeram com que isso mudasse, até aprender a dirigir ela conseguiu. “Descobri que eu posso”, diz ela, rodando leve e elegante ao meu lado, atuando como cicerone, mostrando os pontos de destaque de Capão Redondo. (Confira AQUI a história de Maria do Livramento por ela mesma).
Um deles é o campo de futebol onde foi se reuniam os integrantes do grupo de hip-hop Racionais MC`s (não encontrei um site bom o suficiente para ser citado, mas AQUI está a página dita oficial do grupo em uma rede social). “Mano Brown morava aqui na frente”, diz uma delas, apontando para uma casa no quarteirão fronteiro ao campinho. E todas se arrumam em bela pose para a posteridade tendo ao fundo o icônico gramado.
De um dos pontos de nossa caminhada (e também corrida, sem que o joelho gritasse muito), dá para ver grande parte do bairro. O Capão Redondo surgiu em 1827, e o nome foi dado pelos primeiros ocupantes da área porque havia na região um bosque de araucárias em formato … adivinha! … arredondado.
Hoje tem pouco menos de 14 km2 e uma população de cerca de 241 mil habitantes, em que a redá média está em torno de R$ 700. Não por acaso, é conhecido pela exclusão social e pela violência. Já foi pior, segundo Neide: “Desde a morte de meu filho, si houve dois casos de assassinato aqui nas redondezas”.
Não é o que dizem as estatísticas. No ano passado, segundo os registros da 47ª Delegacia de Polícia, houve 57 vítimas de homicídio doloso (com intenção de matar); neste ano, o número será um pouco menor, se a média até outubro se mantiver até o final do mês. Mesmo assim, o bairro é assíduo frequentador da crônica policial –no inverno do ano passado, por exemplo, 11 pessoas foram mortas em menos de uma semana (leia AQUI).
Mas Capão Redondo também é visto em outros círculos. No mundo cultural, por exemplo, tem sido cenário de vários filmes –hoje passamos por uma beco, na “favelinha”, em que foram rodadas cenas de “Bróder”.
E, claro, a poesia de Mano Brown mostra como vive a população dali; ao longo de nossa caminhada, várias vezes Neide citou trechos de músicas dos Racionais. Quando cruzamos o ribeirão de águas sujas e fedorentas que separa o lado mais rico da região da comunidade mais pobre, ela parodiou: “Do valão para lá, tudo é diferente”, lembrando a canção “Da Ponte Prá Cá” (confira AQUI).
Há, por certo, muita pobreza e violência. Mas também há muita mobilização. Subindo a rua principal da Vila do Fundão, passamos por uma loja de roupas inspiradas pelo trabalho de Brown e por diversos projetos sociais, como o do grupo Negredo e do Periferia Ativa (clique nos nomes para conhecer mais sobre o trabalho deles).
Voltando para completar nosso trajeto, concluindo a jornada no parque Santo Dias, Neide apontou um cruzamento e informou: “Itapecerica fica longo ali, dá uns cinco quilômetros”.
Ainda corremos um pouquinho nas trilhas frescas e sombreadas do parque, Neide encontrou Marley, parceiro de algumas caminhadas (foto). Depois, me despedi dessa grande líder comunitária, corredora de duzentos quilates –roda uma hora todos os dias, das 5h às 6h da manhã–, e peguei uma carona até a fronteira de São Paulo com Itapecerica da Serra.
A cidade é fruto da guerra de extermínio contra os índios –nasceu a partir de fortificações ali erguidas para proteger os jesuítas de São Paulo de ataques dos brasileiros ancestrais (saiba mais AQUI). Hoje, porém, a entrada é puro trânsito, como você pode ver pela foto que registra o limite dos municípios.
Captei a imagem e voltei sobre meus passos, correndo um quilômetro inteirinho São Paulo adentro. Agora vou para a fisioterapia, que amanhã tem mais. Vamo que vamo.
DIA 15 – PROJETO 460 KM POR SÃO PAULO
Clique no mapa para conhecer mais detalhes sobre o percurso do dia (hoje foram dois percursos)
QUILOMETRAGEM DO DIA: 15 km
TEMPO DO DIA: 3h08min17
QUILOMETRAGEM ACUMULADA: 193 km
TEMPO ACUMULADO: 41h33min32
QUILOMETRAGEM A CUMPRIR: 267 km
DESTAQUES DO PERCURSO: Capão Redondo, parque Santo Dias, Vila do Fundão
Que experiência incrível, Lucena. Parabéns!
Hoje o dia foi super especial.
Obrigada Rodolfo Lucena.
Bjus
Neide