Corpo celeste explode em Parelheiros e deixa trilhas para corredor
14/12/13 21:04
Morte e destruição foram as consequências do terrível impacto registrado há milhões de anos no que hoje é a zona sul de São Paulo: um corpo celeste despencou sobre a Terra, aniquilando plantas e animais, a vida toda que existia num raio de 15 quilômetros. A distâncias menores do centro do choque, os viventes simplesmente foram transformados em vapor, desapareceram para sempre dos registros da história, não ficaram nem para semente.
A explosão, porém, deixou seus sinais. É a Cratera da Colônia, uma estrutura com 3,6 km de diâmetro, cerca de 14 km de circunferência, localizada na região de Parelheiros nos confins da zona sul paulistana –exatos 50 km da minha casa, na região oeste da cidade, conforme marcação do odômetro do carro que hoje lá me levou.
Pois foi na Cratera de Colônia que realizei o percurso de hoje de minha jornada de 460 km em homenagem à cidade de São Paulo. Tive anfitriões de luxo –lutadores de associações comunitárias e cientistas que investigam o local–, que aos poucos irei apresentando a você,
Deixe-me falar mais da tal cratera. Não é um buracão facilmente reconhecível, como muitos de nós, leigos, imaginamos quando ouvimos a palavra. Não basta olhar e pronto: “Hum, aqui caiu um meteoro” … “Não, creio que foi um cometa” … “Com certeza, um asteroide provocou essa mossa na superfície terrestre…”.
Nada disso. A Cratera de Colônia foi descoberta por acaso, em 1961, a partir da observação de imagens por satélite que indicavam que a depressão na região sul da cidade poderia ter sido provocada pelo impacto de um corpo celeste. Até bem recentemente, a questão vem gerando polêmica na comunidade científica, e o assunto chegou a ser tratado como “astroproblema” –este texto AQUI traz um bom resumo da história, em linguagem que até eu entendi.
Apesar das controvérsias, havia a certeza de que ali era uma região importante para estudos geológicos, além de ser área significativa para o ambiente: há rios que passam pela área, nascentes nas encostas dos morros (as bordas da cratera) e remanescentes de mata Atlântida. Resumo da ópera: a região foi tombada pelo patrimônio histórico e geográfico, há um parque municipal na área e o território está em área de proteção ambiental.
Para os cientistas, porém, só neste ano que foi completamente aceita a teoria de choque de corpo extraterrestre. A pesquisa que confirmou a tese foi capitaneada pelo professor doutor da USP Victor Velázquez Fernandez, 49, paraguaio apaixonado pelo idioma guarani, pelo estudo da geodiversidade e do patrimônio geológico e pela estrutura vista na região de Parelheiros.
A confirmação veio depois do exame de micropedacinhos de mineral extraído das profundezas da terra. Com o uso de um microscópio petrográfico, especial para observar rochas e assemelhados, foi possível ver que as partículas examinadas tinham marcas especiais, provocadas por ondas de choque produzidas pelo impacto de um corpo celeste no solo terrestre (mais rima!!!). E a comunidade científica admitiu que, de fato, a Cratera de Colônia era uma cratera.
“Desde a primeira vez que visitei a cratera, em 2001, fiquei deslumbrado pelo seu aspecto circular. No entanto somente em 2005 tive a oportunidade de elaborar e coordenar um projeto de pesquisa, objetivando encontrar as evidências geológicas que possam caracterizá-la como uma estrutura de impacto. A pesquisa culminou com a publicação de um artigo na revista “International Journal of Geosciences”, neste ano, confirmando a sua origem por impacto e merecendo a sua inserção na lista de banco de dados sobre estrutura de impacto do mundo.” (O artigo, em inglês, pode ser lido AQUI)
Só em maio Colônia entrou nessa tal lista, que é seletíssima: há apenas 184 crateras desse tipo no mundo (no mapa acima, as da América do Sul), sendo seis delas no Brasil (confira AQUI). Colônia é ainda quase única em outro aspecto: além dela, apenas um outro buracão provocado pelo choque de corpo extraterrestre é habitado (saiba mais AQUI).
No caso de Colônia, há cerca de 50 mil moradores numa comunidade implantada há pouco mais de 20 anos e que ainda hoje luta para conseguir sua legalização e o direito da posse da moradia.
A população da região é representada pela Associação Comunitária Habitacional Vargem Grande, que fica numa rua que atende pelo romântico nome de Dama da Noite. Lá fui recebido na manhã de hoje pela presidente da entidade, Marta Jesus Pereira, que iria comandar uma expedição de jipeiros por trilhas de Parelheiros. Ela me deixou com o tesoureiro da Achave, Sebastião Mendes Gonçalves, 67, que me levou por uma breve passeio pela comunidade enquanto contava a história das lutas da comunidade.
A família vivia em Minas, onde trabalhavam na roça como meeiros. No final dos anos 1950, porém, os donos da terra decidiram mudar de negócio, passaram a criar gado, e os agricultores ficaram sem ter onde plantar. Assim foi que, em 1958, Gonçalves acompanhou pai, mãe e irmãos na busca de melhor sorte em São Paulo.
Com quase 20 anos, conseguiu terminar de uma talagada só primário e ginásio, em um curso noturno. Depois, virou técnico em eletrônica. Apesar de ter uma profissão, não conseguiu desabrochar do ponto de vista financeiro: vivia com a mulher “de favor”, em casa dos sogros, na região do Grajaú.
No final dos anos 1980, ouviu falar de uma mobilização da União das Favelas do Grajaú e tratou de ir conferir: “Eu só queria uma casa minha para morar”, diz ele. O assunto era uma fazenda num território próximo –que veio a ser o terreno hoje ocupado pela comunidade de Vargem Grande.
“Em dezembro de 1988, eu e uma comissão de 300 moradores cortamos o arame da cerca para visitar a fazenda”, diz ele, mostrando o ponto exato onde pela primeira vez entrou na região da Cratera de Colônia.
Não se tratou, portanto, de uma invasão desordenada. Foi numa compra coletiva: um grupo de famílias se associou e cotizou para comprar a gleba, que eles mesmos lotearam e arruaram. Basta olhar uma foto ampla da comunidade para perceber que lá não há os meandros, vielas e becos tão comumente vistos em concentrações desse tipo ( a foto acima foi tirada da borda noroeste da crateda; os morros ao fundo são as bordas do outro lado, e o meião é a cratera propriamente dita; o rio Ribeirão vermelho corta o fundo do vale).
O que não significa dizer que as coisas andam às mil maravilhas. O processo de compra, em si, foi uma confusão –o fazendeiro vendedor chegou a dobrar o preço originalmente acordado, e os cotistas conseguiram fazer frente ao novo pedido.
Há esgoto a céu aberto, apenas 30% das ruas são calçadas, mais de 800 famílias estão em área que será desocupada (e os moradores transferidos para prédios que deverão ser construídos em local próximo) e faltam áreas de lazer para a criançada –além do futebol, a brincadeira predileta da turma é empinar papagaio, que a gente chama de pandorga lá no Rio Grande do Sul.
Apesar das constantes mobilizações da comunidade buscando atenção do poder público, algumas conquistas são resultado direto do trabalho dos moradores. Os prédios da escola municipal, do posto da Polícia Militar e de um terminal de ônibus, por exemplo, foram erguidos sob o comando da Achave. A entidade chegou a ter ainda rádio e TV comunitárias, ambas com o nome de Cratera.
Mesmo com todos esses problemas, o bairro parece bastante tranquilo do ponto de vista da segurança. “Isso já foi um faroeste, tinha bandido para tudo que é lado, gente andando armada”, lembra Sebastião.
A virada se deu em meados dos anos 1990, depois de embates envolvendo a associação comunitária –um dirigente da entidade foi assassinado, supostamente por capangas de uma antiga líder dos moradores. O certo é que o fato acabou provocando revolta da população e ação das forças de segurança.
“Eles vieram com uns 300 policiais, ocuparam tudo. Saíram daqui dois ônibus de bandidos presos, uma caminhão de armas apreendidas, revólveres, espingardas, facões”, diz Sebastião. “Foi uma faxina”, resume.
Aparentemente deu certo, a julgar pelo que me conta o professor Victor, dizendo que nunca teve nenhum problema de segurança em nenhuma de suas visitas de pesquisador (CLIQUE NA FOTO para assistir a um pequeno vídeo em que ele explica sua descoberta). Nem hoje, quando ainda trouxe para a caminhada seu parceiro de estudos José Maria Azevedo Sobrinho, geólogo que também assina o estudo que identifica a cratera de colônia como resultado de impacto de corpo celeste, e outros convidados.
Estou usando essa denominação genérica porque, segundo me diz Victor, não há como saber exatamente o que foi que atingiu nosso prezado planetinha, se asteroide ou cometa, se bola de ferro pesada e compacta ou se corpo de gelo gigante. Também não se sabe quando o choque aconteceu. Vi documento oficial falando em “há cerca de 36 milhões de anos”, mas os cientistas que caminham comigo desconfiam de tais certezas. Preferem dizer que o choque deve ter ocorrido “entre 30 milhões e 5 milhões de anos atrás”.
O resultado do impacto é essa estrutura anelar, com diâmetros de 3.640 metros, altura máxima de 125 metros e sedimentos que chegam a 430 m (ou seja, o fundo da cratera foi aterrado ao longo dos milhões de anos e, supostamente, está a cerca de 400 m abaixo do chão onde pisamos). A circunferência é de aproximadamente 14 km.
Para saber mais sobre ela são necessárias mais pesquisas e investimento, para buscar material no fundo da terra e investigá-lo. Os custos de tal trabalho são estimados em US$ 1,5 milhão, diz Victor, e há negociações em andamento com uma agência japonesa financiadora de pesquisas.
“Colônia é um monumento geológico e deve ser preservado como tal. É detentora do maior registro de sedimentos quaternários, com potencialidade científica de documentar a história das mudanças climáticas da América do Sul, em no mínimo, desde os 3 milhões de anos até o presente”, afirma o professor.
A comunidade está localizada em uma pequena parcela da cratera, na borda norte (genericamente falando). Perto dali está o presídio de Parelheiros, que fica protegido pela mata; e no entorno, meus amigos, há trilhas de dar água na boca.
Depois de ótimas aulas de geologia (fiquei fã, estou seriamente pensando em frequentar um curso no ano que vem), enveredamos por caminhos mais ótimos ainda, no meio de muito verde, arbustos, árvores e terreno cruzado até por um rio que já serviu de piscinão para a criançada local.
A trilha é fechada, mas bem definida, pelo menos no início. É que o trajeto que usamos serve de passagem para moradores de Vargem Grande que trabalham em uma fábrica de autopeças que fica do outro lado do morro. Chegamos até os limites da propriedade e começamos a voltar por outro caminho.
Aí é que a coisa ficou preta (ou verde e barrenta, melhor dizendo). As trilhas não são marcadas e, às vezes, os sinais de passagem humana desaparecem. Mesmo sendo guiados por um experiente caminhante da região, Severino Carlos de Souza, 54, vice-presidente da Achave, nosso grupo várias vezes teve de voltar sobre os próprios passos.
Cruzamos por ruínas de construções centenárias, provavelmente sítios de imigrantes alemães da região; vimos caminhos também centenários, pois pela área passavam os tropeiros em direção ao mar (e vice-versa, por suposto); e passamos emoções tendo de cruzar riozinhos aos pulos, escorregando em barral, cada um dando o braço ao outro em ajuda fraterna para que todos saíssemos inteiros da mata.
O som ao redor era de insetos, pássaros, uma algaravia sem fim. Havia também gritos ao longe, berros que chegavam a assustar. “São os presos”, explica Severino, contando que a cadeia ali é de segurança máxima e que algumas regiões do morro não podem ser ultrapassadas.
Enquanto vamos vagarosamente cobrindo quilômetros, os dirigentes comunitários falam dos projetos em andamento na gleba. Ruas estão sendo calçados, há três parques em projeto, e associação sonha em criar na região um plano de turismo sustentável, aproveitando trilhas como as que visitamos. “Geoturismo”, fala o professor Velázquez.
Também turismo histórico, pois Colônia, o bairro que empresta o nome para a cratera, é um dos mais antigos. Local ocupado desde o século 19 por imigrantes alemães (hoje há também uma boa presença de imigrantes e descendentes de imigrantes japoneses), tem o mais antigo monumento da imigração alemã na cidade: o cemitério do bairro. Preservada, a parte antiga tem 150 túmulos. Um site sobre a necrópole (confira AQUI) data o conjunto de 1840, mas a capelinha ali construída tem como data registrada 1829.
Além do respeito aos mortos, os moradores da região procuram apreciar o convívio dos vivos: me meados do ano, há uma grande festa alemã em Colônia, que já está sendo preparada desde já.
A área da Cratera também se prepara para crescer e aparecer. Quem viver verá. Vamo que vamo.
DIA 13 – PROJETO 460 KM POR SÃO PAULO
A caminhada de hoje foi divida em três momentos: passeio pela comunidade de Vargem Grande e as trilhas da cratera de Colônia, visita ao cemitério alemão e caminhada por um pequeno trecho da borda sul da cratera; os mapas abaixo resumem o percurso e são acesso a mais informações sobre o trajeto; os dados no final são do acumulado do dia (um total de 15 km)
QUILOMETRAGEM DO DIA:15 km
TEMPO DO DIA: 6h04
QUILOMETRAGEM ACUMULADA:172 km
TEMPO ACUMULADO: 35h59min22
QUILOMETRAGEM A CUMPRIR: 288 km
DESTAQUES DO PERCURSO: Cratera de Colônia, comunidade de Vargem Grande, cemitério alemão de Colônia
PS.: Na caminhada de hoje, como nas demais, produzi vários vídeos superbacanas, mas o tempo para carregá-los na rede é grande demais e não posso esperar para colocar o texto no ar. Ao longo dos próximos dias, continuarei atualizando os posts, acrescentando links para os vídeos. Por isso, aceite meu convite para dar uma olhadinha em texto mais antigos, pois é bem possível que encontre novidades. Obrigado, grande abraço. Volte sempre.