Parque do Carmo é palco de treinos de ultramaratonista
13/12/13 15:39Quando menino, ele era um azougue. Tanto que a mãe o mandou de volta para o Piauí, para ficar com a família. Voltou a São Paulo adolescente, mais tranquilo: “Sou um ótimo filho”, me diz Carlos Éber Valentim Vieira, mais conhecido no mundo das corridas como Éber Valentim.
De fato, leva uma vida calma. Aos 36 anos, é casado, tem um filho pequeno e já é veterano na empresa em que trabalha, onde assina ponto há cerca de 15 anos. Na hora da corrida, porém, acabam-se as gentilezas: ele vai para a morte, como dizem os corredores. Gosta de provas longas, de mais de 50 km, e já acumula vitórias em duplas e trios em uma das mais difíceis ultramaratonas do país, a Brasil 217 –o número se refere ao total de quilômetros do percurso.
Fomos correr juntos hoje em um dos seus campos de treinamento, o sensacional parque do Carmo, na zona leste de São Paulo. Começamos caminhando e tenho certeza que, estivesse alguém nos observando, acreditaria que Éber estava muito mais descansado do que eu.
Ledo engano. O sujeito havia trabalhado a noite toda. Encontrei com ele às 7h em ponto na frente do prédio dos Correios, pertinho do Ceasa, em um dos extremos da zona oeste de São Paulo. Lá, durante as oito horas regulamentares de seu turno, ficara operando uma máquina que seleciona e organiza correspondência destinada a Osasco (que está ali pertinho).
No total, o equipamento manipula cerca de 100 mil cartas por turno e as separa em lotes. Depois, os carteiros pegam seus fardos e vão à luta –homens carregam 15 kg, mulheres saem com uma sacola de 10 kg. E o operador da máquina sai para correr.
Hoje não foi a primeira nem a segunda vez em que Éber saiu do trabalho direto para o treino –ao contrário, essa é sua prática mais comum. Mais recentemente, tem preferido treinar no parque estadual do Tietê, mas guarda memórias doloridas das rampas do Carmo, onde a preparação era pesada e o ritmo intenso.
Partimos para fazer a volta tradicional que Éber costumava completar algumas vezes. É um percurso de seis quilômetros que utiliza trechos da ciclovia –basicamente utilizada por caminhantes e corredores, a julgar pelo que vimos hoje–, com piso em asfalto, e algumas trilhas não muito irregulares (fora da volta tradicional, há percursos mais casca grossa, como o da imagem abaixo).
As subidas e descidas tornam a volta uma excelente preparação para quem vai enfrentar corridas em montanhas –em 2006, Éber foi o terceiro colocado no Desafrio Urubici, uma prova na cidade catarinense que dá nome à corrida e que se notabiliza pelo clima gélido; lá os atletas chegam a 1.826 m no cocuruto do Morro da Igreja.
Hoje, no Carmo, o clima estava agradável, bom para correr. Eu nunca tinha ido ao parque e Éber parecia vê-lo pela primeira vez: no ritmo que costumava treinar lá, conta ele, não dava para perceber muita coisa em volta.
Ele não sabia, por exemplo, que o parque abriga um viveiro de plantas, que fornece folhagens, arbustos e árvores para outros parques municipais, praças, escolas, hospitais.
Até gente comum –os munícipes, no jargão das portarias municipais– pode buscar uma plantinha lá, tudo de graça. Cada pessoa tem direito a até dez mudas de árvore por ano, para plantar na frente de casa ou em seu jardim; no caso de folhagens, são cinco peças (saiba mais AQUI).
É bem verdade que o viveiro fica numa baixada, um tanto fora da visão de quem está correndo forte no circuito. Hoje, porém, fizemos a volta em ritmo lento e ainda aproveitamos para investigar algumas das trilhas menos civilizadas que o parque também apresenta.
Afinal, o Carmo não é pequeno, tem 1,5 milhão de metros quadrados. Originalmente uma fazenda no século 19, o parque tem mais de 6.000 árvores, com destaque para eucaliptos e cerejeiras. Segundo me ensina o portal da Prefeitura, ali é realizada há 35 anos a Festa das Cerejeiras, que “comemora o florir da árvore símbolo do Japão e tornou-se a marca da comunidade nipônica que vive na região. Todos os anos ocorre a prática do “hanami”, ritual que consiste em sentar-se sob as cerejeiras e contemplá-las por longo período”.
Até consigo reconhecer uma cerejeira em flor, mas hoje não foi o caso. Precisava cuidar do meu joelho, que sofria nas descidas, mas se recuperava nas subidas, e ainda captar o que imaginava ser o espírito do parque.
Tem uma alma muito calma (ih, rimei!) e parece ser bastante seguro. Éber notou a limpeza da área e o aumento do número de funcionários e de seguranças –há cinco anos, por exemplo,as áreas próximas aos banheiros eram território dominado pro drogados, que não poucas vezes agrediam corredores. “Teve um que levou uma voadora”, lembra Éber.
Isso apesar de haver uma delegacia de polícia colada à entrada do Carmo: a 53ª DP deve fechar o ano com menor número de homicídios, mas basicamente o mesmo número de roubos e furtos, a julgar pelas estatísticas atuais (saiba mais AQUI).
Aliás, não vi polícia nas alamedas do parque, hoje, mas também não vi nada que parecesse necessitar da presença dela. Ao contrário, tudo rolava na mais santa paz, com o público aproveitando bem algumas das simpáticas áreas do Carmo, como um jardim de inspiração japonesa.
Corremos em volta do lago, numa planura bem agradável, e às vezes ficava com vergonha de obrigar um sujeito muito mais rápido a rodar em ritmo tartaruguesco. Mas Éber não foi sempre essa máquina de engolir quilômetros. Mesmo com biotipo que lembra o de quenianos, estreou em corridas completando 10 km em pedestres 80 minutos.
Era o ano de 2004, ele ainda fumava e bebia regularmente. Aceitou o desafio de um amigo gordinho e saiu à toda a brida, disposto a vencer o colega. Seu entusiasmo durou pouco: foi ultrapassado no km 4 e só chegou ao final porque forçou o corpo a não desistir.
“Até hoje terminei todas as provas em que entrei”, diz ele, que adorou o esporte apesar do sofrimento da estreia. Aos poucos foi largando o cigarro e o álcool, percebendo que lhe prejudicavam o desempenho na corrida.
Só não abandonou o Corinthians de seu coração (e do corpo: tem o brasão corintiano tatuado na pele). Sócio da torcida organizada Gaviões da Fiel, já chegou a frequentar 100% dos jogos do time em campeonato Paulista. No Carnaval, sai na bateria da Gaviões, posto que também ocupa quando vai ao estádio conferir o jogo da equipe.
O amor pelas corridas e as atividades profissionais –não poucas vezes, atua em fins de semana na cronometragem de provas—reduziu sua presença nos gramados, mas ainda veste a camiseta branca-e-preta, nem que seja para posar para fotos, como no treino de hoje.
Para ele, é certo, nem dá para chamar de treino. Passeio, talvez, em que descobrimos no alto de uma das colinas do Carmo o seu Planetário, um predião bonito, que lembra um pouco o do Ibirapuera. Mas está fechado. “Problemas de equipamento”, me diz um atendente pelo telefone.
Pesquiso um pouco e percebo que é mais que isso. Pelo visto, há uma sequência de erros em que a vítima é sempre o público. Um dos textos que li aponta, de forma ácida: “Com obras iniciadas em 2002 e inauguração no fim de 2005, o Planetário do Carmo passou pelas mãos de quatro prefeitos — Marta Suplicy (PT), José Serra (PSDB), Gilberto Kassab (PSD) e Fernando Haddad (PT))— e, até agora, é um elefante branco. Apenas em 2006, o local ficou aberto de forma regular. Naquele mesmo ano, porém, foram encontrados problemas em sua estrutura e o planetário fechou”.
Por alguns meses do ano passado e deste 2013, voltou a abrir, mas praticamente de forma experimental, atendendo a algumas escolas. Neste mês deve sair o resultado da licitação da gestão do local, segundo notícia publicada num jornal virtual especializado na zona leste (leia AQUI).
Bom, se não vi estrelas, pelo menos tive a oportunidade de conhecer algumas das belezas do local. Não encontrei veados-catingueiros, preguiças-de-três-dedos, tatus, ouriços-cacheiros nem caxinguelês, que já foram observados na mata, segundo a apresentação oficial do parque. Em contrapartida, vimos porquinhos-da-índia e simpáticos e serelepes esquilos. Um deles chegou mesmo a posar para a câmera.
Com o que me despeço, seguindo para casa onde vou logo botar gelo no meu joelho, pois amanhã tem mais. Vamo que vamo!
DIA 13 – PROJETO 460 KM POR SÃO PAULO
Clique no mapa para acessar informações mais detalhadas sobre o percurso
QUILOMETRAGEM DO DIA:12 km
TEMPO DO DIA: 2h10min41
QUILOMETRAGEM ACUMULADA:157 km
TEMPO ACUMULADO: 29h55min22
QUILOMETRAGEM A CUMPRIR: 303 km
DESTAQUES DO PERCURSO: parque do Carmo, viveiro de plantas, lagos e planetário do Carmo
PS.: O dia 12 foi de folga
Tão fantástico quanto o percurso é o que se encontra dentro dele, o Eber é uma boa prova disto, gente boa e corredor dos bons!