Com autor de “Divórcio”, corredor percorre alamedas da Saúde
11/12/13 12:48No primeiro e-mail que ele mandou para mim, aceitando o convite para participar de uma das etapas do meu projeto 460 km por São Paulo, já avisava: “Meu romance `Divórcio` é de fato um livro de ficção. Eu não comecei a correr em 2011. Comecei a correr em 1999, no início do curso de mestrado na Unicamp. Em 2011, o que fiz pela primeira vez foi me preparar para uma prova, a São Silvestre. Portanto, minha experiência com a corrida não é obviamente a descrita no meu romance”.
Talvez você não conheça a história, então explico o fuzuê. O que o escritor Ricardo Lísias queria deixar claro é que ele, autor, não era o Ricardo Lísias personagem e narrador do livro “Divórcio”. Ou, por outra: que o livro é uma obra de ficção, não biografia ou vingança de amante traído.
Explico mais um pouco, resumindo a trama do romance (mesmo com o risco de superficialidade que os resumos têm): “Divórcio” conta a trajetória de um escritor que, quatro meses depois do casamento, descobre o diário da mulher, onde ela comenta suas traições e registra opiniões deletérias sobre o marido.
No processo de recuperação, o Ricardo Lísias personagem descobre a caminhada e, logo depois, a corrida, como forma de purgar o sofrimento e engendrar algum tipo de satisfação pessoal ou conquista.
Acaba participando da São Silvestre de 2011, experiência tão marcante que o livro é dividido em quilômetros. Naquele ano, o percurso da prova foi modificado, e os corredores tiveram de descer a Brigadeiro até o Ibirapuera depois de terem feito a subida em direção à avenida Paulista. Tudo sob uma chuva dos demônios.
Pois o Ricardo Lísias escritor, gente de carne e osso com quem conversei e corri na manhã de hoje, também fez sua primeira São Silvestre naquele ano. “A descida foi terrível”, lembra ele. “Vi muita gente escorregando, era bem perigoso.” Terminou esgotado, no barral que se formou na área da chegada, e voltou a pé até a Paulista, como muitos outros participantes.
Nossa corrida também poderia ser sob chuva, de acordo com as previsões. Ontem, Lísias ainda mandou um e-mail perguntando se sairíamos em quaisquer condições climáticas, já esclarecendo: “A mim a chuva não incomoda”.
A mim também não (aliás, ontem tomei um banho de chuva caminhando da estação de trem Ermelino Matarazzo à estação USP Zona Leste que nem te conto…). Assim nos encontramos na manhã de hoje, em uma esquina da rua Indianópolis, na zona sul da cidade.
Saímos a passo, para que meu joelho direito ganhe ritmo. Por causa da lesão, tenho manquitolado um pouco, fugindo da dor; médico e fisioterapeutas me dizem que isso é caminho certo para lesões mais graves, talvez até na lombar (não!!!!). É preciso tentar andar normalmente e correr de forma ainda mais normal.
A companhia me ajuda. Enquanto vamos acertando a caminhada, preparando para logo acelerar e começar a corrida, Lísias me conta que costumava correr à noite pela avenida, que atraia muitos corredores e ciclistas por causa de sua extensão, amplitude e topografia –é quase plana, as subidas e descidas são graduais e até agradáveis.
A avenida também é frequentada, à noite, por um exército de travestis. Na manhã ainda escura, final de madrugada, encontramos dois ou três que ainda não decidiram encerrar a noitada.
“Nunca me incomodaram”, diz Lísias. “No máximo, falam qualquer coisa. Um deles me disse que eu não precisava ficar correndo, que ele passaria o telefone do seu cirurgião plástico e pronto…”.
O escritor observa que, tal como na vida, a distribuição dos trabalhadores da noite segue uma estratificação social. “Lá para cima, parece, ficam os mais bem de vida. São uns cavalheiros.” É uma região em que também há mulheres na noite. Já na parte da avenida mais na baixada, na direção do parque Ibirapuera, ficam os que aparentam ser mais pobres: é uma área onde as coisas podem ficar mais violentas.
Para o corredor da noite, porém, o que incomoda mesmo são os clientes dos travestis, que chegam em carros, carrinhos e carrões. Enquanto estão na caça, rodam supervagarosos; quando acertam o programa, saem em alta velocidade, como se estivessem fugindo. “Parece que têm vergonha”, analisa o escritor, que é paulistano de nascimento, tem 38 anos e doutorado em literatura pela USP.
Saímos do território das noitadas, descemos uma pequena lomba, encontramos o plano e engrenamos uma corrida ritmada até a estação Praça da Árvore do metrô. No caminho, passamos por um mosteiro, que ele diz ser de religiosas que vivem reclusas. “Eu vejo gente entrar, nunca vi ninguém saindo”, diz ele. “Já dá mote para um romance”, respondo.
Pela avenida Jabaquara, seguimos a jornada que vai nos levar novamente à Indianópolis. Antes, ainda outra casa religiosa, a igreja de São Judas. “Essa é grande”, diz Lísias, contando que, de vez em quando, a multidão toma conta de toda a calçada em frente à igreja. Pelo visto, há muitos desesperados em busca da intervenção do santo das causas perdidas…
Ao longo do caminho, de vez em quando “Divórcio” volta à baila, porque algumas resenhas teimam em casar na mesma pessoa narrador e autor. Lísias escritor, por exemplo, é enxadrista, tal como o Lísias narrador; mas o da vida real nunca “quase” ganhou uma vaga a um campeonato mundial da xadrez, uma das tantas questões que amargam a vida de seu personagem.
O jogo dos reis é uma paixão do escritor, que começou a praticar aos dez anos e ainda hoje faz aula uma vez por semana com um mestre do esporte. Quando adolescente, assistiu a uma apresentação de enxadristas soviéticos ocorridos exatamente na época em que a ex-URSS estava se desintegrando. “Eles ficaram muito tensos. De repente, não eram mais soviéticos, mas da Rússia, da Geórgia, da Armênia…”
A corrida lhe chegou mais tarde, quando fazia mestrado em literatura em Campinas. Sua orientadora recomendou que praticasse algum esporte regularmente. Chegou a tentar natação, mas não se deu bem. Então começou a dar voltas numa pista no campus universitário e descobriu que, de fato, como dissera a professora, aquilo contribuía para relaxar, desestressar (saiba mais CLICANDO AQUI para ver um vídeo que fiz com ele).
Hoje treina três vezes por semana e contabiliza duas São Silvestres e uma meia maratona. Para a prova mais longa, uma competição em São Francisco dedicada a mulheres, mas com 10% de vagas para homens, treinou com ajuda profissional pela primeira vez, sendo orientado por uma assessoria esportiva.
“Terminei muito bem”, lembra ele. “Acho que poderia correr ainda uns dez quilômetros.” A experiência fez com que começasse a pensar em uma maratona, mas ainda analisa a questão.
O que ele mais estuda, mesmo, são as pessoas. “Ela está completamente drogada”, comenta sobre um mulher que passa por nós, os olhos vidrados, falando a um celular. “O escritor precisa estar atento a tudo”, explica.
O olhar clínico e o ouvido atento lhe ajudaram a criar personagens. Como pesquisa para “O Livro dos Mandarins”, que trata do mundo dos executivos, frequentou um café em que dirigentes de empresas costumam bater ponto. Ouvia as conversas das mesas ao lado para entender o repertório e o linguajar dos seus personagens.
Para “Divórcio”, fez coisa semelhante. Nas padarias da Saúde onde eventualmente se reabastecia durante os treinos noturnas, ouvia o papo dos travestis. “Não existe uma Ramona”, diz, referindo-se a personagem do livro que interage com o Lísias narrador. “Ramona são todos eles.”
Foi assim, por exemplo, que descobriu o termo “mariconete”. A palavra, na gíria dos travestis, identifica os desqualificados que passam de carro debochando, atirando objetos ou até ameaçando o pessoal que trabalha na rua.
Lísias, ele mesmo, nunca se sentiu ameaçado em seus treinos noturnos. É certo que toma precauções. Vai até uma praça que serve como espécie de limite entre a área mais bem de vida e uma favela incrustada entre as belas casas das franjas da avenida Indianópolis.
Mas não se arrisca a passar pelas vielas da comunidade, que já foram fechadas no tempo dos ataques do PCC e são dominadas pelo tráfico –ou, pelo menos, é o que parece, mas a prudência sugere que não se investigue mais.
Também em segurança –e sem um pingo de chuva– terminamos nosso passeio. Além da ótima conversa, termino feliz por ter conseguido, em boa parte do trajeto, acompanhar o ritmo do escritor, mancando muito pouco. Quem sabe, consigo me recuperar com mais algumas sessões de fisioterapia, gelo, musculação, alongamento e descanso. Afinal, ainda faltam mais de 300 km para completar minha jornada. Vamo que vamo!
DIA 11 – PROJETO 460 KM POR SÃO PAULO
Clique no mapa para acessar informações mais detalhadas sobre o percurso
QUILOMETRAGEM DO DIA:13 km
TEMPO DO DIA: 2h02min45
QUILOMETRAGEM ACUMULADA:145 km
TEMPO ACUMULADO: 27h44min41
QUILOMETRAGEM A CUMPRIR: 315 km
DESTAQUE DO PERCURSO: avenida Indianópolis, convento das carmelitas, igreja São Judas