Corredor descobre cores nas vielas de Ermelino Matarazzo
10/12/13 19:36“Quando conheci o pessoal fazia uns três meses que eu tinha saído da cadeia”, me conta Leandro, meu anfitrião na caminhada de hoje pelos meandros de Ermelino Matarazzo, bairro cravejado de favelas na zona leste de São Paulo. A história do jovem é semelhante à de muitos outros detidos por morarem em zona de invasão ou bairro menos favorecido pelo dinheiro e pelo poder.
No início da madrugada, ele acabara de sair da jornada noturna em uma tecelagem da região, onde trabalhava como ajudante. Ia passar na padaria para comprar o desjejum quando foi abordado por quatro policias, quase em frente à igreja da Cruz Preta, em um dos pontos mais altos da Vila Santa Inês.
“Disseram que eu tinha roubado uma moça, assalto a mão armada. Me deixaram pelado na delegacia, me bateram, mas eu não assinei, não tinha sido eu.” Quando falou onde morava, ouviu: “É da favela, foi você mesmo”. E tome porrada!
Acabou jogado no presídio Adriano Marrey, em Guarulhos, onde ficou três meses e passou por três audiências judiciais até que a vítima foi ouvida e disse que não tinha sido ele (Leandro tem uma mancha vermelha no rosto que o torna facilmente identificável).
Apesar das evidências, a ordem judicial de soltura ainda demorou cinco dias para chegar, sabe-se lá por quê. “Podia ter acontecido qualquer coisa, podiam até ter me matado”, diz ele, que entrou com ação contra o Estado, mas já não acredita em qualquer resultado: “Desapeguei”.
A prisão aconteceu quando ele tinha 18 para 19 anos. Hoje, Leandro Pereira Araújo, 25, nascido e criado em Ermelino Matarazzo, está na metade do curso universitário de artes plásticas e totalmente apegado ao Projeto Azu, uma iniciativa do artista plástico Élcio Torres que vem jogando cores nas vielas, escadarias e praças da favela Santa Inês, onde o ateliê tem sede (abaixo, o primeiro grande trabalho do grupo na comunidade).
Foi lá, na rua Cinturão Verde, um fundo de vale perto da rua principal da comunidade, que nos encontramos no início da manhã de hoje para a décima jornada de meu projeto 460 km por SP. Começamos seguindo em direção a um território esquecido pela população local e pelas autoridades: ruínas de uma construção do século 16. Apesar de tombado pela Patrimônio Histórico, o Sítio Mirim parece totalmente abandonado, com grama alta no seu entorno e nenhum tipo visível de proteção (saiba mais AQUI).
Dali, rumamos para a estação de trem Ermelino Matarazzo, onde está montado o primeiro trabalho com que o Projeto Azu ganhou uma concorrência: um enorme painel de azulejos que conta um pouco da história da região.
Leandro mostra com orgulho o conjunto de 8,40 m por 3 m, onde aparecem a igreja da Cruz Preta, o pintor Mateus Santos –chamado “Poeta das Tintas”–, os edifícios das Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo e outros ícones do bairro.
A obra é de 2010, mas o Projeto Azu começou alguns anos antes. “Ouvi falar deles em 2007, um amigo me contou que tinha um pessoal fazendo azulejos no bairro. Fui ver o que era e comprei a ideia na hora.”
No início, era uma espécie de guerrilha azulejística. Torres, Leandro e outros artesãos militantes criavam suas obras e saíam pela favela, conversando com moradores, vendo quem aceitava montar um mosaico ou mesmo instalar uma peça no muro. “Teve gente dizendo que a gente estava marcando as casas para o tráfico, outros falavam que isso era coisa do demônio…”
Depois de trabalharem um mês em um mosaico destinado a enfeitar o muro de uma moradia da vila, conforme acertado com o filho do dona da casa, enfim conseguiram aprontar a obra. Bem satisfeitos, instalaram no muro a colagem de azulejos, em que se destacava um colorido cavalo marinho. Quando o dono de casa a viu, atacou a obra como se fosse um mostro do outro mundo, deixou as peças atiradas no chão.
“Pegamos tudo, recolhemos num balde, lavamos, dava vontade de chorar ver o trabalho destruído assim”, lembra. Uma vizinha do vândalo, que tinha visto a cena, convidou os garotos para montarem a obra no muro da sua casa, na frente da outra: “Assim ele vai ver o desenho todos os dias”, disse a senhora…
Os apoios são mais amplos e generosos que eventuais críticas. Além do reconhecimento do poder público, pela vitória em editais (o Projeto Azu tem ainda um painel na estação USP Leste), ganha o carinho da comunidade: crianças participam de oficinas, jovens ajudam a montar painéis.
“Aqui tivemos muitas mãos”, diz Leandro, apontando para uma escadaria totalmente modificada, enfeitada e colorida pela ação dos azulejistas. “Até bala levou”, conta, mostrando a marca de um tiro disparado por policiais durante uma perseguição pelos intestinos da favela.
Apesar de tudo, o que fica são as cores que adornam a Rua da Mocidade Alegre. E não se trata de arte pela arte: em uma praça abandonada, o Projeto Azu montou homenagem a Dona Neuza, uma das pioneiras da vila e líder comunitária marrenta (os gaúchos dizemos “de faca na bota”), que é uma referência para todo o movimento dos moradores da região em busca de melhores condições de vida.
É um jeito de ajudar a todos, diz Leandro, a “conhecer nossa história, conhecer o chão em que a gente caminha”. Vamo que vamo!
DIA 10 – PROJETO 460 KM POR SÃO PAULO
Clique no mapa para acessar informações mais detalhadas sobre o percurso
QUILOMETRAGEM DO DIA: 11 km
TEMPO DO DIA: 2h47min05
QUILOMETRAGEM ACUMULADA: 132 km
TEMPO ACUMULADO: 25h41min56
QUILOMETRAGEM A CUMPRIR: 328 km
DESTAQUE DO PERCURSO: vila Santa Inês, Ermelino Matarazzo, igreja da Cruz Preta
Parabéns Rodolfo.
No início da sua jornada, achei que seria mais um blablablabla de corredor. Km aqui, km ali. Mas você está conseguindo mostrar a verdadeira São Paulo. Não adianta correr em linha reta, olhando para o chão e dando split nos belos relógios. É preciso olhar para os lados. E você está nos levando a deliciosas aventuras.
Rodolfo:
Parabéns pelo 460km por SP. As matérias estão bem interessantes. Grande idéia e realização. Continuo acompanhando. Um abraço.
PC