Urbanista Raquel Rolnik passeia por SP com maratonista e analisa a cidade
08/12/13 14:42“A avenida Angélica foi minha estrada para a liberdade. Eu vivia num gueto: meus amigos eram judeus, ia a festas de judeus, sempre estudara em colégio judaico. Quando terminei o ginásio, disse não! Cheguei a fazer greve de fome para mudar de escola (durou um dia). Consegui. O colégio era na Paulista, eu subia de ônibus a Angélica, era uma espécie de passagem para um mundo novo.”
Quem conta é a arquiteta e urbanista Raquel Rolnik, 57, minha convidada-anfitriã neste oitavo dia do projeto 460 km por SP. Caminhamos por partes da cidade que lhe foram e são importantes na vida, observamos as mudanças na Paulicéia e ouvi dela análises sobre a situação da urbe.
Palavras críticas, em sua maioria, pois é essa mesma a função do observador/analista/urbanista: descobrir o que está errado e apontar direções, propor caminhos. É o que Raquel vem fazendo ao longo de seus quase seis anos de atuação como relatora especial das Nações Unidas para o direito à moradia.
A poucos meses do fim do seu segundo mandato, ela contabiliza visitas a mais de uma dezena de países, em que sua passagem nem sempre foi motivo de alegria dos governantes e poderosos de plantão. Um de seus estudos polêmicos avalia o impacto de megaeventos esportivos na situação da moradia, e o Brasil não se sai muito bem (leia mais AQUI).
Nosso passeio, no entanto, começa com elogios. Circulamos pela praça Dolores Ibarrury, no Alto de Pinheiros, e eu festejo a escolha da minha convidado, pois o local é também um dos meus prediletos. Gosto de enfrentar as ladeiras da praça, que tem vários níveis, e me emociono com a homenagem que a cidade fez à grande militante comunista espanhola, que passou á história com o apelido de La Pasionaria (saiba mais sobre ela AQUI).
Rolnik destaca o paisagismo da praça, as boas soluções dadas para o problema oferecer ao público uma área de lazer num terreno em declive. Aponta (foto acima) o sistema de drenagem, que julga inventivo e efetivo, integrado à natureza do ambiente.
Já mendigo e moradores de rua não são bem-vindos –ou, pelo menos, não eram para quem inicialmente montou a praça. É o que indica o banco de cimento antimendigo, hoje modificado por intervenção de ativistas da região, que buscam humanizar a praça.
O banco tem ondulações para tornar desconfortável a deitada nele, além de uma saliência feita para atacar a coluna lombar –tudo planejado para deixar a praça “limpa” de estranhos.
Mas a cidade não perdoa. Mesmo no território de bem-nascidos, chegam os tentáculos da violência urbana: ali na praça do silencioso e plácido Beco das Corujas, em que passeiam jovens mamães e seus rebentos, cavalheiros com seus cachorrinhos, alguém foi morto a tiros –a cruz improvisada funciona como memorial da tragédia.
Seguindo caminho pelo coração da Vila Madalena, passamos por uma pouco movimentada zona eleitoral: neste domingo se realizam eleições para o também pouco conhecido Conselho Participativo Municipal (saiba mais sobre esse órgão AQUI).
Comentamos o episódio, mas nossa atenção está mais dirigida para a Vila, que já foi território livre de artistas e artesãos, estudantes com pouco dinheiro e empreendedores desabridos. Ainda que modificado pelo tempo, há bastiões desse espírito: a galeria de arte alternativa Casa da Xiclet é um dos bastiões de resistência, encravada das franjas da Fradique (saiba mais AQUI).
Logo à frente, uma turma monta mais uma versão da feirinha da Vila Madá, mas não temos interesse em compras. Rumamos para o início da Fradique, onde faremos uma parada memorialística. Naquele primeiro quarteirão, há mais de 30 anos, existia um conjunto de casinhas de fundo de lote que virou uma espécie de república universitária.
Um espaço naquele território livre da juventude foi a única coisa que Raquel conseguia pagar quando saiu de casa. E lá ficou até que o dono do conjunto cansou da bagunça universitária e tratou de vender as casinhas. Não contava, porém, com a resistência do grupo, que descobriu irregularidades nos procedimentos do barão imobiliário e foi buscar seus direitos nos tribunais.
Um acordo garantiu à turma mais seis meses de residência –sem pagar aluguel. Os estudantes também teriam direito aos escombros –Raquel usou parte do material de demolição para construir sua casa própria, a mesma onde mora hoje. Depois de várias reformas, ainda há algumas portas sobreviventes da casinha da Fradique.
Nossa jornada pela memória urbana da urbanista prossegue passando pelos Jardins. Subimos a Gabriel Monteiro da Silva enquanto conversamos sobre as atividades dela como relatora especial da ONU (confira AQUI o blog Moradia é um Direito Humano, em que Raquel fala sobre o trabalho da relatoria e abre espaço para denúncias e consultas sobre o tema).
Chegamos ao topo da Paulicéia, na Paulista com Consolação, e tomamos o rumo da Angélica, que lhe é tão querida. “No colégio, conheci paulistas pela primeira vez. Tinha gente de outros bairros, outras cidades, do interior. Para o judeu, não há interior: há São Paulo, Rio, Buenos Aires, Nova York. No máximo, ia ao Guarujá, não sabia o que era o interior.”
Um dos primeiros amigos de Raquel no colegial morava na Freguesia do Ó, galáxias de diferença do mundinho onde vivia. “Um dia fui numa festa na Freguesia, tinha cerveja, música, gente. Era um paraíso”, recorda a hoje professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.
Enquanto falamos sobre paraísos, passamos por um oásis na urbe: a praça Bueno Aires, em plena Angélica. Na manhã dominical, famílias do entorno fazem dali seu parque de diversão, encontro com a natureza.
Os prédios da avenida suscitam sua memória profissional: “Esse é do Artacho Jurado”, aponta, elogiando o design de um edifício idealizado pelo homem que ainda hoje é incensado por muitos arquitetos (saiba mais sobre ele AQUI).
Cruzamos sob o Minhocão, que merece o repúdio e a ira da urbanista (conheça mais sobre as ideia dela no BLOG pessoal que ela mantém), mas logo passamos por outra construção que a empolga. Para mim, não passa de um predinho branquela e feio, mas Raquel se entusiasma: “É um dos primeiros exemplos da arquitetura moderna em São Paulo”, diz, destacando que a área de serviço está na parte da frente do edifício.
Enfim chegamos a nosso destino, a esquina das ruas Vitorino Carmilo e Eduardo Prado, onde nasceu a anfitriã-convidada do passeio de hoje. “Isso não era assim”, diz ela, apontando para as grades e o arame farpado que cercam o prédio construído por um dos tios de Raquel.
“Além de nossa família, moravam aqui vários parentes. Eu vivia brincado com meus primos, subindo e descendo escadas no edifício.”
Depois, foi construir sua vida mundo afora. Vamo que vamo, que amanhã tem mais.
DIA 8 – PROJETO 460 KM POR SÃO PAULO
Clique no mapa para acessar informações mais detalhadas sobre o percurso
QUILOMETRAGEM DO DIA: 10 km
TEMPO DO DIA: 2h27min59
QUILOMETRAGEM ACUMULADA: 106 km
TEMPO ACUMULADO: 20h03min11
QUILOMETRAGEM A CUMPRIR: 354 km
DESTAQUE DO PERCURSO: praça Dolores Ibarruri, Vila Madalena, avenida Angélica, Minhocão
Interessante caminhada acompanhado da urbanista Raquel Rolnik, por importantes ruas e avenidas da nossa São Paulo.
Parabéns Raquel, por querer sempre fazer desta cidade uma cidade melhor!
Parabéns Rodolfo, pela deliciosa leitura.
Sabia que essa dupla iria aprontar. Parabéns aos dois. Sou fã pelo que defendem e praticam.