Corrida por flores e pela memória de um imigrante na Paulicéia
07/12/13 13:31“E aí, ô meu, vai querer sair daqui sem esse baguio?! Cai fora”, disse o “nóia”, vindo em minha direção. Ele se referia ao meu celular, com que fotografava um grupo de moradores de rua, aparentemente drogados, estirados no chão em frente ao terminal de ônibus Santa Isabel, no centro de São Paulo.
Magricelo, vestido em trapos sujos, o sujeito de cabelos oxigenados carregava um cachimbo de crack numa mão; a outra, erguia contra mim em seus passos ainda trôpegos. Era o mais acordado do grupo, tinha recém dado um soco na perna de um colega. Dificilmente conseguiria me agredir, acho eu, mas não esperei para ver: respondi qualquer coisa e segui caminho rumo ao fim da minha primeira jornada de hoje.
No sétimo dia de meu projeto de 460 km por São Paulo, para homenagear o próximo aniversário da cidade, não descansei. A lesão no joelho direito ainda está viva e dolorida, mesmo para caminhar; ainda sim, forcejo para botar um pé na frente do outro.
Pensei numa caminhada alegre para este sabadão, começando e terminando junto a flores e cores. Passo primeiro pelo mercado de flores da avenida Doutor Arnaldo, que já se prepara para o Natal. Quando cruzo por ali, vendedores ainda estão arrumando os pinheirinhos para as vendas do dia.
Ana Moura, 48, há 20 anos no Araçá (o cemitério quem empresta sua calçada para os floristas), não tem medo de fazer força, carregando pequenas árvores para deixá-las em exposição.
Desço a Consolação, onde tantas vezes corri durante disputas da São Silvestre. Ali no alto, perto da Paulistas, é a própria Rua dos Lustres: montes de lojas de lâmpadas, lustres, abajures e assemelhados. Algumas também vendem objetos de decoração, como os bibelôs inspirados em super-heróis (fico imaginando quem gostaria de ter um deles na sala… talvez os personagens da série televisiva “Big Bang Theory“…).
Uma, duas quadras à frente e já estou nos domínios do cemitério da Consolação, o mais antigo e chique da cidade. Sei que há muitas obras de arte por suas alamedas (saiba mais AQUI), mas prefiro investigar o que está de fora.
Em uma esquina, protegida do sol, dona Maria Lúcia lê jornal, ladeada por seus cachorrinhos, enquanto aguarda algum freguês. Aos 73 anos, está há mais de 50 em São Paulo e vende flores em frente ao cemitério da Consolação desde o final dos anos 1990. Pergunto a ela o que quer da vida, e ela me diz que não pretende colocar botox (clique na foto abaixo para assistir à breve entrevista).
Continuo em direção ao Centro. Desço a gloriosa Rego Freitas, onde fica o Sindicato dos Jornalistas e também a Matilha Cultural, que aos domingos realiza uma feira de adoção de cães sem dono. No Matilha, entrevistei o segurança, Edson, que contou um pouquinho sobre o trabalho da entidade (veja o vídeo AQUI) .
Descendo a rua tal qual quem escarafuncha na memória, lembrei que naquele primeiro quarteirão também funcionou, nos anos 1980, a gafieira Sandália de Prata (acredite, cheguei a dar umas rodopiadas no salão, apesar de minha proverbial falta de ginga).
Por ali desemboco enfim no Arouche, onde pensava em terminar a caminhada do dia, entre as flores. Agora já não há mais vendedores na rua, estão todos em uma gaiolona de vidro. De qualquer forma, o colorido e o cheiro são gostosos.
Talvez tanta beleza tenha me entusiasmado, fazendo com que resolvesse seguir mais um pouco. O Centro é cheio de memórias, não cabem nem mesmo no poço sem fundo internético. Sigo em silêncio meditabundo, passando por locais que frequentei ou sobre os quais escrevi.
Passo pelo palácio dos Campos Elíseos, hoje em obras, e me lembro da única vez que estive em seu suntuoso interior: fui cobrir a cerimônia de posse do ex-ministro Severo Gomes como secretário de Ciência e Tecnologia de São Paulo, lá no início dos anos 1980.
É quando encontro o grupo de homens atirados ao chão, imagem que se repete em vários pontos daquela área do centro, no entorno da chamada Cracolândia.
As ameaças do “nóia” oxigenado são vazias. Sigo meu caminho, circundando a praça Princesa Isabel, também usada por viciados em drogas, e vou em direção ao local onde se erguia a antiga rodoviária de São Paulo. O prédio tinha telhado e coberturas em acrílico colorido, e as paredes eram cobertas de pastilhas cerâmica em que predominava o amarelo.
Foi lá que coloquei o pé na cidade de São Paulo pela primeira vez. Vinha para uma reunião clandestina do movimento estudantil, em meados dos anos 1970, e era um completo capiau.
Desci do ônibus sem conhecer nada e fui obrigado a cometer uma infração às regras de segurança: puxei conversa um sujeito que eu conhecia e que, por certo, vinha participar do mesmo encontro. Por coincidência, chegamos os dois no mesmo ônibus.
Tínhamos passado a viagem toda nos evitando, fingindo que um não conhecia o outro. Éramos de grupos diferentes, que estavam em algum tipo de negociação na época. A necessidade, porém, acabou sobrepujando os cuidados: faltavam horas para os nossos “pontos”, como chamávamos os locais de encontro e acabei indo para a casa de uma amiga do sujeito.
No fim deu tudo certo.
No lugar de meu primeiro porto paulistano, há hoje terreno baldio cerca. Um campo de futebol improvisado, lixo na grama e no areião.
Encostada à cerca de arame, uma favela cresce. Eu filmo um pouquinho os barracos (veja o vídeo AQUI) e dou tchau. Vamo que vamo.
DIA 7 (primeira etapa) – PROJETO 460 KM POR SÃO PAULO
Clique no mapa para acessar informações mais detalhadas sobre o percurso
QUILOMETRAGEM DA ETAPA: 8 km
TEMPO DA ETAPA: 1h49min27
QUILOMETRAGEM ACUMULADA: 90 km
TEMPO ACUMULADO: 16h50min21
QUILOMETRAGEM A CUMPRIR: 370 km
DESTAQUE DO PERCURSO: comércio de flores do cemitério do Araçá e do largo do Arouche, área da antiga rodoviária de São Paulo
PS.: Meu dia não terminou. No final da tarde deste sábado, sétima etapa de meu percurso, participo de uma corrida em benefício do projeto Arrastão. Mais tarde coloco no ar o mapa da corrida e totalizo os dados do dia.
SEGUE O BAILE. A corrida do Projeto Arrastão (saiba mais sobre a prova AQUI) foi muito legal, ainda que cheia de meandros: com cercas, os organizadores criam voltas artificiais na praça Charles Miller, a fim de que o percurso seja cumprido. Ninguém dá muita bola para a repetição de trajeto porque é um evento beneficente, e a turma está para gostar, não para criticar.
Eu também gostei, apesar de ouvir meu joelho gritando no meu ouvido o tempo todo; foi um experiência nova, ficar mudando de passada cada vez que vinha uma dor, tentando ver se havia jeito de enganá-la. Pelo menos, consegui correr o tempo todo, ainda que muita gente não considere corrida uma média de 7min/km. Azar é deles, para mim é um esforço danado, me faz suar e alegra o coração. Então, confira abaixo a soma do sétimo dia.
DIA 7 (segunda etapa) – PROJETO 460 KM POR SÃO PAULO
Clique no mapa para acessar informações mais detalhadas sobre o percurso
QUILOMETRAGEM DO DIA: 6 km
TEMPO DO DIA: 44min51
QUILOMETRAGEM ACUMULADA: 96 km
TEMPO ACUMULADO: 17h35min12
QUILOMETRAGEM A CUMPRIR: 364 km
DESTAQUES DO PERCURSO: praça Charles Miller e interior do estádio Pacaembu
Rodolfo,
Parabéns pelo percurso concluído no Projeto Arrastão! Cuidado com esse joelho aí…..
Mó legal.”Para não dizer que não falei das flores”. Capiau, o termo deve ter muito leitor indo buscar tradução.
Muito bom tudo isto, um retrato fiel desta grande cidade. Continua firme estaremos aqui de olho neste belo trabalho .
Rodolfo,
Trajeto interessante, em meio à tantas flores, pinheirinhos de Natal, em contraste com o abandono de propriedades públicas, o descaso das autoridades…..cracolândia e favelas. Relato de mestre.
E agora?……o que ainda está por vir?…..
Aguardo o próximo capítulo da novela da vida.