Sonho de corredor voa em torno de Congonhas
06/12/13 16:49“Neste local, em 17 de julho de 2007, ocorreu a maior tragédia da aviação civil brasileira. Para os familiares das 199 vítimas do voo TAM JJ 3054, o solo onde está implantado este memorial é sagrado. A realização desta obra resulta da vontade e empenho das famílias atingidas e da iniciativa da Prefeitura de São Paulo de homenagear aqueles que hoje brilham no céu com estrelas e de lembrar –junto desta árvore sobrevivente– que a Vida é mais importante do que tudo.”
Esse é o texto gravado na placa de bronze instalada no anel de cimento que circunda a dita árvore no Memorial 17 de Julho, em frente ao aeroporto de Congonhas, em meio a uma área cheia de prédios altos e densamente povoada de São Paulo.
Estou do outro lado da rua, no encontro das avenidas Bandeirantes e Washington Luís. Ali começo meu sexto dia da jornada de 460 km para homenagear os mesmo tantos anos da cidade. Vou abraçar o aeroporto –quando cheguei aqui, há mais de 30 anos, bastava dizer isso para saber que se estava falando de Congonhas (o de Cumbica, em Guarulhos, só seria inaugurado em 1985 e o Campo de Marte, bem, era chamado diretamente pelo nome).
Começo a caminhada/corrida imaginando se o local, palco de tão dolorosas tragédias e de tantos desmandos, merece um abraço afetuoso. Fico em dúvida, mas lembro que ele é também porta de entrada de um bando de sonhos, como bem destacou o escritor gaúcho Moacyr Scliar (1937-2011) em belíssima crônica publicada pouco depois do acidente.
“Precisamos, de uma vez por todas, descobrir qual o caminho que, afinal, deve o nosso país seguir, para melhorar a existência de seus cidadãos. (…) precisamos nos reconciliar com nossos símbolos. Congonhas era, com suas limitações, uma imagem do progresso brasileiro, um lugar dinâmico, mesmo que confuso. Não pode ficar na história do país como um cenário de holocausto. Precisamos dar asas aos nossos sonhos. Mas precisamos assegurar que eles possam pousar em segurança”, escreveu em “A Tragédia Vista de Porto Alegre” (leia a íntegra AQUI).
Na época, a capital gaúcha, de onde o voo 3054 saiu para se esborrachar no cimento e no asfalto de São Paulo, ficou em prantos. Não havia pessoa com quem se falasse que não tivesse um parente, colega, amigo, filho ou filha de conhecido a chorar alguma perda. Jornais e serviços on-line produziram milhões de palavras para contar a tragédia, com números, gráficos, depoimentos, análises (leia AQUI um desses especiais, como os jornalistas chamamos esse tipo de produção).
Por certo, nada dá conta do sofrimento dos que ficaram. Muito menos uma corrida. Mas é o que tenho a oferecer.
Circundo Congonhas e vou descobrindo que seu perímetro está longe de ser um retângulo bem definido. Sua frente tem quase dois quilômetros, mas a primeira quebrada a esquerda, para marcar o limite da lateral sul, me mostra que o passeio será de emoções.
E dores. Meu joelho direito já deu uma melhoradinha depois de repetidas sessões de atendimento intensivo, mas nem de longe está disposto a enfrentar correndo qualquer quantidade de quilômetros. Vou explicando para ele que a vida é assim mesmo, algum sacrifício há que se fazer: corro um pouco, caminho outro tanto, vou a passos cuidadosos em qualquer lugar que se assemelhe a descida.
Não são poucas, como você pode perceber no gráfico abaixo. A volta completa em torno do aeroporto dá um pouco mais de 8 km, incluindo idas e vindas em ruelas sem saída que pululam no entorno.
Pois o aeroporto não é circundado por ruas. Na maior parte do seu perímetro, prédios comerciais e, especialmente, casas e mais casas –às vezes, barracos—estão construídos diretamente colados ao talude onde foi implantado o aeroporto.
Numa dessas quebradas, há até uma pequena favela, uma espécie de triângulo invertido deitado sobre o morro –a parte mais estreita está junto à calçada; conforme sobre o morro, mais se alarga a área em que se empilham as precárias construções, com microvielas por onde escorre esgoto…
O enclave é visto do alto por grande prédio comercial; do outro lado, casinhas de classe média se enfileiram na rua simples. Quanto mais ando, mais me convenço de que o aeroporto de Congonhas é uma excrescência, não cabe mais na urbe de hoje.
Deixo o sonho voar. Imagino que, depois de 77 anos de operações (saiba mais AQUI), Congonhas bem que poderia se aposentar. Aquela maravilhosa área de mais de 1,6 milhão de metros quadrados (semelhante ao terreno do parque Ibirapuera) seria então entregue ao público.
Em vez de estacionamento caríssimo, barulho e confusão, um parque com bibliotecas, cinema, área para shows, locais para caminhadas, brinquedos para a criançada… Êta, nóis!!
A realidade é menos alegre: encaro o trânsito e as buzinadas dos motoristas impacientes. Completo a volta e sigo um pouco mais além, circulo pela praça que funciona de teto do novo prédio do estacionamento e encontro um quero-quero, pássaro-símbolo da gauchice, mas que, como os gaúchos, está espalhado por todo o Brasil.
Cruzo a movimentada Washington Luís usando a passarela de pedestres, driblo obras na região e volto ao local onde caiu o 3054, para me reencontrar com o Memorial.
No caminho, lembro de outra tragédia de Congonhas, que ficou conhecida como a queda do Fokker 100. Cerca de dois minutos depois da decolagem, o avião desabou, caindo sobre casas próximas ao aeroporto: morreram os 96 passageiros e tripulantes e ainda três moradores das casas atingidas (saiba mais sobre o desastre AQUI).
Então dou adeus às vítimas do voo 3054 e, de carro, sigo até a região onde caiu o outro avião, também da TAM (meu cronômetro fica desligado no trajeto, se algum engraçadinho se deu ao trabalho de engendrar aleivosias…).
Sei que o caso está vivo na memória de muitos, pois até gerou a criação de uma entidade de parentes de vítimas de acidentes aéreos (saiba mais AQUI). Na rua Luís Orsini de Castro, porém, falo com um e outro e me parece que a lembrança do desastre não é tão presente (percepção semelhante teve a reportagem da TV Folha, veja vídeo AQUI). Enfim encontro um senhor que me mostra onde aconteceu a queda.
O Fokker 100 bateu em um prédio de dois andares e depois atingiu várias casas da Orsini de Castro. Hoje, não há –ou, pelo menos, eu não vi— sinais do acidente. Corri várias vezes a rua de cima a baixo e não notei placa, memorial ou qualquer outro registro do caso que movimentou a região.
O que não muda minha opinião, de que o aeroporto deveria ser tirado do coração da cidade. Com certeza, não fui o primeiro nem serei o último a desenhar projetos nas nuvens de fumaça deixadas pelos aviões de por lá circulam. Não faz mal. Sigo correndo. Vamo que vamo!
DIA 6 (primeira etapa) – PROJETO 460 KM POR SÃO PAULO
Clique no mapa para acessar informações mais detalhadas sobre o percurso
QUILOMETRAGEM DO PERCURSO: 12 km
TEMPO DO DIA: 1h49min01
QUILOMETRAGEM ACUMULADA: 81 km
TEMPO ACUMULADO: 14h48min56
QUILOMETRAGEM A CUMPRIR: 379 km
DESTAQUE DO PERCURSO: aeroporto de Congonhas, Memorial em homenagem às vítimas do voo TAM 3054
DIA 6 (segunda etapa) – PROJETO 460 KM POR SÃO PAULO
Clique no mapa para acessar informações mais detalhadas sobre o percurso
QUILOMETRAGEM REALIZADA: 1 km (total do dia: 13 km)
TEMPO DO PERCURSO: 11min58
QUILOMETRAGEM ACUMULADA: 82 km
TEMPO ACUMULADO: 15h00min54
QUILOMETRAGEM A CUMPRIR: 378 km
DESTAQUE DO PERCURSO: rua em que caiu o voo TAM 402
Muito interessante este olhar lançado sobre esta maluca megalópole a partir de um atento “corredor”. Corredores, apressados, desinteressados e desmemoriados somos todos afundados na insanidade cotidiana desta cidade adoentada. Parabéns, Rodolfo! E obrigada por partilhar conosco esta experiência tão formidável!
Você tem fé ? Vamo junto e misturado.
Aêeeeee Rodolfo! Então você veio “voar” hoje aqui bem pertinho de casa, hein?
Ainda me lembro da tragédia que ocorreu com o JJ 3054, eu estava bem próxima ao local, naquele dia impressionante. Foi além do que podemos chamar de, simplesmente, horrível.
O Aeroporto de Congonhas tem lá seus encantos ainda, mas concordo com você no que diz respeito aquele estacionamento, com uma área tão mal aproveitada e que a população poderia estar utilizando de uma forma ou de outra.
Parabéns pelo relato de hoje…..quem sabe, você chega mais pertinho ainda aqui de casa (talvez para falar do autódromo de Interlagos?….)
Aguardando as próximas aventuras de Rodolfo Lucena 🙂