Em caminhada, maratonista descobre desafios e conquistas de Heliópolis
04/12/13 19:21“Não quero mais morar em barraco, não posso mais morar em barraco, NÃO VOU mais morar em barraco!”, gritava para si mesmo, em silêncio, a menina de 17 anos, saindo da casa pobre em que morava com pai, mãe e quatro irmãos, amontoados todos em pequeno espaço. Não chorava: caminhava quase em desespero pelas vielas de chão batido até que viu ao longe uma pequena multidão.
Aprochegou-se e ainda ouviu uma jovem senhora de sotaque nordestino e fala decidida dizer: “A terra é nossa!”, fechando um discurso em que convocava a favela a lutar por melhores condições de vida e moradia. “É com esses que eu vou”, pensou a garota, então não chorosa nem raivosa, mas determinada.
Já lá se vão mais de 30 anos –33, para ser exato. Antonia Cleide Alves hoje tem casa que ajudou a construir. De certa forma, é herdeira daquela paraibana que conduzia as lutas comunitárias nos anos 1980: há décadas militante de movimentos populares, está no segundo mandato como presidente da Unas, a União de Núcleos, Associações e Sociedade de Moradores de Heliópolis e São João Clímaco.
Foi ela a minha anfitriã de hoje, me levando pelos caminhos da maior favela de São Paulo –comunidade carente, no dizer politicamente correto. No terreno de 1 milhão de metros quadrados, vivem cerca de 220 mil pessoas, segundo a líder comunitária –o censo oficial, contando apenas os bolsões irregulares, dá números diferentes, cerca de 40 mil moradores.
Cheguei pouco depois das sete horas, muitos ainda saíam para pegar ônibus na Estrada das Lágrimas, uma das avenidas que limitam a comunidade. Partindo de uma das instalações da comunidade, quase na entrada de Heliópolis, Cleide me leva para o quarto dia de meu percurso de 460 km por São Paulo.
Cada metro da favela esconde e revela uma história de dor e luta. “Aqui eram os barracões onde a gente vivia”, diz ela, apontando para um prédio retangular azul e cinza, o primeiro Cingapura da comunidade (acima). Mais para a frente, outro conjunto se ergue onde antes era só lixo ou terreno baldio.
E assim vamos, percorrendo ruas asfaltadas e mal traçadas, entrando por becos e vielas de uma comunidade que está cada vez mais organizada: tem escolas, creches, biblioteca –com acervo escolhido por Antônio Cândido–, áreas de atendimento médico, postos policiais.
Tudo resultado de lutas dos moradores, que muitas vezes tiveram de enfrentar armas de capangas ou da polícia. “Os grileiros diziam que a gente tinha de pagar aluguel”, conta Genésia Ferreira de Miranda, 56, que chegou à favela em 1979 e logo começou a organizar outras mães de família em defesa da posse da terra.
Foi o discurso de Genésia que Cleide ouviu, há 33 anos. Era uma das primeiras assembleias para mobilizar os moradores, o embrião da hoje poderosa Unas. (Confira AQUI um vídeo que fiz com Genésia)
Na época, a terra não tinha dono mesmo. Fora de propriedade do conde Sílvio Álvares Penteado, que gostava de carros e balões –foi o primeiro homem a voar sobre São Paulo. Nos idos de 1920 a 1940, empregados do aristocrata paulistano viviam em 36 moradias construídas nas glebas da região sudeste da cidade. Já em 1942, porém, as terras são compradas por um instituto de previdência e, ao longo dos anos, acabam em mãos do governo federal.
No início dos anos 1970, em plena ditadura militar, Heliópolis começa a ser uma espécie de depósito de favelados. Para ali são transferidas 153 famílias que a Prefeitura desalojara de uma comunidade em Vila Prudente. Mal chegam, tratam de lutar pela vida; aos poucos, viceja o processo de união: hoje a comunidade abriga, em casas de material, filhos e netos daqueles pioneiros.
O cabeleireiro Silas Santos, 25, nasceu ali mesmo. Hoje não estava trabalhando: esperava o andamento da reforma que seu pai, um dos veteranos de Heliópolis, fazia nas instalações de seu salão de beleza.
Ele só tem elogios para a comunidade, mas há quem tenha reclamações fortes a fazer. Uma comerciante se esconde da fotografia enquanto reclama do barulho que festeiros fazem em noitadas de som alto e muito consumo de bebidas e drogas numa viela onde se veem espalhados cartazes avisando “Proibido som alto”.
Em vez de chamar a polícia, em muitos casos os moradores preferem ficar quietos, temendo eventuais represálias de traficantes. “O que a associação faz é tentar ocupar os locais, fazer projetos nos terrenos onde há mais problemas”, diz Cleide.
Um exemplo é a casa da Criança e do Adolescente, que recebe jovens fora do horário escolar. É lá que encontro Neguinha da Unas, moradora da região desde 1983. “Quem me trouxe foi Dona Chica da Vila Prudente”, explica ela enquanto informa sua atividade de hoje: “Faço políticas públicas”. De fato, é uma das candidatas da entidade ao Conselho Participativo Ipiranga.
Seguimos a jornada, e o fôlego de Cleide me impressiona. Fala sem parar enquanto caminha, o que parece pouco comum para uma trabalhadora sedentária –além de dirigente comunitária. Ela explica que não chega a fazer esportes regularmente, mas participa, como caminhante, da corrida anual que a comunidade organiza: “Faço quatro quilômetros em uns 40 minutos”, diz.
Seus feitos atléticos, porém, parecem não lhe importar. O que valem são as conquistas conjuntas. “Isso aqui era uma lagoa”, aponta. Urbanizado, o terreno roubado ao esgoto hoje tem casas e a sede da rádio comunitária, a Heliópolis FM, também fruto do trabalho coletivo dos moradores.
“A antena foi eu que construí”, diz Francisco Sabino Soares, 63, que dirige pela viela em direção ao trabalho. “É o melhor serralheiro da região”, elogia Cleide. Logo entramos na rádio.
Naquela hora, o prédio é ocupado por apenas uma pessoa, que trabalha sem parar no estúdio, se dividendo entre o microfone, o telefone, a operação de som e do computador: Liberalino Santos, 61, coordenador de programação e produtor de “Roberto Carlos e Convidados”.
Basta sair e avisto exemplo de empreendedorismo e bom humor, a hamburgueria MEC Favela, que sofreu até processo por causa do nome, segundo me diz Cleide. Pelo jeito, sobreviveu às querelas jurídicas.
Nos letreiros, procura deixar claro que não tem nada a ver com algum outro estabelecimento cujo nome porventura soe parecido; trata-se de uma sigla que significa Minha Estrela Central – Favela lanches.
Para Cleide, a “estrela central” é outra: a filha Rafaela, mais velha de seus rebentos (tem ainda Gabriel, que está entrando na adolescência). É ela que nos abre a porta da casa onde mora a família.
Orgulhosas, as duas posam numa escada do prédio, que hoje tem dois pavimentos, construídos ao longo de anos, mas já foi mais modesto. “Construí minha casa no mutirão de 1992. Foram 192 famílias, cada uma com um terreno de 5 m por 15 m, 75 metros quadrados. Ninguém ganhou dinheiro, a prefeitura dava os matérias, tudo pré-moldado, para fazer casas de 24 metros quadrados.” Saímos, não sem antes ela voltar a mostrar Rafaela, dizendo baixinho, não sem sorrir: “Essa não nasceu em barracão”.
Claro que não é vergonha nenhum nascer em barracão, palafita ou molambo qualquer. A frase de Cleide me pareceu pontuar uma vida de lutas, de conquista de condições melhores para viver e construir família.
É o mesmo sorriso da vendedora de calçados Vanessa Marlen da Silva, 33, que há três meses abriu uma lojinha em frente a um riachão hoje parcialmente canalizado, onde há algum tempo se amontoavam casebres de papelão, madeira velha e zinco. Vanessa morava em um deles; hoje vive em apartamento num dos prédios redondos projetados por Ruy Ohtake (saiba mais aqui). E faz sucesso vendendo sapatos de saltos estratosféricos, como o modelo “meia pata” que mostra na foto acima.
Os prédios redondos são emblemáticos: simbolizam a um só tempo luta e conquista. Também demonstram que as campanhas de Heliópolis não são apenas da comunidade, mas pertencem a toda São Paulo, a todos. E há ainda muita mobilização necessária, diz Cleide neste vídeo AQUI, em que também explica a origem das lágrimas da estrada que serve de limite a Heliópolis.
Com uma visita à tal figueira-benjamina que testemunhou adeuses de famílias paulistanas em tempos idos, encerro meu caminho na comunidade. Com certeza, não conheci a face mais violenta da região, que há poucos meses foi atingida por incêndio de origem duvidosa que deixou três mortes (leia mais AQUI). Aliás, já no ano passado um dos líderes da Unas alertava sobre o estranho caráter desses sinistros (confira AQUI).
Mas isso não me apoquenta agora. A vida vale mais. Saio entusiasmado com os exemplos de construção de cidadania que vi ao longo de quase três horas de caminhadas, paradas e conversas. Vamo que vamo!
DIA 4 – PROJETO 460 KM POR SÃO PAULO
Clique no mapa para acessar informações mais detalhadas sobre o percurso de hoje
QUILOMETRAGEM DO DIA: 6 km
TEMPO DO DIA: 1h58min27
QUILOMETRAGEM ACUMULADA: 54 km
TEMPO ACUMULADO: 10h19min53
QUILOMETRAGEM A CUMPRIR: 406 km
DESTAQUE DO PERCURSO: passeio pela comunidade Heliópolis, área na zona sudeste de São Paulo com 1 milhão de metros quadrados e 220 mil moradores
como li ( atrasada), pois Seu Rodolfo corre….acabei lendo 2 post ao mesmo tempo……o luxo constrastando com a luta de um povo sofrido, porém, guerreiro!
Interessante essa “luta” onde a prefeitura deu tudo e ainda dá, aliás, a prefeitura não, todos os cidadãos dessa cidade, essa favela é o exemplo de uma sociedade de frouxos e indolentes onde perpetuam gerações de descompromissados com a vida. É um lado triste da bandalheira em que a sociedade está se transformando, os folgados de um lado e do outro os que pagam por essa folga, agradeço a você Rodolfo por mais uma prova inconteste do que veremos nos próximos tempos. Parabéns por mais uma etapa. ass. rodolfo shosholoza e peregrino.
Muito interessante seu ponto de vista, Rodolfo. Aliás, seu nome rima com o meu. É isso aí: não à miscigenação e colaboração e sim à segregação social. Você vai muito longe com este pensamento.
Ah! Este foi o melhor de todos! Gostei de tudo, principalmente dos prédios redondos!
Rodolfo,
A comunidade Heliópolis é um exemplo de organização e ajuda mútua. Gostei muito por você tê-la incluído em seu roteiro e ter oferecido à nós, leitores, a oportunidade de conhecer detalhes da vida dessas pessoas batalhadoras, que vivem em meio à sentimentos que se misturam ao sofrimento, à paixão, à alegria, aos encantos e desencantos da vida.
Você ainda tem chão à beça prá rodar, então…..vamos lá para o próximo passo! Tome fôlego novamente…..fé e confiança!
E eu indo junto. O que temos para amanhã?
rsrs