Corredor ‘abraça` Memorial da América Latina com suas passadas
02/12/13 15:48Hoje saí de casa para abraçar o Memorial da América Latina. Não com meus braços, que não alcançariam nunca os mais de 80 mil metros quadrados em que o conjunto de prédios de uso cultural está instalado, na Barra Funda (região central de São Paulo). Mas com minhas passadas, circulando um a um os edifícios do complexo.
Começaria, por certo, com o auditório Simon Bolívar, atingido por incêndio na semana passada. Seria, pensava eu, uma forma de render homenagem ao local que já abrigou tantos espetáculos e eventos importantes para a cidade e para o país.
A largada do segundo dia do projeto 460 km por São Paulo, que festeja os 460 anos da cidade a serem completados no próximo dia 25 de janeiro, aconteceu pouco antes das 7h, na esquina da avenida Sumaré com a Francisco Matarazzo. Para ser exato, liguei meu cronômetro e o GPS na praça Souza Aranha, que é exemplo de mais uma das ironias da cidade.
O nome da praça remete a uma famosa família de Campinas, cujo patriarca foi Joaquim Egídio de Souza Aranha –saiba mais sobre ele AQUI. Porém a portentosa estátua que ali fica é a do conde e capitão de indústria Francesco Matarazzo (saiba mais sobre ele AQUI).
Rindo comigo mesmo do entrevero de figurões, atravesso a avenida em direção à estação rodometroferroviária da Barra Funda (alguns dos serviços a têm como Palmeiras-Barra Funda). Aquilo é uma barafunda, com o perdão do trocadilho: só nos ônibus intermunicipais circulam em média 40 mil pessoas por dia. E há ainda metrô, trens e ônibus municipais.
Quem aproveita a multidão são os prestadores de serviços: de manhã cedinho, já chegam os vendedores de café, bolo e outras guloseimas que a turma em correria vai consumindo. Há também fedor geral, indicando o uso de algumas áreas como banheiro público improvisado.
Mais alguns metros e encontro o Memorial. Primeiro, caminho pelo entorno, testando se vai ser possível cumprir meu plano inicial, de percorrer o perímetro completo do terreno. Não dá, mas descubro uma bela grafitagem nos baixos do viaduto Antártida.
Volto ao Memorial, caminhando sempre, porque o meu primeiro dia de corrida deixou dolorida a musculatura das panturrilhas e das coxas. Há que relaxar um pouco.
Atingido por fogo cujo início ainda não é conhecido (leia AQUI), o auditório Simon Bolívar está fraturado, dolorido, escangalhado. Por dentro, nem dá para imaginar a situação (confira AQUI um quadro geral do estrago). Por fora, o prédio gigantesco, que tinha confortáveis cadeiras para mais de mil pessoas, não parece ter sofrido grande perda. A marca mais evidente do estrago são vidros quebrados.
Por ali inicio meu abraço ao Memorial, que foi inaugurado em 1989, desenhado por Oscar Niemeyer, príncipe da arquitetura brasileira, com base em projeto cultural de Darcy Ribeiro (saiba mais sobre o conjunto AQUI).
Circulo o auditório Simon Bolívar, merecida homenagem ao líder de lutas libertárias na América Latina (veja AQUI um documentário sobre a vida dele). O passeio acende minhas memórias: ali assisti a grandes shows, ali apresentei meus livros a colegas jornalistas, ali até estive no palco, canto a plenos pulmões que tudo estava bem (veja AQUI vídeo de apresentação do coral Fundap, do qual faço parte).
A passo acelerado, “abraço” prédio por prédio, fazendo uma volta em torno de cada um –o restaurante, a administração, a biblioteca, a sala de exposição onde no ano passado vi maravilhosas obras de Portinari… Encontro até uma pequena área de brinquedos para a criançada; ao lado dela, aparelhos parta que o povo da Terceira Idade faça seus exercícios. Estava tudo vazio, o que talvez explique a tranquilidade com que o filhote de bem-te-vi esperou minha chegada. Até posou para a foto.
Com uma hora de caminhada, cinco quilômetros percorridos, o abraço de pernadas estava completo. Saí em busca de outros territórios.
Cruzando o viaduto Antártida, em que a área para pedestres é minúscula, vi que a situação melhorou um pouco, com a demarcação de faixa para ciclistas. Tudo longe do ideal, como dá para ver na foto abaixo, mas, pelo menos, acrescenta um pouquinho de proteção para os que não saem pela cidade de armadura de aço e gasolina.
Agora apresso o passo, troto, corro até. Estou na Marginal do Tietê, aproveitando um terreno onde há calçadas. Cruzar cada rua transversal é uma exercício de luta pela vida: nem pensar em atravessar na esquina, é preciso subir um pouco cada rua para evitar os veículos que acessam as artérias laterais em boa velocidade.
Com cuidado, passo pelos barracões da Gaviões da Fiel e continuo em frente, passando também pelas instalações do Centro Esportivo Brasil-Japão; além de abrir competições de beisebol (leia mais AQUI), é o único estádio fora do Japão com instalações oficiais para a prática do sumô, segundo diz este texto AQUI, da Prefeitura de São Paulo).
Não vi nenhum gordinho de fraldas (brincadeira, hein, turma do sumô), mas há muita sujeira na região. Terrenos baldios servem de depósito de lixo, mas, do outro lado da rua, enormes desenhos em prédios do conjunto habitacional Parque do Gato parecem dizer que os moradores da região gostariam que fosse diferente –e estão dispostos a batalhar por isso.
Construído em área onde antes existia uma grande favela, o conjunto tem nove prédios, com quase 500 apartamentos. Inaugurado em 2004, o conjunto recebeu em julho passado um “banho de tinta”: foi quando começou o projeto das supergrafites do pessoal do Revivarte (saiba mais AQUI).
Ainda que deem ao conjunto um ar mais divertido, claro que as ilustrações não conseguem mudar tudo. Ali do lado dos prédios está a favela do gato ou favela da ponte Estaiadinha, palco de seguidos incêndios nos últimos tempos. Um dos mais graves chegou a afetar a dita ponte, que está interditada ao trânsito (saiba mais AQUI).
Aproveitei para dar uma corrida no território vazio de carros. Trata-se de uma ponte que, para pedestres, liga o nada a lugar nenhum, pois é feita apenas para veículos: nasce no meio do asfalto da avenida do Estado e desemboca do outro lado do rio Tietê, na Marginal no sentido Ceasa (ou leste-oeste, genericamente).
Seu nome oficial é Governador Orestes Quércia, mas virou Estaiadinha por ser menor e “mais jovem” que a ponte Estaiada (ponte Octávio Frias de Oliveira, na certidão de nascimento), que fica do outro lado da cidade, sobre o rio Pinheiros. O apelido se refere estais, os cabos de aço que integram a estrutura da ponte.
Discussões engenharísticas à parte, aproveitei para curtir a vista da cidade e iniciei mais um trecho de corridinha para abraçar outro território incendiado.
A favela do Moinho é velha conhecida dos corredores. Fica no entorno do viaduto Orlando Murgel, que muitos de nós chamamos simplesmente de viaduto da Rudge, referência à avenida em que está plantado. Ali já foi um dos mais doloridos e complexos trechos da São Silvestre (ainda nem conferi como vai ser o percurso deste ano).
O corredor já tinha passado da metade da prova, gastara a empolgação inicial, e pegava ali numa subidinha longa e chata, da qual nem a chegada à plana Rio Branco dava alívio: o retão sem fim, na tarde quente e solitária, se transformava em novo desafio para o corredor.
Pois a favela ali de baixo, na qual hoje dei um abraço corrido, já foi vítima vários incêndios –em 2011, pertinho do Natal, ocorreram mortes (veja AQUI). Até há pouco tempo, o viaduto estava interditado, mas agora se presta à passagem.
Por baixo dele, há instalações da Prefeitura, um centro de reciclagem. E gente que mora como pode.
É o caso de Maurício Alves, 32 (de camisa verde), que até quatro meses atrás vivia em Osasco e trabalhava como forneiro de pizza, segundo me disse. Hoje recolhe material para reciclagem. Alguma coisa que encontra, usa como mobília ou enfeite da área onde está instado –com sorriso aberto, me ofereceu uma deteriorada escultura de um bandeirante barbudo, que achou parecido comigo.
Aceitei, contribuí com uns trocados para seu almoço de hoje, e perguntei o que acontecera para provocar tanta mudança na sua trajetória.
Ele abriu os braços, de um jeito meio desconsolado, meneou a cabeça, fez um sorriso de dúvida e nada falou. Seu corpo todo dizia, porém: “É a vida, né?”.
Pois é: é a vida. Segue o baile. Vamo que vamo.
DIA 2 – PROJETO 460 KM POR SÃO PAULO
Clique no mapa para conferir informações detalhadas sobre o percurso de hoje
QUILOMETRAGEM DO DIA: 15 km
TEMPO: 2h40min10
QUILOMETRAGEM ACUMULADA: 28 km
TEMPO ACUMULADO: 5h18min37
QUILOMETRAGEM A CUMPRIR: 432 km
DESTAQUES DO TRAJETO: Memorial da América Latina, conjunto habitacional Parque do Gato, ponte Estaiadinha, Favela do Moinho
PS.: Obrigado à minha filha Laura, que colaborou com parte da pesquisa para este texto, à Eleonora e ao motorista George Francisco Gomes, que deram dicas para eu planejar o percurso de hoje.
Prezado Rodolfo, esse foi o trecho do fogo, muito incêncio e muito calor. Acompanho entusiasmado sua epopéia. ass rodolfo shosholoza e peregrino
Me fez relembrar alguns pedaços de chão de São Paulo e outros são novos… Legal!
Maravilha de cenário, Rodolfo!
Estou “correndo” muito por aqui e nem sempre consigo acompanhar todas as suas aventuras no dia certo, mas estarei acompanhando sempre que me for possível.
Vá em frente, com muita garra, muita “gana”, respire fundo e…..manda ver!!!
Muito bom, Rodolfo! Adorei a iniciativa para conhecer mais a fundo nossa cidade a pé, com tantas informações culturais e históricas! Estou aguardando já o próximo dia!
Boa corrida!
As fotos de hoje ficaram ótimas! Canelas pra cima que amanha tem mais, abs
Isso aí, Rodolfo. Saudades do auditório Simon Bolivar, de tantas cantorias. Vamo que vamo, porque, como diz a canção, tudo vai dar certo .
Muito bom, Rodolfo,
Sou se Brasília e amo São Paulo. Essa São Paulo dos paulistas me emociona. Que venham os próximos textos!
Boa sacada o “pernaço” ao Memorial. Texto delicioso meu caro. Continue! Abraço!
Li seu relato e gostei muito. Podemos correr em percursos diferentes e conhecer melhor nossa cidade. Em 15km , quanta informação.
Conheci melhor nossa cidade.Valeu.
Que delícia de projeto e de relato. Eu me senti correndo junto. Belíssima ideia, Rodolfo. Fôlego e boa sorte na jornada.
Beleza de fotos e de corrida. Siga em frente. Força!