Mata, trilha, índios e pelada marcam largada do projeto 460 km por SP
01/12/13 17:32Numa manhã nublada, com ameaça de chuva, promessa de sol e névoa encobrindo os cocurutos das montanhas que cercam São Paulo, comecei hoje meu circuito de corridas em homenagem ao 460º aniversário da cidade.
A largada do projeto 460 km por São Paulo foi na cancela que marca a entrada ao Parque Estadual do Jaraguá, na estrada que leva ao pico: o topo da montanha é o ponto mais alto da capital paulista, com 1.135 m acima do nível do mar.
Às sete horas, em ponto ou quase, disse tchau para a Eleonora, minha mulher, abanei para a cinegrafista da TV Folha, Isadora Brandt, e queimei o chão. Não que tenha saído correndo de forma desabrida, pois sei de minhas limitações. Mas fui num trote decidido, de quem pretende chegar ao topo sem reduzir (pelo menos, é o que alguém pode acreditar vendo esse breve filme produzido pela Eleonora: clique AQUI).
Iria me encontrar com caminhos que trilhei há muitos anos: ali levamos nossas filhas quando ainda eram bem pequenas; por ali treinei, há quase dez anos, durante minha preparação para a maratona da Grande Muralha da China.
Mais do que tudo isso, iria me encontrar com os intestinos de São Paulo, pedaços de vida que não aparecem nos Jardins ou no espigão da Paulista. No percurso de hoje, conheci um cacique guarani de apenas 33 anos, que comanda a luta de seu povo pela demarcação de terras, única forma que veem de sair da vida miserável que levam, em barracos fedorentos e escuros, num terreno com esgoto a céu aberto e cães sarnentos aninhados entre a criança da tribo.
Percorri trilha perigosa, que me fez enfrentar medos e procurar garantias de segurança. Encarei pirambeira de asfalto, território livre apenas para carros e caminhões, em que calçadas são área acidentada, armadilhas para incautos transeuntes. E me diverti acompanhando instantes de um futebolzinho de várzea, a velha e boa pelada de domingo de manhã.
O início foi pelas perigosas curvas da Estrada Turística do Jaraguá. Dentro do parque, são pouco mais de 4,5 km de ascensão traiçoeira: nos primeiros metros, o aclive é leve, convida ao trote mais firme, acelerado até. Aos poucos, porém, a estrada e a montanha vão se revelando mais brutais, imperiosas, íngremes: as curvas se acentuam, o aclive fica mais pontiagudo. Com pouco mais de dois quilômetros de subida, já dá para começar a suar.
Em recompensa ao nosso esforço, a montanha oferece vistas da cidade. Do alto, temos a nossos pés prédios indústrias, edifícios, casas com piscina e favelas, estradas e ruelas. É o que anima a continuar, a buscar o topo.
E lá cheguei depois de mais de 40 minutos de trote, caminhada e paradas para fotos. Feliz, mas triste, obrigado a dar de cara com o envelhecimento e perda de performance –há dez anos, subia na maciota em pouco mais de 25 minutos. Enfim, chega de chorumela –confira meus comentários mais entusiastas e deprimidos neste videozinho AQUI.
Não há tempo para lamentos, o descanso deve ser breve. Tomo um pouco de água e me vou pela escadaria acima: no topo do topo do topo da cidade há 250 degraus numa gigantesca estrutura que suporta a principal antena do Pico do Jaraguá (há outras, cada uma com sua função específica ou várias, basicamente transmissão de mídia e de voz). Subo com cuidado, desço com atenção redobrada e daí me vou pela Trilha do Pai Zé, caminho mágico morro abaixo.
No topo do morro, não encontro vestígios do ribeirão Itaí –falha minha, talvez ainda esteja por lá. Gostaria de tê-lo visto: foi nele que Afonso Sardinha descobriu sinais de ouro por volta de 1580. O português caçador de índios se estabeleceu na montanha, onde a mineração começou cerca de dez anos mais tarde e foi até o século 19.
Aliás, dizem que há sinais dos caminhos que garimpeiros rasgaram na montanha. Não sei, não vi; talvez uma herdeira seja a Trilha do Pai Zé, que desce quase do alto do morro até o conforto da área mais “civilizada” do parque, onde há brinquedos para as crianças, estacionamento e lanchonete.
A trilha está muuuito mais bem cuidado do que quando a vi pela última vez (há um monte de anos…). Na época, ela estava interditada, em obras, mas mesmo assim um pequeno grupo de corredores desatinados desafiamos a escorregadia alameda.
Hoje, nada de aventuras. Fui a passo. No dia nublado, muito pouco gente no parque, menos ainda os que se arriscavam pelo caminho do Pai Zé. Segundo os registros oficiais, cerca de 10 mil pessoas visitam o parque nos finais de semana (é uma média, claro, pois aposto que hoje a visitação não chegou nem perto disso).
Muito ou pouco, o rol de visitantes já é atraente o suficiente para que se fale em cobrar ingresso ao local, questão que tem provocado polêmica. Em maio passado, o governador Geraldo Alckmin (PSDB) enviou à Assembleia Legislativa projeto que prevê a concessão à iniciativa privada, por 30 anos, dos parques do Jaraguá e Cantareira, na capital, e de Campos do Jordão, na serra da Mantiqueira.
Não há nada regulamentado ainda, mas já houve protestos. Em junho, cerca de 2.000 pessoas se reuniram na região em um ato público pacífico contra o que os manifestantes consideram ser “privatização” do parque (saiba mais AQUI).
Foram protestos –mas de outro tipo—que me levaram a descobrir que, quase em frente ao parque, existe uma aldeia de índios guarani. Na pesquisa que realizei antes de começar a jornada de hoje, encontrei reportagem falando sobre manifestação realizada por índios “paulistanos”.
“Índios Guarani fecham rodovia Bandeirantes e convocam para ato”, era a manchete do texto (leia mais AQUI). A principal reivindicação era a demarcação de terras.
E essa continua sendo a grande campanha da tribo, me disse na manhã de hoje o cacique Weramirim (raio pequeno) (foto), com quem conversei na aldeia que se amontoa na rua Comendador José de Matos, que desemboca na Estrada Turística do Jaraguá.
No pequeno terreno, 127 famílias –cerca de 700 pessoas—vivem em condições miseráveis. Há choças, choupanas, barracos, casas precárias. O esgoto rola pelo chão batido, cachorros, gatos e galinhas circulam entre a criançada que brinca com bonecos produzidos pela própria tribo.
Tais condições não são de hoje: já era assim, ou quase, nos anos 1990, quando o sertanista Orlando Villas-Bôas visitou o local, segundo informa este texto AQUI.
Nascido em uma aldeia guarani em Mangueirinhos, no Paraná, o cacique Nelson (seu apelido em português) tem 33 anos e comanda o grupo desde o ano passado –antes, era uma mulher a líder da tribo.
“Não esperava ser cacique. Eu tinha muito conhecimento da nossa cultura. Tenho cabeça de dar ideia, de fazer projetos, de manter nossa cultura. A comunidade resolveu fazer um voto para eu cacique na aldeia.”
A campanha principal é a luta pela demarcação das terras, diz ele. “Aqui está muito atrapalhado. A ampliação foi feita, está no processo, e a gente está esperando resposta dos políticos e da Funai”.
Enquanto a demarcação não chega, eles procuram lutar contra outros problemas. Os líderes têm dito à comunidade para não comer as galinhas que por lá ciscam –no início, foram criadas para servir de alimento, mas hoje catam comida no esgoto e não servem para a mesa humana.
Tentam controlar os cachorros e gatos, que são abandonados na região e acabam levando doenças para crianças. Além disso, vêm procurando reduzir a sujeira da aldeia –estava marcado para hoje um mutirão com voluntários que apoiam os guaranis para fazer uma limpeza na área.
A conversa estava boa, mas eu precisava seguir. Agradeci a entrevista, desejei sorte e sucesso e parti para o asfalto.
Segui pela mesma rua da aldeia, passando por baixo da rodovia Bandeirantes –a mesma que fora interrompida por manifestação dos guaranis—para tomar a direção da estação ferroviária do Jaraguá, inaugurada em 1891.
Na minha cabeça, peguei o caminho certo, mas minhas passadas comprovaram o contrário. Depois de mais uma lomba enorme, topei com a estação Vila Clarice. Êta nóis! Tive de voltar um montão, e o sol já tinha vencido, pelo menos parcialmente, sua briga com as nuvens matutinas.
Eu que não consegui vencer minha batalha no asfalto: ruas estreitas, ainda que chamadas de avenidas, com mão dupla para o trânsito e zero espaço para o pedestre me obrigaram a caminhar. Eu já estava bem cansado e preferi não me arriscar no espaço reduzido deixado para os transeuntes.
Em contrapartida, logo tive uma boa satisfação. Passei por um murão caiado, que cercava um campinho de futebol –eram terras do Jaraguá Futebol Clube, informava um cartaz. Pois uma pelada estava em andamento, e por alguns minutos acompanhei a guerra no gramado. A torcida era pequena, mas um trio de garotos empoleirados em um telhado criticava lance por lance…..
Queria agora era terminar meu dia, minha manhã, meu primeiro trecho desta jornada de 460 km. Para mim, não havia contramão, como apontavam poderosas placas em uma via…
O que eu via era a confusão urbana, a cidade erguida sem planejamento, ocupando espaços e transformando morro em concreto…
Até que cheguei ao meu destino. Depois de 13 quilômetros corridos, caminhados, suados, estava enfim na estação de trem, uma das mais antigas da cidade, hoje incorporada à linha Rubi (saiba mais AQUI).
Travei o cronômetro, registrei a aventura. E fui de volta para casa, recarregar as energias. Tive uma recepção festiva.
É só o começo. Abraço, vamo que vamo!!!!
CONFIRA O PERCURSO DE HOJE
Clique no mapa para abrir página com informações detalhadas sobre o primeiro trajeto de minha jornada de 460 km por São Paulo
QUILOMETRAGEM DO DIA: 13 km
QUILOMETRAGEM ACUMULADA: 13 km
QUILOMETRAGEM A CUMPRIR: 447 km
DESTAQUES DO PERCURSO: Estrada Turística do Jaraguá, Pico do Jaraguá, trilha do Pai Zé, aldeia guarani do Jaraguá, estação de ferro do Jaraguá
Rodolfo,
Parabéns pelo projeto, que Deus o abençoe lhe dando muita força e disposição para completá-lo. Desejo-lhe saúde e sorte. Flávio
Não posso dizer outra coisa senão elogia lo,vc é inspiração para todo e qualquer atleta amador!!!parabéns!!!coragem!!!força!!!!
Rodolfo! Boa sorte nesse projeto-loucura! Adorei a ideia!
bj
Rodolfo esse seu projeto deveria ter sido divulgado com mais antecedência e vc deveria estar acompanhado de pessoas que adoram fazer isso que vc está fazendo. Parabéns por sua ideia e pelo seu relato. Fotos e filmes mostram a realidade do seu percurso e incitam a fazermos algo semelhante em nossa cidade. mais uma vez parabéns pela criatividade e pelo esforço e dedicação! Um grande abraço de um amigo corredor.
Sensacional a iniciativa e a coragem!
Estarei acompanhando, sucessos!!!!!!!!!
Sandro (Curitiba)
Muito legal Rodolfo! Corrida também é cultura, obrigado pela aula! Eu não sabia da questão dos índios, achei bastante triste e injusto. Eu fui no Jaraguá algumas vezes, bateu saudades!
Parabéns pelo projeto 460 km por São Paulo. Ele é inspirador! Sucesso em sua jornada!
Muito bom, inspiração boa e vai fazer em qtos dias, Rodolfo? Força !!!
Rodolfo, conheço essa trilha há muito tempo mas não tinha conhecimento de tantos detalhes. Parabéns pelo relato e tenha a certeza absoluta de que ficarei “no seu pé”. Um grande abraço.
Rodolfo, conheço essa trilha há muito tempo mas não tinha conhecimento de tantos detalhes. Parabéns pelo relato. Um grande abraço e tenha a certeza absoluta de que ficarei “”no seu pé””.
Rodolfo, parabéns pela aventura e pelo relato tão detalhado da visita ao parque do Jaraguá. Estarei por aqui acompanhando os próximos 447 km….Curioso para saber os próximos passos…..abs
Rodolfo,
Fiquei encantada com a descrição dessa primeira etapa da sua aventura no Pico do Jaraguá. Cara, 460 km. em um lugar com história prá contar, paisagens belíssimas e outras nem tanto….isso é para os privilegiados. Vá em frente, força total, Deus é contigo!
Pensei que o relato fosse ser de um corredor/jornalista e, de repente me deparo também com uma bela aula de Geografia urbana , História . Surpresa com os terras indígenas ainda a serem demarcadas em plena metrópole. Há cenários da cidade grande tão desconhecidos que…agora é esperar por amanhã. Para saber e aprender mais!!
PARABÉNS RODOLFO , ESTAREI TE ACOMPANHADO NO BLOG !!!!! MUITA FORÇA!!!!
Sensacional, vou fazer esse percurso quando for à Sampa. É muita coisa junta num pedacinho de cidade, hein.
Parabéns “Dean Karnazes” dos Pampas e da Paulista.
Estarei te acompanhando.
Boas correrias.
Abraços, Fernando Gonzaga
adorei……sigamos! vc é um exemplo!
Excelente relato meu caro. Melhor forma de comemorar o aniversário dessa metrópole correndo. Parabéns e força!
Grande Rodolfo! Estarei acompanhando cada passo de suas inspiradoras corridas rumo aos 460km. Nada como uma pirambeira para iniciar com o pé direito e receber as boas vibrações de toda a cidade que hoje esteve aos seus pés! Firmeza, fé, foco e sebo nas canelas! Abç