Psicóloga analisa perfil de atletas de corridas de obstáculos
06/11/13 09:22Talvez você já tenha esquecido, mas, na semana passada, a Folha publicou ampla reportagem de minha lavra abordando a florescente modalidade das corridas de obstáculos. Para produzir aquele texto, conversei com muita gente. Além de especialistas no assunto e organizadores de provas, conversei com psicólogos para tentar entender a motivação desse povo que mergulha na lama, corre sobre fogo e se arrasta sob cercas de arame farpado.
A psicóloga ANA LÚCIA GODOY, que trabalha com atletas profissionais e amadores de diversas modalidades e é especialista em psicologia esportiva, gentilme respondeu a algumas questões que lhe enviei por e-mail. Vamos a elas.
1. O que leva alguém a, voluntariamente e pagando, participar de um tipo de evento como esse?
Os indivíduos que procuram voluntariamente competições como essas possuem motivos variados: o desafio, a superação, a paixão pelo esporte, inserção num grupo, o reconhecimento, a pura satisfação, motivos de forte apelo emocional (alguém em sofrimento deseja que o atleta realize o “feito”), ser uma fonte de inspiração para outros, ser um exemplo, ter uma causa e também se divertir.
Assim como há pessoas que escolhem profissões mais estressantes que outras (policiais, bombeiros etc.), esses atletas gostam da sensação de se desafiarem em eventos que exigem maior esforço físico, maior controle emocional, buscando situações extremas do limite físico e psicológico.
Não lhes basta ter um objetivo “comum”, precisa ser um objetivo extraordinário.
A paixão que desenvolvem pela atividade, o envolvimento com ela e a necessidade de estar em constante movimento gera um prazer que para muitos pode ser visto como sofrimento. O prazer deriva de executar sua atividade o melhor e mais perfeito possível por mais difíil que seja.
São pessoas que gostam de ter contato com a natureza e sentem-se vivendo intensamente.
Indivíduos que participam deste tipo de evento, normalmente, são autorreferentes, ou seja, a referência para o desempenho são eles proprios. Buscam se superar, usando como referência seus desempenhos anteriores, competem consigo mesmos mais do que com outros.
2. Qual o perfil desse tipo de atleta?
Muito tem-se pesquisado a respeito do perfil desse tipo de atleta.
São pessoas que têm mais predisposição a desenvolver habilidades emocionais como concentração, autocontrole, controle da ansiedade e do stress, auto motivação e confiança.
Estes indivíduos também possuem um alto grau de competitividade, seja consigo ou com outros. Quanto maior a tensão, maior é o desejo de testar essas habilidades. Situações estressantes tornam-se desafios a serem conquistados.
O estresse corresponde a uma reação fisiológica através da qual o organismo se prepara para enfrentar um dado perigo, ou uma situação vista como perigosa ou então para fugir dela.
Para estes indivíduos, as reações físicas típicas do estresse se transformam em reações psíquicas agradáveis. não sendo, portanto, nocivas à saude.
A adrenalina, gerada pelo estresse, passa a ser um estimulante natural, preparando o corpo para a ação, executando seu plano estratégico com disciplina e sabendo que o medo pode ser controlado.
Outra característica desses indivíduos é a motivação intrínseca. A motivação intrínseca é a força que vem de dentro da pessoa para realizar a tarefa desejada. Vem do prazer que alguém obtém da tarefa em si, do comprometimento, da dedicação, da satisfação resultante de completar uma tarefa ou se esforçar para tal.
As pessoas intrinsicamente motivadas são mais propensas a serem focadas no objetivo e gostam de desafios que levam a um bem estar.
Uma outra abordagem que diz respeito ao perfil desse tipo de atleta é a teoria de Mihaly Csikszentmihalyi, sobre a personalidade autotélica: “A personalidade autotélica é aquela em que uma pessoa executa atos porque são intrinsecamente compensadores, em vez de alcançar objetivos externos”. (Car, A. Positive psychology. The Science of happiness and human strengths. Hove, 2004).
“São pessoas mais autônomas e independentes, porque não podem ser tão facilmente manipulados com ameaças ou recompensas a partir do exterior. Ao mesmo tempo, eles estão mais envolvidos com tudo a sua volta, porque eles são totalmente imersos na corrente da vida “. (Csikszentmihalyi, 1997, p.l17)
Esse traço de personalidade existe em pessoas que podem aprender a apreciar situações ou eventos que a maioria das pessoas vê como “miseráveis”. Em pesquisas realizadas por esse psicólogo, concluiu-se que aspectos relacionados com a personalidade autotélica incluem curiosidade, persistência e humildade.
3. Qual a recompensa que eles esperam ter ou imaginam que possam ter?
A recompensa em provas com esse grau de dificuldade, normalmente, é a realização pessoal, como superar os objetivos propostos, enfrentar os desafios da competição, melhorar performance, terminar a prova etc.
Os sentimentos experimentados de autoconfiança e de controle emocional influem diretamente na autoestima e, muitas vezes, no desejo de testar novamente seus limites.
Quando o atleta sente-se confiante em suas habilidades e no controle de suas ações, experimenta sentimentos de poder e de tranquilidade. Isso é, em si, extremamente recompensador, pois o medo e o fracasso são entendidos como potencializadores da ação e tendem a serem dissipados.
Não raro, o aspecto social aparece como recompensa reforçadora da performance: o atleta usufrui de um reconhecimento e status que uma competição extrema promove.
Uma outra forma de recompensa são os resultados obtidos. A convicção pessoal de que se pode executar com sucesso uma ação para produzir resultados desejáveis é definida como autoeficácia. A autoeficácia é composta por expectativas de desempenho e expectativas de resultado. É a crença de que determinados comportamentos, ações e esforço em lidar com situações levarão aos resultados desejados. O atleta está sempre buscando evoluir e otimizar sua performance. Portanto acreditar na sua capacidade é fundamental para o sucesso e para realização pessoal.
4. Não chega uma hora em que é demais?
Para as pessoas que buscam seus limites e consequente superaração, sempre haverá novos desafios, pois qual é o limite do homem?
Sendo a adrenalina um estimulante natural, esses individuos gostam de sentí-la porque estão preparados para realizar seu plano de ação.
Também a liberação de outras substâncias, como noradrenalina, endorfina, serotonina que estão intimanente ligadas ao desempenho e provocam um estado de bem-estar e prazer, são reforçadores para a continuidade do esporte.
Atletas de alta performance estarão constantemente reorganizando seus objetivos para se manterem ativos, competitivos e em busca de novas conquistas.
5. Esse povo tem problemas? Ou quem pensa que eles têm problemas é que tem problemas?
Para muitos, os amantes dos esportes extremos, de risco e de grande exigência física e psicológica não gozam de “saúde mental plena”. São, muitas vezes, taxados de “loucos”, exibicionistas, impulsivos, viciados em adrenalina etc. Mas, como disse, são pessoas com perfis diferenciados, com desejos e necessidades diferentes e que encontraram no esporte um motivo forte suficiente para os manter praticando e melhorando. Nosso organismo possui boa capacidade de adaptação às situações extremas.
De modo geral, é claro que, diferentemente das pessoas que não praticam esses esportes, a exigência da modalidade faz com que a vida social fique comprometida, no sentido de terem uma disciplina maior em relação à alimentação, horários de treino, sono e lazer. A escolha por esse tipo de vida nem sempre é bem vista por outros e portanto não compreendida.
Não há um problema patológico, mas sim o gosto por se desafiarem em seus limites físicos e psicológicos.
6. Em que eles se diferenciam do atleta que participa de provas de aventura ou triatlo? E em que eles se parecem?
Os atletas de corridas extremas se parecem com os atletas de provas de aventura e triatlo, mais especificamente o Ironman, na busca pela superação, pelo desafio, pela perfeição, em sair da zona de conforto, na coragem, que é o domínio do medo e não a falta dele, na habilidade em lidar com adversidades. Eles se diferenciam no nível de dificuldade a que os atletas de corridas extremas se submetem e no tipo de exigência das tarefas, que envolvem situações com alto grau de resistência fisica, mental, resistência à dor e ao cansaço, além de velocidade e força. Estas tarefas são obstáculos criados semelhantes aos usados em treinamento militar e envolvem habilidades de corrida, saltos, subir em cordas, rastejar sob arame farpado, escalada, carregar objetos pesados, lançar objetos, passar pela lama e fogo, enfim, diversos tipos de atividades não comuns e que requerem um corpo e mente preparados para tal.
Muitas vezes os participantes de corridas extremas não conhecem o percurso ou os obstáculos que deverão enfrentar até o dia da corrida. Essas corridas variam em distância e grau de dificuldade.
Muito bom. Comecei no triatlon aos 50 anos. É bem difícil explicar. Adorei.