A primeira vez de Marcelo foi em Praga
16/09/13 10:22Hoje em dia, MARCELO VAZ CAMPOS é diplomata de carreira e trabalha na representação brasileira em Praga, onde vive há dois anos. Jornalista de formação, Marcelo, 32, foi colaborador do caderno Informática da Folha quando eu era o responsável pela edição. Na época, talvez nem pensasse em correr um dia. Pois acaba de fazer sua estreia em corridas de rua, lá na capital da República Tcheca. Leia a seguir o relato que ele mandou especialmente para este blog.
“Há quatro meses decidi que, depois de quatro anos sedentário, iria encontrar alguma atividade para mexer meu corpo e recuperar o fôlego que, pensando bem, talvez eu nunca tenha tido, pois nunca nos meus 32 anos levei atividade física muito a sério. Para ser sincero, corrida nem era minha primeira opção. Minha preferência era natação, mas, um dia, assistindo a uma série da BBC chamada “Origins of Us”, me chamou a atenção a descoberta, já não muito recente na academia (a científica, digo), de que a habilidade de correr longas distâncias, um diferencial do Homo sapiens com relação aos outros primatas, foi fundamental para a evolução da espécie.
Quando soube disso, pensei: “Se o corpo humano foi desenvolvido para correr, e essa habilidade foi essencial para a sobrevivência dos nossos ancestrais, por que não?” Além disso, não dependo de ninguém para correr, o que para mim é, psicologicamente, uma enorme vantagem: posso adotar um ritmo de treinos meu e apenas meu, sem a pressão de eventuais companheiros nem a sensação de atrapalhar quem já corre mais. Comecei então uma série de treinamentos específicos e, incentivado pela minha instrutora da academia (a de ginástica), decidi que, na tarde do último dia de agosto, faria minha primeira corrida de 10 km aqui em Praga, República Tcheca, onde vivo, e outra uma semana depois.
Não foi fácil sair da inércia, mas aos poucos fui alcançando distâncias mais longas. Nos meus treinos mais recentes no parque perto de casa, consegui atingir a marca de 10 km em tempos até que bons (de 55 a 48 minutos) para quem, antes, não conseguia correr nem 500 m sem ficar ofegante, então não havia preocupação quanto à minha capacidade de concluir a prova. Mas, como diz a sabedoria popular, treino é treino, jogo é jogo. Vestindo camiseta com os dizeres “Correr fez o Homo sapiens”, celular no braço, aplicativo de GPS ligado e música no ouvido, larguei às 16h de 31 de agosto. Foi assim:
Até 1 km: Tanta gente. Ainda bem que consegui largar no pelotão de 45-50 minutos. Estou com energia e não queria ficar para trás, caçando espaços para passar as pessoas. Estava muito pessimista quando me inscrevi no pelotão de “mais de 70 minutos”. Também, convenhamos, eu não corria nada. A dor que eu estava sentindo no calcanhar passou, mas esse final de gripe pode me complicar. Bom, não faz diferença, agora é só correr. Até agora tudo bem, estou conseguindo meu espaço. Ei, aquele cara está correndo com um balão laranja indicando 45 minutos. Que útil. Enquanto eu tiver contato visual com ele, estou contente, significa que estou cumprido o meu objetivo de repetir minha melhor marca.
De 1 km a 2 km: Boa. Completei 1 km e a primeira música da minha seleção ainda não acabou. Significa que estou indo a menos de 5 minutos por quilômetro. Agora, o que é essa dor no meu abdômen? Isso não vai dar certo… Conheço essa dor desde quando era criança, das aulas de educação física. Fazia algumas semanas que não sentia isso. Justo hoje? Vai, Marcelo, respira fundo, 1, 2, 3, 4, expira, 1, 2, 3, 4… repete uma vez, e outra. Pronto, já me sinto melhor. Posso prestar atenção no cenário de novo. Mesmo aqui, um pouco fora do centro, Praga é muito bonita. Não, não é hora de turismo. Olha para a frente, concentra na passada.
De 2 km a 3 km: Subida. Não muito forte, nem mesmo muito longa, mas subida mesmo assim. A cada passo sinto mais as pernas. Sério que uma rampinha vai me prejudicar? É, vai. Cada vez mais pessoas estão me passando, e já não vejo o cara do balão laranja. No parque, meus treinos começam com descida e depois seguem só no terreno plano. Assim fica fácil, né? Vou ter que ver isso aí, porque parece que o trajeto da semana que vem tem mais subidas. Não vou me preocupar por enquanto, estou correndo. Pernas, aguentem!
De 3 a 4 km: Já conheço melhor esta área da cidade. Costumo andar por aqui, às vezes, e nunca tinha reparado nessa subidinha chata. E tenho sede. Que calor, como faz falta uma brisa e a sombra das árvores! Minha passada já não está tão longa quanto no começo. Está parecendo os meus primeiros treinos, há uns três meses, quando o pior trecho era sempre perto do terceiro quilômetro. Tanta gente correndo bem, eu preciso ser capaz também.
De 4 km a 5 km: Já estou perto do centro da cidade, perto do meu trabalho também. Mais pessoas nas ruas batem palmas e fotografam os corredores. Que legal. Tantas vezes estive do lado de fora, vendo a ação. Estou contente que hoje estou aqui na rua. Aqui estão oferecendo água. Vou pegar um copo. O primeiro gole sai todo errado, derrubo água e não bebo nada. Vejo uma pessoa jogar água na cabeça. Penso em fazer o mesmo, mas ainda tenho sede. Reduzo a velocidade, até andar, para conseguir beber a água. Não acho que seja uma boa ideia. Em todas as vezes que parei no meio do treino, a retomada do ritmo foi difícil. Mas a sede é maior que minha ambição.
De 5 a 6 km: Acabo de completar a metade do trajeto e sinto meu corpo pedindo arrego de todos os lados. A respiração parece insuficiente e os músculos doem. Estou num ritmo aceitável, mas até quando? Não posso parar. Passo todos os dias nesta rua, vai que algum conhecido me vê andando! Chego agora à belíssima praça da Cidade Velha, o dia está ensolarado e eu estou fazendo algo inédito. O cenário é realmente muito bonito. Olho para o alto e vejo as fachadas dos prédios, admiro o que vejo, acho que é o melhor que posso fazer. Na minha frente já aparece um corredor com o balão indicando 50 minutos. É, não terei como atingir meu melhor tempo, não.
De 6 km a 7 km: Logo vou completar o sétimo quilômetro. Quando fiz 10 km pela primeira vez, três semanas atrás, eu tinha previsto correr 7 km. Ao atingir o objetivo, me senti bem o suficiente para seguir o treino, devagar e sempre. Aquele dia foi muito bom, voltei para casa contente, postei o resultado no Facebook e marquei todos os meus amigos corredores. Depois daquele dia, como se tivesse vencido uma barreira psicológica, só não treinei 10 km quando havia alguma razão especial para isso, então hoje não há de ser diferente. Pronto, cheguei ao rio. Agora é acompanhar a margem até a chegada. Está fácil.
De 7 km a 8 km: Não, não está fácil. Estou cansado demais. Eu deveria ter dormido melhor durante a semana, eu deveria ter me hidratado mais, eu deveria ter treinado tão sistematicamente quanto nas semanas anteriores (mas para isso eu não deveria ter pegado gripe), eu não deveria ter parado para tomar aquele copo de água no meio da corrida. O quilômetro todo é uma disputa entre meu desejo de não parar e o limite que, mais cedo do que eu previa e gostaria, pareço atingir.
De 8 km a 9 km: Por que estou tão cansado? Quem sabe agora, caminhando, eu me recupere um pouco. Devo estar perdendo pelo menos dois minutos. Vejo várias garrafas de água jogadas no chão. De onde elas vieram? Não sei, mas agora não vou voltar para procurar. Quer saber? Vou pegar esta aqui, que parece cheia. Providencial. Molho minha cabeça, limpo o suor do rosto, tomo uns bons goles. No público, alguém estende o braço e me oferece um cumprimento. “Força”, parece dizer. Cumprimento de volta e sigo. É hora de voltar a correr.
De 9 km a 10 km: Quero acelerar para compensar a perda de tempo, mas está difícil, melhor voltar à passada normal. Quantos metros fiz em ritmo acelerado? Uns 300, 400? Nossa, quem esticou este quilômetro? A chegada parece tão longe! Concentra, falta pouco. Mais alguns passos e… cheguei.
Logo que ultrapasso a linha de chegada, recebo um SMS da organização: 56min59s. Achava que faria bem melhor. No celular, o aplicativo diz que meu trajeto foi de 11,5 km. Como assim? Sei com certeza que hoje foi 10 km. Talvez, então, o aplicativo erre, e meus treinos tenham sido de 9 km ou menos. Se for isso mesmo, então esta foi não só minha primeira vez em uma corrida, mas também minha primeira vez chegando realmente a 10 km. Considerando também o cansaço da gripe e a falta de treinos na semana, tenho de me orgulhar. Até porque, há quatro meses não tinha feito nem sequer um treino, e meu objetivo quando me inscrevi nesta corrida era apenas terminar. Hoje, contrariando minha própria expectativa, sinto prazer em correr e já conto as horas para a próxima prova.”
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Rodolfo, a diferença dos 1,5km a mais no seu aplicativo se dá pelos diversos zig-zags que fazemos durante o percurso, e se ele tiver muitas curvas se não corrermos pela tangente das mesmas sempre corremos um pouquinho a mais… logo seus treinos estavam corretos e na verdade vc fez 11,5km em 56min, um bom tempo!! Abraços
Muito boa descrição do Marcelo!!!
Seu método de descrever km a km a sua corrida é muito legal.
Continue treinando, correndo e relatando para nós.
Abraço,
Luiz Fernando
Rodolfo, uma interessante descrição de uma marotona percorrida por uma pessoa quase “comum” está aqui nesse link (em inglês).
http://chasingmailboxes.com/2013/09/15/international-peace-marathon-26-2-miles-on-the-co-towpath/