O dia em que perdi para o não recordista mundial da maratona
17/08/13 07:52O cara não é recordista mundial, mas corre direitinho. E o melhor: está correndo aqui na terra: ontem o queniano Geoffrey Mutai participou de um treinão recreativo com um grupo de corredores amadores no Ibirapuera. Neste domingo, vai estar presente na meia maratona do Rio.
Como você sabe, o atual recorde mundial da maratona é de 2h03min38, e o dono da marca é Patrick Makau, que realizou a façanha em Berlim em setembro de 2011. Pois em abril daquele mesmo ano, Mutai venceu em Boston com nada menos que 2h03min02, quase um minuto mais rápido do que o recorde de então (2h03min59, de Haile Gebrselassie) e mais de meio minuto mais rápido que a marca que Makau viria a estabelecer.
Mesmo assim, não ganhou as honrarias porque o percurso de Boston é considerado “em descida”; além disso, o trajeto é num único sentido, e os corredores podem ser beneficiados por vento a favor, como aconteceu naquela data.
De qualquer forma, apesar de não ser o recordista mundial, Mutai é um bom corredor. Teve a melhor marca do mundo no ano passado e ainda venceu a milionária série World Marathon Majors 2011/2012, levando para casa um premiozinho de US$ 500 mil.
Pois essa foi a fera que encarei na manhã de ontem. Cheguei às 6h40 ao lugar marcado, sob a marquise. Ele estava todo encapotado, de calça legging, camiseta de manga, jaqueta quebra-vento e gorro de lã; eu vestia uma bermudona e uma camiseta de manga comprida.
Achei que podia levar vantagem, porque o frio que eu estava passando com certeza ia me fazer correr mais. E o frio só aumentava porque ficamos parados ali, conversando, aguardando a turma chegar. Aos poucos, o grupo foi aumentando. Teve a apresentação do cara para os corredores do grupo, palmas, algumas fotos, e enfim saímos, uns 30 corredores.
Não sei como, mas, quando vi, eu estava na cola do Mutai, um passo atrás dele. A linha de frente era formada pelo próprio mais uns três ou quatro corredores do grupo; logo atrás vinha o diretor técnico da equipe e alguns professores, seguindo-se então o séquito de corredores.
Deu até medo, mas pensei com meus cadarços: “Quem sabe não dá para encostar no fulano”? E tentei apertar o passo, acelerar mais um tantinho, abrir a passada para, pelo menos, aparecer na foto, como se diz.
Ledo e ivo engano. Quando o pensamento se fez energia, raio de luz no cérebro, tentando mandar sinais para os músculos se contraírem e soltarem mais rapidamente, nada aconteceu.
Nada, nadica de nada.
Provavelmente, correndo a menos de 5min30 por km, eu já estivesse no máximo possível para o momento, a idade, o peso e a altura deste ser, sem falar na barriga avantajada.
Também não quebrei nada nem distendi músculo nenhum. Apenas não consegui executar o solerte plano de correr lado a lado com o não recordista, mas mais rápido maratonista da história. Então me contentei porque ficar na segunda fila, diretamente no encalço do queniano, apenas um passo atrás e pronto para dar o bote assim que eu sentisse que minhas condições melhoravam.
O passo atrás foi se transformando em dois, quatro, dez, 50… Eu já não estava mais no segundo nem no terceiro bloco, mal e mal mantinha a rabeira do último pelotão. Consegui seguir ali por mais uns 300 metros, mas, quando deu um quilômetro, era eu sozinho e mais ninguém.
Em compensação, aquele foi meu melhor quilômetro em um bom tempo, e a passagem do segundo também foi ótima para meus padrões. Agora eu seguia solitário pelo Ibirapuera, disposto a, pelo menos, fazer meu treino do dia, mandando uns seis quilômetros para a conta.
A turma aprovou meu esforço. Quando completei a primeira volta de 3 km, todos abaixo de 6min/km (!!!, palmas!!!), fui aplaudido de verdade pelo agente do queniano, o holandês Gerard van de Veen, que no dia anterior me deu algumas dicas de como pronunciar a letra “g” no seu idomia pátri (já revelo aqui o segredo: é impossível, simplesmente não dá).
Parti para a segunda volta, sabendo que seria dolorida. Diminuí um pouco o ritmo, tentei voltar para o sub6, de vez em quando olhava para os lados procurando o queniano, mas nada.
A maior parte do grupo, por sinal, tinha parado logo ao final da primeira volta; outros, que se desgarram do primeiro pelotão, faziam mais alguns quilômetros pelas alamedas do Ibirapuera.
Eu segui meu caminho, correndo com vontade atrás do meu nariz… Eis senão quando ouço uma voz bricalhona: “Força, vamos!”, diz o queniano ao passar por mim de passagem e quase desaparecer em seguida, levando consigo apenas dois atletas que ainda conseguiam acompanhar o seu leve ritmo de treino.
Era o quilômetro cinco para mim, então ainda forcei mais um pouco e cheguei ao ponto de encontro pouco depois de completar seis quilômetros, totalmente suado, mas com o corpo gelado, sabe-se lá como…
Do queniano, nem sinal. Só uns 20 minutos depois ele aparece na curva, vindo com apenas um de seus escudeiros –o outro havia ficado para trás na curva anterior. Quando os dois ficam completamente à vista (para eles, imagino, é como se avistassem a linha de chegada), Mutai deu um sorrisinho para seu acompanhante e disparou para terminar sozinho, sob aplausos.
Ou seja, terminei o treino com uma vantagem de cerca de 20 minutos sobre o maratonista mais rápido da história. É bem verdade que ele fez 12 km, e eu fiz seis. Mas a pergunta que não quer calar é: quem chegou primeiro?
Brincadeiras à parte, conto agora um pouco sobre a história de Mutai, que entrevistei duas vezes nos últimos dias, sem falar na corrida que perdi para ele.
Geoffrey Mutai nasceu em 7 de outubro de 1981, em uma pequena cidade do interior do Quênia, filho de uma família de pouca renda e muita prole: tem cinco irmãs e cinco irmãos.
A história dele não é a repetição do velho: corria descalço para a escola, vira corredor etc…. Por causa da pobreza da família e do fato de o pai ter perdido o emprego quando Mutai ainda estava no primário, ele teve dificuldade até para frequentar a escola.
Morando na casa da avó, conseguiu completar o primeiro grau enquanto fazia trabalhos diversos: cuidava do gado, entregava leite, corria daqui para lá. Nas competições escolares, aprendeu a gostar de corrida.
Apesar das dificuldades vividas, em 2002 foi selecionado para representar o Quênia no Mundial de juniores. Não pode ir porque não tinha certidão de nascimento.
Fez sua primeira maratona em 2007, quando foi descoberto por um agente esportivo e começou sua carreira internacional.
Naquele mesmo ano, mas bem antes de correr a maratona, fez sua última e fracassada tentativa de bater uma bolinha numa ensolarada tarde de domingo. Como não tinha calçado adequado, resolveu jogar futebol descalço.
“Meus pés ficaram em carne viva, tinha bolha por tudo, sangrava…”, disse ele. “Eu era mais rápido do que os meus colegas, mas não consegui terminar a partida”, contou a um grupo de jornalistas brasileiros.
Comentou sua ascensão na carreira, dizendo que tudo é resultado de um treinamento muito duro. Ele treina de segunda a sábado, em uma cidade a 55 km de Eldoret, onde mora com sua família –mulher e duas filhas—em uma bela casa construída com a renda de suas conquistas nas maratonas.
Em geral treina cerca de 30 km, em duas etapas. Às terças e sábados, faz treinos de velocidade (fartlek, repetições etc.); às segundas, quartas e sexta, é rodagem; e a quinta é o grande dia: o longão. Cerca de 70 atletas se encontram e partem estrada afora para uma rodagem que é quase uma disputa para valer.
“Ninguém quer ficar para trás, ninguém quer deixar o outro ser mais rápido”, diz ele, contando que os treinos chegam a durar duas horas e 20min, duas horas e meia, em que eles fazem de 38 km a 45 km, dependendo do dia…
Lá, na sua casa ou mesmo no Brasil, ele pode ser chamado a qualquer momento para ser submetido a exame antidoping. Ele faz parte de um programa especial da Wada, a agência internacional antidoping, para monitoração de atletas de elite.
Amanhã, no Rio, ele sai para ganhar, como diz que faz em todas as competições em que participa. Afirma que “é possível” completar a prova em uma hora ou até menos, o que seria um novo recorde da competição. Adianta que, seja qual for o resultado, pretende voltar ao país: sonha em estar nos Jogos do Rio-2016. Ou antes, em alguma São Silvestre no meio do caminho.
E um dia, me disse depois do treino em que eu não o derrotei, vai ter barba igual à minha (foto abaixo). Vamos ver.
Há momentos vivenciados que jamais esqueceremos pois foram atos pessoais heroicos e somente conseguidos por corrermos atrás dos verdadeiros heróis da história. Abraços e parábens Rodolfo!
Oi Rodolfo,
E não é que ele conseguiu!!! menos de 1 hora como prometido!
abraço
Vanessa
http://www.nossodiariodetreino.wordpress.com
É isso mesmo: novo recorde no Rio
Viu só?
Treinou contigo e ganhou fácil a Meia do Rio!
Parabéns Lucena,
Corredores não são só da elite, maratonistas não são só sub 3h00. Tem muita gente que corre só por prazer e também é feliz. Este artigo é um estímulo
Que bacana. É a hitoria de milhares de quenianos, só qeu esta tem final feliz.
…e eu cheguei ao Ibirapuera um dia antes…
Que massa, Rodolfo! Com ctz deve ser uma grande experiência conhecer e correr com um grande campeão! Pena q moro na roça (BH),e aqui não tem nada disso. Mas falando em campeões, q sensacional foi a chegada dos brasileiros na maratona em Moscou,hein? Os caras mandaram bem dmais, deu orgulho! Ainda mais sabendo d onde vieram,e das dificuldades enfrentadas. 6o e 7o num Mundial não é pra qq um não! Parabéns, Solonei! Parabéns, Paulo Roberto!
Ótima crônica, de leitura prazerosa e uma forma bem humorada de abordar o tema e contar uma história. Gostei. Passarei a acompanhar a coluna.