Corredor se entrega à preguiça nos dias de frio e não se arrepende
30/07/13 11:59Pois vou lhe confessar, assim, no pé do ouvido, cá entre nós, que preguicei. Não sem certa vergonha, pouco, mas viva.
Desde domingo rolam nas redes sociais comentários sobre as provas do fim de semana, o frio que estava, o vento que zunia. Gente que acordou às quatro, com o céu ainda escuro, noite alta, gente que acordou às cinco, gente que acordou às seis e se foi na correria, porque a prova ia começar às 15 prás sete…
Para lá de 4.000 pessoas se jogaram para a largada da meia maratona Asics de São Paulo. Muitas, graças ao frio e ao percurso caprichado, bateram seus recordes pessoais. Outros se engalanaram de glória pela coragem de enfrentar os elementos. Mesmo quem não conseguiu terminar ou desistiu lá pela metade, em busca de um lugar quentinho, tinha do que se gabar. Pelo menos dissera presente, estava na luta.
Eu não. Fiquei debaixo das cobertas, tomei café quente mais tarde, comi croissant recheado de chocolate (pain du chocolat, dizem os franceses), assisti a um filme bacaninha em sessão especial de cineclube, lagarteei nas réstias de sol que driblavam os prédios da Paulista.
E não foi só no domingo não. Bateu o frio de encarangar, eu me recolhi ao sossego do quentinho doméstico, preguiça pura, conivência completa com o meu eu mais dissoluto. E olha que não sou de arregar, não, e frio não me mete medo.
No pior dos piores dias, a quinta passada, com os termômetros batendo recordes de baixura e a garoa congelando pensamento, botei luvas, gorro, calça comprida e meia de lã e me fui pela cidade encharcada, cinzenta, trêmula. Cumpri certinho a hora e meio de treino prevista e ainda botei mais 15 minutos de lambuja para não parecer que estava afrouxando.
Depois cansei. Meus 2.400 quilômetros anuais podem não ser lá grande coisa de treino, tem quem faça muito mais, mas acho que posso preguiçar de vez em quando, unzinho que seja o dia.
Não foi um nem dois, foram três. Ginástica ainda fiz, levantei uns pesos, mexi as pernas, suei nos abdominais; mas sair para a rua, lá isso não.
Vem, preguiça!, me disse, e deixei. Para completar, comi musse de chocolate na sobremesa dominical e ainda engatei pizza para o jantar. Nessas horas, parece que todos os corredores do mundo torcem o nariz, as nutricionistas levantam o cenho, o treinador lava as mãos (mas só faz o gesto, porque está muito frio para abrir a torneira). A culpa vem, mas o quentinho vence o medo.
Nessas horas (e em todas as outras, para ser completamente franco com você neste segredar internético), me socorro com Fernando Pessoa. Algum poema ele há de ter para confortar ou escrachar, zoar ou incentivar.
Vez que outra, por exemplo, especialmente quando sou o único preguiçoso e dorminhoco no país dos corredores cheios de coragem e de recordes pessoais, releio o “Poema em Linha Reto”.
Por certo você já o conhece (quem não há de?), mas o reproduzo aqui para deleite pessoal:
“Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.”
E assim dou por encerrado esta refrega, dizendo a quem porventura se condoeu ou solidarizou, que a preguiça foi de então, do momento, do dia. Venceu e foi campeã, mas hoje é outro dia, e já fui correr como queria, dando ao asfalto meu tanto de suor e momentosos pensamentos. Mas que foi bom preguiçar, lá isso foi.
E assim vou, seguindo de acordo com a minha filosofia de vida, o ditado que me acompanha a cada passo e assim reza: “Agora é já, depois é mais tarde”.
Ótimo post Rodolfo! E obrigada por nos brindar com Pessoa (sempre ele…) a nos estapear nesse mundo meio morno em que nos encontramos.
É claro que nós corredores temos preguiça, crises de angústia, de inferioridade, perguntamo-nos por que fazemos isso conosco quando estamos sofrendo em um treino ou numa prova (o que passa sempre no final, já sabemos…). O fato é que muito poucos admitem isso até para si mesmos.
É isso, vamos na roda viva, cada dia do seu jeito.
Abraços.
Uma preguicinha vez em quando é sempre bem vinda. Ainda mais se for comendo croissant de chocolate….
De Acordo. Aliás, resolvi fazer uma inter temporada, isto é: Um mês de férias. Só com caminhadas e trotes. Volto a correr só no dia 1 de setembro.
Rodolfo, belo texto. 2400 km até Julho….. eu tenho como objetivo 1248 km para esse ano. E se conseguir ainda vou dar uma festa !!!!
Um abraço
Luís Augusto
PARABÉNS pelo texto.
Traduz o que muitos de nós fazemos muitíssimas vezes. E claro, é super normal.
Abraços