Um português desbrava a maratona do Círculo Polar Ártico
13/11/12 12:32Hoje trago para você um relato muito bacana de um leitor português, ANTÓNIO CARLOS DA LUZ CORREIA, de 55 anos, que acaba de se tornar o primeiro corredor da terrinha a completar a Maratona do Círculo Polar Ártico. Trata-se de uma prova que acontece desde 2001, em Kangerlussuaq, na Gronelândia e que atraiu nosso amigo CORREIA pela altísima dificuldade. Maratonista há 30 anos –na estreia, em 1982, cravou 2h33–, o atleta participou do evento inspirado na leitura de um livro de Mike Stroud, “The survival of the fittest: pessoas comuns podem fazer coisas extraordinárias!”
Muito bem. Sem mais delongas, vamos à aventura gelada de um português no polo Norte.
“Fiz uma preparação rigorosa. Li o mais que pude sobre corrida em temperaturas negativas, observei dezenas de fotografias e filmes de situações de corrida no frio, procurei falar com atletas experimentados. Integrei ao plano de treino algumas maratonas e outras provas, de trail sobretudo, com características especiais de dureza. Em fevereiro último, realizei um pequeno estágio em Oulu, no norte da Finlândia, para experimentar equipamento e fazer alguns longões. As temperaturas rondaram os -10ºC, o que não foi nada de especial, mas, outras condições meteorológicas foram mais adversas: por várias vezes, treinei sob fortes nevões e vento, chegando mesmo a ter que colocar a máscara de esqui.
O percurso da maratona é sinuoso e com características de montanha, com inúmeras subidas, íngremes e prolongadas, e descidas equivalentes. Na zona de partida, estava sombrio, frio e, por vezes, soprava um vento cortante. Enquanto esperávamos, muitos de nós saltitavam e davam pequenas corridas para afastar o frio, que rondava os -20ºC e iam-se tirando também algumas fotos. O ambiente era de animação e alegre confraternização. Dado o tiro de partida, lá arrancaram os 134 corredores.
O trecho inicial era em estrada e subia, a caminho da calota polar. O piso estava coberto por uma camada de neve fresca que, aqui e acolá, dava lugar ao gelo. Percorrido um quilômetro e tal, começou a soprar um vento forte que pôs à prova todas as camadas térmicas do equipamento. Deixei de sentir o nariz e as rajadas laterais nos ouvidos começaram a incomodar-me. Enfiei a cabeça no capuz do blusão, puxando bem os cordões até só ficar espaço para os olhos e coloquei os óculos para que o vento não mos secasse. As mãos iam confortáveis, bem aconchegadas no duplo par de luvas que tinha calçado.
Depois de quase dez quilometros, chegamos à calota polar. O cenário alargou-se numa imensidão de branco e céu muito azul. O sol brilhava, mas, como se manteve sempre muito baixo, as nossas sombras prolongavam-se por vários metros. Corríamos agora sobre neve ou sobre gelo, um gelo escuro que despontava aqui e ali do manto de neve branquíssima. A temperatura mantinha-se próximo dos -20ºC.
Ainda ficamos na neve e no gelo por alguns quilômetros. Após uma subida acentuada, seguida de uma descida equivalente, entrámos na estrada coberta de neve e de uma fina camada de gelo. Para não escorregar, era preciso usar correntes especiais nos sapatos de corrida na neve.
A organização bem tinha insistido na conveniência de encararmos os abastecimentos de modo diferente das maratonas urbanas. Que em vez de passarmos a correr pela mesa do abastecimento e deitarmos fora o copo mais à frente, devíamos parar, recuperar um pouco, abastecer, deixar o copo no local e seguir caminho. E assim foi, cada paragem constituiu um momento de confraternização com os membros da equipa organizadora e com os voluntários, ou mesmo com outros atletas. O meu abastecimento favorito foi a limonada quente. Bebi sempre dois ou três copos, não só por necessidade como também por gulodice.
Pouco depois de ter ultrapassado a zona da chegada da meia maratona, onde era preciso vencer uma subida nada meiga, comecei a sentir alguns sinais inquietantes na coxa direita. O receio de que pudesse estar a anunciar-se uma rotura muscular levou-me a abrandar o ritmo e a encurtar a passada.
Passei a concentrar-me no quilómetro que tinha pela frente e nada mais. Os quilómetros passaram a ser conquistados um a um, descontando mentalmente nos que teria que fazer a caminhar se o músculo cedesse. Aqui e acolá, a sensação no músculo atenuava-se e eu, quase sem dar por isso, acelerava para o meu ritmo normal. Claro que, ao fim de algum tempo, os sinais voltavam a recomendar prudência na gestão do esforço, e lá abrandava de novo para evitar tensões musculares excessivas.
A verdade é que, mesmo neste regime de contenção, os quilómetros se foram sucedendo sem grande custo aparente. O moral ia ficando cada vez mais em alta à medida que encurtava a distância que teria que caminhar se o músculo não aguentasse. De tal forma a confiança se instalou que, a 3 km da linha de chegada, ataquei, num ritmo desenfreado, a subida temível e prolongada que ali se apresentava, fazendo-a sem parar, sempre em corrida.
Chegado ao alto da elevação, sobranceira a Kangerlussuaq, a vista do aeroporto e dos edifícios à volta, onde estava colocada a meta, deu-me um novo alento que compensou o esforço que tinha acabado de fazer.
Algo surpreendente para esta fase da prova, estava a suar abundantemente, e as pernas já me doíam um pouco. Um ardor no peito, detectado ainda na 1ª metade, estava um pouco mais intenso e, pior que tudo, as pontas dos dedos estavam a doer-me horrivelmente. Vamos a isto! Iniciei a descida a bom ritmo, aproximando-me das casas e percorrendo a rua principal. Lá ao fundo, descortinei alguém que acenava ao corredor que ia à minha frente, dando indicação para virar à esquerda, para a meta. Estava a chegar a minha vez. Afinal, não tinha custado tanto como tinha chegado a temer que pudesse custar. Abri o blusão para mostrar o dorsal, condição para ser atribuído o tempo de corrida. Cruzei a meta, nº64 bem visível ao peito! À minha espera estavam uns 5 ou 6 corredores que tinham chegado antes e que me abraçaram efusivamente dando os parabéns! A emoção que senti foi maior do que se tivesse entrado num estádio cheio de gente a aplaudir.
Agora, parado, começaram a revelar-se todas as dores e sensações que até aí não tinham ultrapassado os limites do razoável. Ainda assim, decidi fazer uma pequena caminhada de 10-15 minutos para recuperar muscularmente. A perna direita prendia um pouco na passada, manifestando-se uma dor ligeira que confirmava que o desastre tinha estado iminente. Enquanto andava, aproveitei para incentivar outros corredores que chegavam a conta-gotas. Quando me pareceu que a caminhada tinha sido suficiente, iniciei o regresso ao hotel. A caminhar, arrefecemos muito mais rapidamente do que em corrida, e estava mesmo a precisar de cuidar urgentemente das minhas mazelas.
Voltei para o hotel. No quarto, tirei as luvas. Estavam encharcadas. As pontas dos dedos estavam a mudar de cor e só deixaram de doer ao fim de largos minutos. Tirei o blusão e a camisola. Tinha uma chaga razoável no peito, tipo queimadura, com uma zona central mais escavada de onde saía um líquido amarelado. Debaixo do chuveiro, até dava saltos quando a água passava pela ferida. Apliquei abundantemente uma pomada apropriada. Liguei para casa a anunciar que esta maratona já estava feita. A seguir, fui ao Facebook e anunciei aos amigos que este desafio estava resolvido e, para que não restassem dúvidas, lá coloquei a foto rcom a medalha e a camiseta. Agora, podia vir a próxima aventura!”
Que aventura bacana. Que maratona desafiadora. E o relato do Antonio Carlos e tao bom que meu deu uma baita vontade de ir la conferir, certificar, viver esta aventura. Parabens Antonio