Rosicleia, técnica do judô feminino, quer mais medalhas
30/07/12 12:58A revista Serafina deste domingo publicou perfil da treinadora da seleção feminina da judô, Rosicleia Campos, que entrevistei às vésperas do embarque para Londres. Ela me disse esperar de suas pupilas o melhor desempenho da história do judô feminino. No primeiro dia dos Jogos, essa meta foi atingida com o ouro de Sarah Menezes –em Pequim-2008, Ketleyn Quadros conquistou medalha de bronze. Mas a exuberante Rosicleia, que não para de falar um segundo enquanto a luta está em andamento, quer mais, como revelou na entrevista, da qual publico a seguir os principais trechos.
Rodolfo Lucena – O que você espera desta Olimpíada?
Rosicleia Campos – Espero o melhor resultado do feminino em toda a história, mais de uma medalha. A equipe está com potencial muito bom, em termos de resultados. Só se der muito errado. Com certeza a Mayra vai ser medalhista, só se der um problema muito grande.
Olimpíada é uma competição muito diferenciada. O Mundial é extremamente mais difícil, entram duas atletas de cada país, e ainda nossas atletas chegaram com bons resultados, o que mostra a qualidade técnica das atletas.
Na Olimpíada a parte técnica conta, mas vai lutar bem quem estiver com a cabeça boa. É uma competição psicológica, tem um grande peso psicológico, tem visibilidade absurda, clima é diferenciado, a responsabilidade é diferente.
Você foi considerada a melhor técnica do ano passado. Qual foi sua contribuição?
Trouxe identidade para o Judô feminino e autonomia de voo. Não fui eu que fiz, eu apareço porque sou a técnica. O que colaborei foi essa mudança de comportamento, de não aceitar ficar à sombra do judô masculino, exigir ter um planejamento individual da equipe e individualizado em relação às atletas, foi uma conquista, a conquista de meu espaço, eu Rose.
Tive de provar que eu era competente, porque eu era jovem, assumi a equipe com 35 anos (2005), às vésperas de ir para o Mundial do Egito. A partir de 2006 foi quando eu consegui colocar meu jeitinho. Nada seria possível se não houvesse a cumplicidade das atletas, de elas realmente acreditarem…
Quando eu recebi o prêmio, no ano passado, passou um filminho na minha cabeça, porque houve momentos em que eu pensava que não ia dar, que eu não era capaz, que realmente as pessoas tinham razão…
Tinham razão em quê? Quais eram as críticas?
Logo que eu assumi, tinha de provar que era boa, que eu podia. Na época, técnicos iam até o presidente da federação do Rio falar que aquilo era um absurdo, que eu não tinha competência, que eu era mulher, que eu era jovem, que eu não tinha cacife para assumir uma seleção.
E você conseguiu, pela primeira vez em 20 anos, qualificar uma equipe completa…
A última equipe que saiu para disputar nas sete categorias eu ainda era atleta. Foi em 1992, quando o Judô feminino estreou na Olimpíada (em 88, foi como demonstração). Em 92, passou a valer como medalha no quadro geral. A partir de 1996, quando passou a ranquear, não existiu mais uma equipe completa. Ou faltou o peso meio leve, ou o meio leve. Esse era um dos nosso objetivos, que também alcançamos, que foi levar sete atletas, sendo que seis cabeças de chave. Alcançamos com louvor.
Há quem critique seu estilo, vibrante, você fica pulando, grita o tempo todo…
Em 2002, fui para o Mundial júnior, com técnica. E chamei a atenção no Mundial porque as pessoas eram muito contidas. É o meu jeito. Se eu pudesse, eu entrava ali para lutar junto. Só que eu não posso. Acabei ficando em evidência. Se você olhar bem, outras pessoas também se excedem, só que eu virei um personagem nessa história toda porque eu sou mulher, sou alta, eu gesticulo muito, eu sou uma pessoal muito passional, de fato. Quando estou ali na luta, eu me envolvo, a vontade que eu tenho é de lutar. Para algumas atletas, elas precisam de estímulos para ficar alertas, porque o judô são cinco minutos e você não pode piscar nem um segundo que compromete o resultado. Eu tenho obrigação de mantê-las alertas.
Eu me envolvo mesmo, eu me doo. Eu não faço nada mais ou menos na minha vida, eu me doo cem por cento. Então cada luta é A luta. Enquanto o juiz não terminar a luta, tá valendo. Um segundo, tá valendo. Então eu vou estar ali cem por cento. Esse é o meu jeito, eu sou visceral ali, não só ali, em tudo o que eu faço.
Dói. Eu saio de uma competição arrasada, sem voz, dor no corpo todo. Elas fazem cada uma a sua luta, eu faço a luta de todo o mundo. Não é fácil não…
O que você faz para ficar bem, para proteger a voz?
A gente viaja sempre com médico, eu chupo pastilha, boto sprayzinho na garganta, faço gargarejo com água e sai. Quando terminou o Mundial eu estava afônica. E tem mais: mesmo eu estando rouca, na hora da luta sai. Não sei como isso acontece… Às vezes eu estou afônica, mas na hora da luta a voz sai. Vem da alma, eu acho.
Você já brigou com algum juiz?
Foi uma única vez. O meu estilo, eu realmente falo com a atleta, não falo com o árbitro. A última vez que eu briguei, que eu fui expulsa, foi no Pan de 2007 (Rio), que foi uma luta em que no cara roubou a gente quase que de mão armada, na luta da Erika com a cubana, era uma final. Se a gente ganhasse de Cuba ali a gente passaria de Cuba no quadro geral de medalhas, porque a gente passaria em número de ouros e ficaria na história a gente ficar na frente de Cuba numa competição. Isso já aconteceu agora no Pan-americano de Guadalajara, mas seria lá atrás, seria em 2007. Final da Erika com uma atleta chamada Mestra, de Cuba, que foi uma roubada. O árbitro deu um shido, a Erika realmente fez um falso ataque, ela merecia o shido, desde que ele desse também para a cubana, que já tinha feito mil falsos ataques e ele não deu a punição. Nossa, eu fiquei revoltadíssima. Se eu pudesse, eu matava. Nesse mesmo instante em que eu briguei, teve a briga lá na arquibancada com o Aurélio, com os cubanos, que deu aquela confusão toda. Eu só gritei. Só que saiu numa página da antiga “Panamerican” que eu tinha agredido, nossa, inventaram tanta coisa… Eu só falei na hora, que era realmente um absurdo, que aquilo era uma competição, que era leviano… Foi tudo verbal. A vontade era ser realmente físico, mas a etiqueta do judô não me permite fazer um negócio desse, além, claro, da educação que minha mãe me deu. Daí eu fiquei com a fama de barraqueira, que eu carrego até hoje.
Barraqueira você não é, de jeito nenhum, não?
(Risos) Eu não acho justo essa fama, não. Eu brigo por aquilo que eu acredito, que é diferente. Eu fiquei com fama de barraqueira mesmo, queimou meu filme geral, até hoje os holofotes estão todos virados para mim, o que eu acho injusto.
Como você enfrenta a nova regra que proíbe a orientação enquanto a luta está em andamento?
Olha, é um sofrimento total. Agora eu descobri que eu fiquei com cacoete de fazer caras e bocas, porque como eu não posso falar, eu desenvolvi algumas técnicas. Uma é falar sozinha durante a luta, para extravazar. Durante a luta eu vou falando as coisas que eu gostaria de falar, mas em voz baixa. Às vezes escapa alguma coisa, mas eu, no susto, coloco a mão na boca, é uma coisa horrorosa, se não você é retirado de lá. Mas o mais legal disso tudo é que, quando botaram essa regra nova, que passou a valer oficialmente em janeiro. Desde o ano passado, depois do Gran Prix da Holanda passou a valer, mas desde janeiro é de verdade.
Então tinha uma aposta geral de que eu jamais iria conseguir ficar naquela cadeira, porque eu ia ser expulsa 100% das vezes. Só que eu estou invicta até agora, não fui expulsa nenhuma vez.
Você se sente perseguida?
Não é isso, mas, se eu não vou falar, ninguém pode falar. Como todo mundo fica em cima de mim, porque eu realmente falo alto, eu brigo, eu virei uma bucha, a bola da vez. Todo mundo só fica em cima de mim, mas todo mundo faz. Eu vi pelo computador a luta da Mayra e da francesa (no Mundial), e a técnica da França não parou de falar um segundo. E eu xingava pelo computador, como é que pode, que absurdo, essa mulher não cala a boca, se fosse eu já estava expulsa. Só que eu estava sozinha, parecia uma louca, com raiva porque ninguém interrompeu a técnica da francesa.
Então eu tenho de tomar cuidado redobrado por causa da minha fama e por isso eu acho injusto.
Além da sua expulsão, o atleta pode ser punido?
Se eu for expulsa e continuar falando, existe a possibilidade de um shido, mas eu nunca vi isso ser aplicado. A gente tem uma gíria que fala assim: tomar um shidô consciente… Sabe o zagueiro que comete a falta porque sabe que o cara vai fazer um gol? Isso que a gente chama de shido consciente. Então já está combinado com o meu coordenador que, caso seja necessário eu ser expulsa por algo que vá salvar a minha atleta, eu estou autorizada.
Então você vai dar show…
Eu tenho uma pré-autorização para agir de uma forma … Claro que não pode ser aleatório. Tem de ser realmente pontual, num momento que realmente ajude a atleta, que seja um diferencial. Mas eu tenho essa autorização.
Vários textos dizem que essa regra foi feita mirando em você?
Por isso que eu fala que não é justo. Isso incomoda os árbitros, mas eu nunca falei com os árbitros. É que eu falo o tempo inteiro, então talvez tire a concentração deles. Então talvez seja isso, mas eu fui dado como um exemplo, só que o técnico de Cuba, ele arbitra a luta, ele é muito pior do que eu, mil vezes, então eu não acho justo. Eu sou a injustiçada (risos).
Algum técnico foi punido, de janeiro para cá?
Já, um monte. Da Coréia do Sul, Israel, Egito, vários técnicos, e eu estou invicta. Eu sou boa competidora. Falei: se é para competir, eu sou disciplinada. Pode, pode, não pode não pode. Mas, se eu não posso, ninguém pode também.
Antes de ser técnica olímpica, você foi atleta olímpica. Conte um pouco de sua carreira, como começou no judô.
Nasci em 7 de novembro de 1969, no Rio. Meu pai já tinha feito judô, minha mãe foi atleta de voleibol do Flamengo, então tinha um perfil esportista na família.
Eu fazia catecismo, e a igreja, do outro lado da rua da igreja, tinha uma escola de judô. E eu comecei a faltar às aulas de catecismo para assistir às aulas de judô. E aí nessa história a professora de catecismo, óbvio, chamou os meus pais, e aí meu pai, em vez de brigar comigo, me inscreveu na academia de judô.
Essa academia era em Cascadura, e aí eu comecei na academia com um professor japonês chamado Takeshi Ueda, que é muito legal. Comecei a treinar nessa academia com 11 anos. Com 15 anos, eu já era da seleção brasileira. Em 1986, quando eu fiz a minha primeira viagem internacional, eu fui transferida para o Flamengo porque a academia já não me comportava. O treinamento já não comportava o nível que eu estava. Eu tinha 17 anos. Com 16 eu já viajava pela seleção. Com 17 para 18 fui para os Jogos Pan-Americanos de Indianópolis.
Suas principais conquistas
Fui nove vezes campeã sul-americana, sete vezes campeã brasileira. Jogos Pan-Americanos, fui para Indianápolis e Cuba, Olimpíadas, Barcelona-1992 e Atlanta-1996. Não tive bom resultado em nenhum deles. Nos Pans nos dois em fiquei em quinto. Em Cuba, perdi para a cubana. Minha rixa com as cubanas eu trouxe da minha época de atleta, porque eu nunca consegui ganhar de uma cubana na minha vida.
Um dos meus objetivos como técnica era ganhar de Cuba. Conseguimos.
Como atleta, qual foi sua maior vitória?
A melhor de todos foi a conquista da vaga para a Olimpíada de Atlanta (1996). Em 1995 eu fui campeã brasileira, ganhando da Edinanci –eu nunca perdi para a Edinanci, sou a única atleta do Brasil que nunca perdeu para a Edinanci. Daí teve a seletiva parta os Pan daquele ano, que seria em Mar Del Plata. Eu fiz uma seletiva, com a Vânia Ishi e com a Ednanci. Era melhor de cinco. Ganhei da Edinanci cinco vezes de ippon e perdi para a Vânia cinco vezes. Na última, eu já estava ganhando dela de yuko, quando no finalzinho eu perdi a vaga.
Ficou uma sensação de derrota muito grande. Eu operei o joelho. Daí ninguém acreditava em mim, que eu fosse conseguir a vaga olímpica, porque a Vânia era a preferida, a Vânia era isso, a Vânia era aquilo. E quando chegou a seletiva , em dezembro –eu tinha operado o joelho no final de outubro–, eu ganhei. Em março de 1996, era a seletiva final que validava para a Olimpíada. E era o aniversário de mamãe. Eu falei: “Mãezinha, fica tranquila que eu vou para a Olimpíada”. Ninguém acreditava em mim, porque a mais cotada era a Vânia Ishi. E eu perdi a primeira luta na bandeira (decisão dos juízes). E aí ficou aquele pavor. E eu falei: “Mãezinha, fica tranquila, que agora eu aqueci”. Depois eu ganheis três lutas em seguida e me classifiquei para a Olimpíada. Tem um gosto muito especial essa vitória porque eu renasci das cinzas. Eu fiz uma cirurgia de joelho, ganhei de uma favorita. Não ganhei medalha, mas ganhei a vaga, que foi conquistada com muito sacrifício, muito empenho.
Você foi uma atleta e hoje é uma técnica com sangue nos olhos?
Nossa! Eu sou total. Sangue nos olhos mesmo. Eu falo isso para as meninas: se elas entrassem com a metade da vontade que eu tenho, não tinha para ninguém, não tinha nenhuma japonesa, coreana, não tinha francesa, russa, não tinha ninguém. Eu vou. Comigo não tem isso: barão de Coubertin, o importante é competir! O bom mesmo é ganhar. Você tem de entrar com a certeza de que quer ganhar, vai ganhar, que ninguém fez melhor do que você ali. É assim que eu entro. Assim que eu era como atleta. A gente aprende isso com a vida, com a experiência. É com esse sangue nos olhos, olhos de tigre, vamo que vamo, que é nosso e não tem prá ninguém.