Na montanha, no escuro, corrida dá medo e prazer
20/07/12 10:24Conheci Daniele em um dos intervalos de um seminário sobre genômica, o estudo da linhagem dos seres vivos. Não é para menos, pois a moça é biomédica formada e doutora em ciência. Para quem acha que é pouco, atualmente ela faz pós-doutorado em biofísica, estudando uma rara doença genética rara que leva à ossificação extraesquelética em músculos, tendões, ligamentos e outros tecidos conectivos.
Nas horas vagas, a doutora corre, contou-me durante rápida conversa. Diz ser iniciante, mas já tem no currículo nada menos que os 24 km de Extrema, uma corrida de montanha realizada à noite, que já deixou muito marmanjo arrebentado. Sua estreia foi no ano passado e, neste ano, pretendia repetir a dose. Acabou não conseguindo, por causa de uma lesão.
Tudo bem, fica para o ano que vem. Enquanto isso, ela nos conta sua experiência nos perigosos campos mineiros. Antes de passar ao texto que ela produziu especialmente para este blog, informo nome e sobrenome da autora: DANIELE DA SOLEDADE FRANCA FERREIRA, 33, paulistana.
“Sempre fui muito preguiçosa. E tímida. Cheguei a pedir para meus pais me deixarem ajudá-los em seu comércio só para não frequentar as aulas de educação física. E não era por falta de exemplo em casa, já que meu pai é mestre de capoeira e minha mãe foi dedicada ao atletismo durante sua fase acadêmica, além de ser uma das primeiras árbitras em campeonatos de capoeira.
“Comecei a me mexer com vinte e tantos anos, frequentando academias para fazer musculação, em que me sentia menos exposta. Virou um vício. Algumas pessoas até diziam que eu estava sofrendo de vigorexia, pois nunca me contentava com o meu corpo e com os resultados obtidos com os treinos e dietas, sempre rígidos.
“Mas uma coisa ainda faltava: exercícios aeróbios. Não conseguia nem olhar para a esteira. Foi quando meu pai, após duas cirurgias no joelho, precisou se afastar da capoeira e foi apresentado às corridas de rua. Apaixonou-se, participava de provas todos os domingos e tentou me convencer a fazer as provas com ele, mas confesso que acordar cedíssimo não era meu forte.
“Acabei me rendendo e há dois anos fiz minha primeira prova de rua, logo de 10 km. Completar a prova, mesmo com as dificuldades de um iniciante é, no mínimo, gratificante. Meu pai me inscreveu em mais algumas provas e eu as fiz, mesmo sem me dedicar muito. Meu foco era ganho de massa muscular, através da musculação. Após um ano da minha estreia nas corridas, meu pai me inscreveu para uma prova de corrida de montanha.
“Se eu já tinha uma certa preguiça de correr na rua, imagine na montanha, com barro. Mas lá fui eu, mais uma vez. Doze quilômetros com direito a estrada de asfalto, de terra, trilhas, subidas, descidas, pedras e rio, além de escalada de uma cachoeira. A sensação de tudo isso? Maravilhosa! O contato com a natureza e a satisfação em superar limites é sem igual. Cheguei ao final suja de lama, suada, exausta e com imagens na memória e sensações que só quem passou pode ter.
“Achei que já tinha superado meus limites, quando meu pai nos inscreveu numa prova de montanha, no mês de julho, na cidade de Extrema, MG. Resolvi encarar, com um grupo de mais cinco amigos, os 24 km (fotos Arquivo Pessoal). E o desafio não era apenas a distância. Tratava-se de uma corrida noturna, em pleno inverno.
Na hora da largada, o termômetro registrava 3 graus, mas a sensação térmica era de bem menos. Eu faria a prova com dois integrantes da equipe, já que os demais buscariam classificação em suas categorias. Queríamos apenas completar a prova, inédita para todos.
“Meus colegas não estavam tão certos disso, porém, e tentaram me convencer a mudar de planos quando chegamos km 6, onde os participantes do percurso curto contornariam para fazer os 12 km e os do percurso longo continuariam.
“Percebi como nosso psicológico influencia, já que normalmente estou exausta na altura dos 6 km de prova, não vendo a hora de terminar, para descansar. Em Extrema, como havia me preparado psicologicamente para fazer os 24 km, nem senti passarem os 6 km e jamais seguiria com os participantes dos 12 km.
“Em vez de ser dobrada, consegui convencer meus amigos a continuar. Ainda bem, pois sozinha seria muito difícil de seguir. No escuro do percurso, apenas contava com a luz da lua e da minha lanterna de cabeça. O percurso não incluía travessia de rio, mas tinha estrada de terra cortando propriedades, trilhas no mato fechado e o famoso pasto da morte.
“Era tão escuro que eu não conseguia ir à frente e nem ficar alguns passos atrás dos meus colegas, tinha muito medo. Medo do inesperado. É você iluminado pela lanterna, no meio do escuro e do desconhecido. A sensação é de que você está sendo observado. E está.
“O tal pasto da morte, gentilmente apelidado pelos participantes de provas anteriores, se trata de um longo pasto, numa subida muito íngreme, onde não é possível correr e onde vacas e touros tentam dormir enquanto centenas de lanternas miram seus olhos. Esse momento, já passada boa parte da prova, é bastante tenso. É a somatória da surpresa de ver o gado tão próximo, do medo do escuro, do cansaço, da ansiedade pelo término da prova.
“A tensão se relaxa ao chegar ao da Serra do Forja. Visão sem igual. A cidade iluminada, lá embaixo. Dava até para escutar o locutor cantando as pedras do bingo que acontecia numa praça da cidade. E estávamos no alto, bem no alto. Praticamente escalamos paredões para chegar lá.
“Os morros são muito íngremes, a velocidade cai muito, o desgaste pesa. Meus colegas sentavam e queriam desistir, mas não tinha pra onde ir, senão para a chegada. Eu, a menos experiente da equipe, tentava animá-los para não desistirem, dizendo que queria pegar colocação no pódio, que eles precisavam me ajudar.
“A prova seguiu com momentos de calor, momentos de frio e fomos voltando para a cidade, onde era a chegada. E, como não poderia deixar de ser, precisamos subir as ruas da cidade, já que a chegada era no topo de mais uma ladeira. Parecia interminável. O km mais longo de todos.
“Avistei uma participante e disparei a correr. Queria ultrapassá-la, pois achava que ela era uma competidora da minha categoria, e naquele momento estava decidida a terminar a prova e também a subir ao pódio. Deixei meus colegas para trás e subi, correndo, com o incentivo dos moradores que passavam pelas ruas frias, já depois da meia-noite. E lá estavam minha mãe, que sempre nos acompanhou, meu pai e meu namorado, que já tinham terminado a prova. Isso me deu forças e cruzei a linha de chegada, depois de 4h33min35.
“Exausta, com bolhas nos pés e com minha família ali, me aguardando, me pus a chorar. Emoção que não dá para passar para o papel, ficou na minha memória. Passa tanta coisa pela nossa cabeça. A tal preguiça que tinha no começo, o porte físico não favorável às corridas, a condromalácia patelar em grau avançado. Nada disso me impediu de completar aquela prova e subir ao pódio, com o terceiro lugar na minha categoria, mas que teve o mesmo sabor do primeiro lugar.
A prova é incrível e requer certo preparo físico e psicológico, mas vale cada quilômetro, cada minuto.”
Extrema é minha predileta.
Participei em 2005, na primeira noturna, sem o pasto da morte. (já era desafiadora)
Consegui ir nos outros anos e ainda sinto o renovo.
Cada passo é um, cada ano também.
Que venha 2013, o prazer e a coragem.
Até
Toinho
grande relato inspirador…
estou arrependido de não ter participado neste ano, mas já consta nos planos para 2013.
Parabens pelo término da prova para a Daniele. Prova de superação.
Não esqueça de visitar o blog!
Abraço
Que bacana, Daniele. E parabens pelos teus feitos. Gosto de correr no escuro, antes do sol nascer. Mas nunca me aventurei a correr no breu do mundo rural. Ano que vem vou la conferir.