Gaivotas e garças visitam corredores na ponte
23/05/12 08:29Foi com o sol na cara, quase sem ver na nada à minha frente, que comecei a Corrida da Ponte. Seguia pelo asfalto buscando alguma sombra, olhando para o chão, franzindo os olhos para ter uma ideia mal e mal do movimento em torno e do que ainda iria chegar. Durou pouco mais de um quilômetro esse sacrifício, que não chegou a ser um suplício, apenas um incômodo, até que enfim viesse uma curva benfazeja, logo na entrada da dita-cuja, a ponte Rio-Niterói. Êta, nóis!, que agora ia começar a brincadeira.
E já não era sem tempo, pois eu vinha seco para correr por esse percurso majestoso desde o ano passado, quando a travessia da Rio-Niterói foi ressuscitada. Nasceu no século passado, em 1981; teve uma segunda edição no ano seguinte, falhou alguns e voltou a ser realizada em 1986. Então o trânsito cada vez mais intenso e outras tantas complicações provocaram um hiato de 25 anos.
Para mim, não deu no ano passado. Quando a prova foi realizada, em abril, eu estava em plena crise de dores lombares, quadrilares, podísticas e quejandos. Num daqueles dias, tinha saído do consultório médico chorando por dentro para me matricular em uma escola de natação, pois eu poderia não ter um futuro corrido.
Haja fisioterapia, musculação, exercícios de estilo e passadas, massagens e manipulações osteopáticas! Mas deu. Reaprendi a correr (não muito bem, é verdade), aos pouquinhos, intercalando estirões com caminhadas, controlando a musculatura abdominal, o movimento da coluna, o ângulo de entrada do pé no chão… Já fiz até uma maratona, mas isso é história para outra hora.
Agora estou na ponte.
Ainda não. Conto antes como lá cheguei. Foi de barca, os ônibus marinhos que fazem o percurso regular entre a antiga capital federal e a antiga capital fluminense. Saí às 6h30, barca lotada, indo ao encontro do sol, que nasce atrás de um morro niteroiense, lá do outro lado.
Apesar da multidão –eram 8.000 inscritos, proclamava a organização–, tudo seguiu na mais santa paz, e lá nos fomos para o Caminho de Niemeyer, um complexo de prédios projetados pelo centenário arquiteto comunista de quatro costados. Havia batalhões de banheiros químicos, e as filas dos angustiados para aliviar a bexiga ou os intestinos serpenteavam em perfeita ordem, garantida por bedéis que orientavam a ocupação dos sanitários. Circulei um pouco, pude até captar a bucólica cena do pescador que mal se dá conta da grandiosidade da paisagem que o circunda.
Com o sol se aquecendo, mas não a ponto de virar fornalha, o dia prometia ser agradável. A largada foi pontual e serena: fomos divididos em grandes grupos, de acordo com o tempo estimado para completar o desafio, e a saída foi em ondas, o que evitou atropelos e permitiu que todos pudessem correr de verdade assim que cruzassem o pórtico. Uma coisa assim, civilizada.
Eu não exatamente corria “de verdade”. Na manhã domingueira, me enfrentava com o sol cegante e com a vontade de seguir o mais rápido possível; não devia, não podia, precisava guardar forças, ainda que pretendesse fazer caminhadas de 500 metros a cada 5 km. Minha meta era chegar sem dores.
Os objetivos, porém, foram esquecidos quando enfim cheguei à ponte. É um portento da engenharia: cerca de 13 km de concreto cortando a baía da Guanabara, sendo pouco mais de 8 km sobre o mar. Dali se vê o Rio como de nenhum outro lugar: Copacabana, o Pão de Açúcar, lá longe o Redentor.
Os primeiros quilômetros são sobre terra firme, ou quase: abaixo de nós estão as ilhas da Conceição e as duas Mocanguê, a Pequena e a Grande, com faixas de oceano entre elas. Quando é que vem o marzão, gente?, me perguntava eu, vendo só carro, carro e mais carro. Um ônibus, caminhãozinho e dá-lhe carro.
É que ali, na chegada a Niterói, deu-se a principal buzunfa no trânsito. Os que vinham do Rio tinham seu trajeto interrompido porque precisavam esperar a passagem dos corredores; os que iam para a Cidade Maravilhosa precisavam se afunilar para uma faixa só.
Explico melhor. A rodovia tem duas pistas, separadas por canteiro de cimento, cada uma com quatro faixas. A pista sentido Niterói estava totalmente liberada; na de sentido Rio, apenas uma faixa foi aberta aos veículos, ficando duas reservadas aos corredores, protegidos por grades, e uma para segurança e veículos da organização, polícia, ambulâncias. Como eu vi, a coisa funcionou direito, ainda que tenha havido uma certa confusão no trânsito nos quilômetros mais próximos a Niterói; mais para a metade da ponte, porém, o fluxo estava tranquilo, como você pode ver nas duas imagens abaixo (fotos Divulgação; as demais são de minha lavra).
Quando eu vi, já estava com cinco quilômetros no lombo e nenhuma vontade de caminhar. Queria mais é seguir olhando o mar, cuidando os navios atracados por ali, enormes de certo, mas, lá de cima, parecendo uns pedacinhos de madeira colorida. Então me fui, percebendo que havia uma ladeirinha, subíamos pouca coisa, metro a metro, nada que chegasse a influenciar o ritmo. E eu ainda pensava: depois é descida, vai dar para mandar mais brasa…
E foi lá no meio do mar, vendo a orla do Rio e o Pão de Açúcar, que os ruídos estranhos foram tirar minha paz. Olhei em volta, nada. No céu sem nuvens, azul de brigadeiro, vi então os pássaros, que pareciam enormes figuras negras, esbeltas, grasnando, crocitando, gritando, fazendo uns sons esquisitos enquanto circulavam sobre nós.
Tentei identificá-los, sem muito sucesso. Havia basicamente dois tipos. Um parecia uma andorinha gigante, tinha rabo como uma tesoura aberta, e corpo longilíneo. O outro tipo era mais parrudo, também negro como a asa da graúna, tal e qual os cabelos de Iracema, e tinha ainda um colar vermelho –ou seria o bico.
Já não sei direito o que vi, a visão e a memória se embaralham. Na hora, nem atinei de tirar fotos. Cheguei a perguntar para parceiros corredores, que poderiam ser da área e conhecer as aves locais. “Gaivota”, me garantiu um. “Garça, será que é garça?”, desconfiou outro, logo se corrigindo: “Mas garça é branca, não é?”
Concluí que a ignorância no terreno da ornitologia grassava no asfalto da ponte Rio-Niterói. Não eram garças nem gaivotas. Quem sabe urubus? Essas figuras são contumazes frequentadores da região do aeroporto Santos Dumont, não poucos já perderam a vida em hélices e turbinas… Pode ser. Ou não?
Na internet, que é versão presente do pai-dos-burros, encontrei uma sugestão: biguá. Esse pode ser. A Wikipedia me ensina que o bicho também é chamado corvo-marinho e mergulhão, entre outros apelidos. Medem “cerca de 75 cm de comprimento e tem coloração negra, saco gular amarelo e tarsos negros”. Bueno, sei não; se você for especialista no ramo e puder esclarecer essa profunda dúvida, mande seu recado.
Sob os pássaros, movíamo-nos todos. Agora outra ilha me chamou a atenção. Era a das Enxadas, solitária, entre a ponte e Copacana. É pequena, acho que nem dá para sediar uma corrida, mas serve para várias instalações militares, como um centro de instrução da Marinha.
Assim me divertindo, vou seguindo até que uma pontada no quadril avise que a festa vai acabar. Mas dou uma repuxada, mudo a passada, ajeito o corpo e prossigo. Às vezes, tenho de reduzir o ritmo, mas espero para fazer nos postos de água, que aparecem a intervalos de cerca de três quilômetros e oferecem o líquido geladinho.
O importante é que consigo seguir sem parar, correndo sempre, e já percebo que a ponte está para acabar. Não senti, como esperava, ventania no vão livre sobre o mar; também não deu vontade de pular lá de cima nem tropecei em lugar nenhum. Vi várias pessoas sendo atendidas nas ambulâncias, mas o movimento dos enfermeiros não indicava que fossem coisas graves: uma bolha, câimbras talvez, excesso de esforço…
E assim terminou a ponte. Mal dá para perceber seu fim, pois seguimos por uma via elevada, a perimetral. Quando passo o km 16, já começo a festejar, até acelero um pouco e suo mais. O esforço exige um certo descanso e, quando me preparo para a aguinha salvadora, o posto do km 18 está seco –a falha mais grave que percebi na prova.
Tudo bem, dá para encarar mais um pouco. Desestresso olhando a reforma em andamento no antigo e belo prédio da Cibrazem , reconheço as costas da cúpula do Theatro Municipal e já estou em terra firme, recolhendo os cacos de mim mesmo para continuar correndo, acelerando até: o último é meu quilômetro mais rápido no percurso, que beleza!
Passo o pórtico de braços erguidos, ganho a medalha –bonita, mas sem data nem local nem distância—e um beijo da Eleonora. Festejo a vitória de braço erguido e rosto suado e inicio o caminho de volta para casa. O sol agora, visto do avião, está do outro lado.
PS.: Apesar dos números divulgados inicialmente pelos organizadores, a prova deste ano foi menor que a do ano passado, que teve 5.354 concluintes. Neste, 4.589 homens e mulheres completaram o percurso. Damião Ancelmo de Souza e Marily dos Santos sagraram-se bicampeões. Eu cheguei em 3.332º lugar no pelotão masculino, com 2h31min01. Minha inscrição na prova foi cortesia dos organizadores.
Sonho em correr essa prova.
Assim como vc, em 2011 eu estava lesionada. Esse ano foi no mesmo dia da prova de Lima-Peru, da qual participei.
Em 2013 espero estar sobre a ponte.
Lia Campos
PS: gostei dos “cabelos de Iracema”.
Grande Rodolfo! Aqui é o Augusto de BH. Também corri esta prova e foi sensacional! Como te disse, comecei a correr qdo li em seu blog o relato desta prova no ano passado. Em dezembro corri minha 1a Meia em Florianópolis (para poder ter tempo p/ me inscrever na Meia da Ponte), e agora em Maio corri minha 2a Meia lá na Ponte.
Eu achei o visual sensacional, e a prova mto bem organizada (qdo passei pelo km18 ainda havia água!). Além disso, esqueci meu casado no ônibus que guardava as coisas dos corredores, e me ligaram do RJ pra me enviar referido casado.
Qto à prova em si, eu achei o percurso mto mais difícil que em Floripa. Havia aquela subida assassina p/ se alcançar a ponte; e a própria ponte até o vão central é uma subida lenta e contínua! Fora isso, na Perimetral tem umas partes que ela é meio inclinada! Pesado! Fora isso, 6a e sábado estava um clima bom, nublado, e no domingo abre aquele solzão! rs…
Mas foi ótimo! Agora é continuar treinando e ano q vem estarei lá de novo!
Por fim, reitero q foi mto bom conhecer-te pessoalmente lá na prova! Até à próxima! Abc, Augusto-BH.
Beleza, Augusto, parabéns pela conquista. Aproveite e festeje essa realização, e vá com calma nas corridas. Sucesso aí, abs
Parabéns Rodolfo. Muito legal seu relato da Corrida da Ponte, mais ainda por ter participado dela, minha quarta Half, iniciei-me em corridas na São Silvestre/2011. Leio seu blog há algum tempo e indago-me se a causa de seus problemas foram por overtraining ou exageros nas distancias (ultras).
Foi uma combinação de coisas. Talvez o mais importante tenha sido o fato de que fui muito cedo para a maratona, apenas um ano depois de começar a correr, considrando que, antes de começar a correr, eu não fazia nenhum tipo de exercício
Oi Rodolfo, muito bonito seu relato! Estávamos na mesma barca e nos “encontramos” no Km 7. Até ia pedir para tirar uma foto com vc (já que corri filmando e fotografando tudo), mas fiquei com vergonha e medo de atrapalhar, ha ha ha… A prova, na minha opinião, foi um sonho! Abraços!
Parabéns por mais uma corrida fantástica! Adorei o seu relato e as fotos! Keep it up the great work!
Belo texto. Fez-me rir. Grato. Continue
Ano que vem estarei lá!
Sensacional o seu relato Rodolfo!
Espero que você continue no seu retorno às corridas!
Grande abraço!
Abel
Da ponte não se vê Copacabana.
Boa, obrigado, corrigi.
Rodolfo que bom que veio correr na Ponte, pena que nao te vi, pois em termos de prova em relaçao ao ano passado este ano os organizadores acertaram em cheio…Parabéns!!!
Bons treinos,
Jorge Cerqueira
http://www.jmaraotna.com
Muito bonito e rico o seu relato Rodolfo.
É muito gostoso aprender com o que lemos nos blogs.
Gostei desse desafio e vou me preparar para ter a oportunidade de pisar nesta ponte e ver essas paisagens indescritíveis.
Abraços
Luizz