Na maratona, há coisa que até Deus duvida
22/05/12 07:58Uma paralítica que anda, uma epilética que desmaia 20 vezes e segue no asfalto, pacientes de câncer redivivos para a conquista da medalha: a maratona propicia conquistas que, como dizia minha mãe, “até Deus duvida”. Esse é o tema de minha coluna desta terça-feira no caderno Equilíbrio, da Folha (AQUI, para assinantes da Folha e/ou do UOL).
Algumas daquelas histórias são bem conhecidas e receberam ampla divulgação. Falo agora de outra epopeia, que tem ares de anedota, mas encerra drama e revela a fortidão do ânimo de um atleta. É um pedaço da trajetória de Paulo Roberto de Almeida Paula, o segundo mais rápido maratonista do time que o Brasil leva para Londres nos Jogos Olímpicos deste ano.
Bom corredor de provas de 10 km, distância em que construiu uma história ao lado de seu irmão gêmeo, Luiz Fernando, ficando os dois conhecidos por muitas vezes chegarem juntos, de mãos dadas e braços erguidos. Tão unidos são que, de certa forma, até perderam a identidade própria: no dia a dia, são chamados, indistintamente, de Gêmeos (na foto abaixo, de 15 de abril de 2007, nem tento dizer quem é quem…; a imagem foi captada durante uma corrida em São Paulo pelo fisioterapeuta Marcelo Semiatzh, que a cedeu gentilmente para este blog).
Paulo sonhava com a Olimpíada. Em nome de tentar uma vaga em Londres-2012, desistiu de lutar por estar presente no Pan. Com o irmão mais velho –Luiz Fernando nasceu minutos antes, os dois completam 32 anos em julho–, retirou-se para intermináveis sessões de treinos na altitude, na boliviana Cochabamba.
De lá saía apenas para provas específicas, algumas meia maratonas em que testava sua regularidade, confirmada em resultados que se repetiam: 1h03 na prova das Cataratas, 1h02 no Rio, 1h02 em São Paulo. A confiança só fazia aumentar e, assim que abriu a temporada de caça ao índice, no ano passado, resolveu dar seu tiro.
Atleta profissional, conversou com seus patrocinadores para conseguir o tempo livre necessário para os treinos, ficando sem competir o tempo que achou necessário. Em contrapartida, bancou do próprio bolso todo o período de treinamento e as viagens. E assim lá se foram os Gêmeos para a estreia na maratona, em outubro passado em Amsterdã.
De cara, atingiu o objetivo. Fez 2h13min15, índice A, apesar dos pesares. O dia estava frio, o debutante teve de correr de luvas, gorro, bater queixo no seu debute e ainda controlar os nervos.
“Parei duas vezes para fazer xixi. Acho que foi um pouco a ansiedade de querer fazer uma prova boa. Mesmo parando, não me atrapalhou em nada. Eu consegui encostar no bloco mais rápido, corri a prova tranquilo”.
Mais ou menos. Os marcadores de ritmo –coelhos, no jargão da corrida—passaram a meia maratona mais rápido do que o combinado, e Paulo, que não pretendia lutar pela vitória, acabou correndo sozinho boa parte do tempo. Além disso, as reduzidas para aliviar a bexiga também cobraram um preço: “Depois de parar, corri o quilômetro seguinte a 2min50, para encostar no bloco, e na maratona você não faz isso. No km 25, de novo precisei parar e aconteceu a mesma coisa: forcei o ritmo para não ficar sozinho. Quando chegou no km 40, eu senti…”
Foi uma das melhores marcas de brasileiros no ano passado, mas não dava camisa a ninguém: o período de caça ao índice ia até 29 de abril último, e havia muitos corredores na perseguição. Nomes famosos, como o campeão pan-americano Solonei Silva e o ex-ouro do Pan Franck Caldeira, e outros menos conhecidos do grande público, mas também adversários perigosos, como Damião Ancelmo de Souza e Giovani dos Santos. Paulo Roberto voltou aos treinos.
“Desde que eu entrei na briga, eu não estava tranquilo, porque eu queria ser o melhor. Fiquei treinando. Se alguém batesse meu tempo, eu ia fazer de tudo para bater, porque eu queria ir para a Olimpíada, ninguém me tirava da Olimpíada.”
Montou sua estratégia para ser capaz de responder a qualquer surpresa. Apesar de já ter o índice, resolveu correr novamente em Barcelona, baixar sua marca e carimbar o passaporte no último dia 25 de março.
Carimbou foi os calções. Uma diarreia terrível o perseguiu durante quase toda a prova, mas ele não dá desconto: “Não me atrapalhou. O povo correndo e eu chegando todo c***. O meu negócio era fazer o índice. Se eu chegasse c**** ou chegasse torto, podiam falar o que quisessem, para mim não interessava desde que eu fizesse o índice”.
É a fala de um atleta profissional que prefere não dar desculpas por seu desempenho. Qualquer um que corre, porém, sabe o quanto as indisposições estomacais perturbam o desempenho.
Em meras provas de 10 km, às vezes a gente bebe água com mais sofreguidão, engole ar e o estômago já embrulha, deixa gases que precisam de algumas centenas de metros para serem expulsos. Imagine então uma diarreia: além das cólicas, do fedor, do desconforto, o corredor ainda perde água cada vez mais rapidamente.
Paulo Roberto diz que sua maratona começa no km 15. Até lá corre fazendo força, lutando para ficar junto do pelotão líder ou, pelo menos, do segundo grupo. A partir dali, porém, entra em ritmo de cruzeiro e consegue desenvolver sua prova, aumentar a velocidade, controlar o desempenho.
Pois foi exatamente no km 15 que a diarreia começou. “Fui até o km 40 fazendo cocô nas calças”, diz ele, comentando: “Eu fui esperto. Quando saía, eu limpava. Outros corredores, que também tiveram diarreia, chegaram todos sujos. Tinha gente com cocô até no cabelo…”
A técnica era simples: ”Eu usava água: a hora que dava a diarreia, eu pegava duas garrafas de água, abria um pouquinho o short e jogava água. Se você não limpa, assa. E aí é pior”.
Na hora, incomodou, mas hoje, diz ele, até dá risada. Também deve ter ficado contente com o resultado: inaugurou um novo recorde pessoal, 2h11min51, baixando seu tempo em mais de um minuto e 20 segundos.
Era hora de descansar, sentar nos louros e esperar os resultados dos rivais. Marílson Gomes dos Santos, o melhor maratonista brasileiro, já estava garantido pelo índice técnico. Tinha ficado entre os 30 melhores do mundo em 2011, o que lhe dava a vaga, segundo critérios anunciados pela CBAt, a entidade que coordena o atletismo brasileiro.
O problema é que faltava ainda mais de um mês para o final da temporada de caça ao índice. Vários analistas e treinadores afirmavam que havia atletas com bala para correr a 2h10. Um deles me disse que dois de seus atletas iriam correr as provas de abril em ritmo de 3min05 por quilômetro; pela previsão, já estavam em Londres.
Paulo Roberto cutuca: “É cheio de técnico com estatísticas dizendo o que acha que o atleta vai correr. Isso não existe. Você entra numa maratona, você tem de correr.”
Apesar disso, ele sabia que seus contendores viriam com força, e havia provas rápidas no horizonte imediato: Londres, Milão, Pádua… Até seu irmão, Luiz Fernando, que fizera uma tentativa frustrada em Barcelona, onde parou por causa de lesão, imaginava voltar a correr, se conseguisse se recuperar a tempo. Paulo Roberto não queria saber de dar chance ao azar.
“Como o Marílson já estava na Olimpíada, eu queria ser o segundo homem. Se fosse para correr quatro maratonas, eu ia correr as quatro. Não sei seu eu ia chegar inteiro, mas, na hora em que botei como objetivo correr a maratona, eu entrei na briga para não perder.”
Por isso, diz ele, fez o que chama de “loucura” de correr duas maratonas em 28 dias. Foi o intervalo que separou a prova de Barcelona da de Pádua, na Itália.
“De tanto azar que eu tive nas outras, agora foi perfeito. Foi a prova ideal. É gostosa de correr. Temperatura agradável. Ela é praticamente plana, só tem três quilômetros com pedra, que foi onde eu quebrei um pouquinho…”
Muito pouco mesmo: lá fez o melhor tempo de sua vida e subiu ao pódio, com a medalha de bronze. Sua marca, 2h10min23, é a segunda melhor de um brasileiro neste ano, atrás apenas das 2h08min03 de Marílson. E, como ele sonhava, será o segundo homem do time do Brasil em Londres-2012. Franck Caldeira, que completou em 2h012min03 a maratona de Milão, completa a equipe. Entre as mulheres, apenas uma brasileira se qualificou para a maratona olímpica: Adriana Aparecida da Silva, que cravou 2h29min17 em Tóquio, passando a ser a segunda melhor maratonista da história do país, atrás apenas da legendária Carmem Oliveira.
Cada um, com certeza, vai tentar dar o máximo de si nesse momento de glória. Como diz Paulo Roberto: “Agora vou voltar aos treinamentos, quero ir atrás do que possa fazer de melhor. Eu garanto que vou dar meu melhor e tentar baixar minha marca. Minha briga não é nem contra os adversários, mas contra mim mesmo.”
Lucena
Conheco eles há uma década e até hoje não consigo distinguir quem é Tico e quem é o Teco.
Um cumprimenta-me muito efusivamente de forma simpatica, o outro é mais reservado comigo.
Quem é um ou é o outro, até hoje não sei.
Parabéns ao tecnico Marcão!
Harry
Nossa, o que é isso? Rsrsrs. C*** a, acho que eu ia desistir! Kkkkkk. Mas isto é prova de que se você tem uma meta que impôs a si mesmo, tem que correr atrás… literalmente! O psicológico tem que ser bem forte! Muito legal o texto!
parabéns a esse atleta que correu atraz de seu sonho,uma boa historia que deve dar mais motivação a tantos corredores amadores.
boa sorte na olimpiada Paulo.
ola a todos muito obg por vcis estarem comentando pois isso ajuda muito e da mais força para lutar , me deixa mais feliz o reconhecimento das pessoas do que isso posso levar a ganhar dinheiro.
Na Praia Grande tem totô na areia e homem aranha vendendo algodão doce. Deus não duvida de mais nada.
Que relato, que história. a honestidade e a força de vontade do Paulo o faz um verdadeiro campeão e fonte de inspiração!
Caracas!!! Todos somos pessoas normais…alguns com genetica maravilhosa e podem se destacar bem melhor, mas estas ziquiziras ai da em todo mundo…independente é se bom ou nao…
aiiii
Mesmo assim show…soube driblar e se destacar…O cara corre muito…
Sensacional o texto Rodolfo, antes cagado do que derrotado. Alguem foi cumprimenta-lo depois da prova?
Lucena, bacana mesmo essa história. Olha, fui eu que lhe encontrei na Perimetral, na Corrida da Ponte desse ano. Coloquei a foto que tirei sua no meu blog corredorfeliz.blogspot.com, se quiser baixe de lá.
Achei a corrida da ponte desse ano fantástica!
grande abraço e melhoras para a coluna,
Sergio
Rodolfo, parabéns pelo belo texto. Um relato adimirável de um atleta notável. Vai para minha coleção de ótimos textos!
2h13 garantia, mas não dá pra bobear mesmo, é um tempo que o pessoal tava perseguindo com chances. Agora, histórico é o 2h11 na cagada!
Esta histórias nos motiva…verdadeiros guerreiros que superam tudo…Fantástico!